A queda da Casa Usher: contos de paranoia reatualizados

A queda da Casa Usher: contos de paranoia reatualizados

Exatamente cinco anos após a estreia de A maldição da residência Hill, minissérie que marcou a parceria entre o diretor e roteirista estadunidense Mike Flanagan e a gigante dos streamings, Netflix, estreou a produção que marca o fim desta colaboração: A queda da casa Usher

A obra é a sexta produção de Flanagan para a Netflix. Suas obras anteriores incluem o longa Jogo perigoso (2017) e as minisséries A maldição da residência Hill (2018), A maldição da mansão Bly (2020), A missa da meia-noite (2021) e O clube da meia-noite (2022). Pelo menos cinco das seis produções foram aclamadas pela crítica e pelo público, conquistando fãs fiéis do horror e introduzindo o gênero a novos espectadores.

A queda da Casa Usher 

A minissérie A Queda da Casa Usher se inspira em diversas obras e personagens de Edgar Allan Poe, um autor celebrado como um dos mestres da literatura de terror em língua inglesa. A adaptação conta a história de Roderick (Bruce Greenwood e Zach Gilford) e Madeline Usher (Mary McDonnell e Willa Fitzgerald), irmãos gêmeos responsáveis por um império bilionário na indústria farmacêutica, e explora as consequências das escolhas que os levaram até esse ponto.

Roderick Usher em A queda da Casa Usher | Netflix

A produção conta com rostos conhecidos de outras séries de Mike Flanagan, como ele costuma fazer em suas produções. Por exemplo, os seis filhos de Roderick Usher: Frederick Usher (Henry Thomas), Camille L’Espanaye (Kate Siegel), Napoleon “Leo” Usher (Raul Kholi). Tamerlane Usher (Samantha Sloyan), Victorine La Fourcade (T’Nia Miller) e Prospero “Perry” Usher (Sauriyan Sapkota). Além de participações ilustres, como os veteranos Carl Lumbly (C. Auguste Dupin) e Mark Hamill (Arthur Pym). 

Spoilers a seguir

A série é narrada por Roderick, que conta a história da ascensão e queda recente de sua família. Ele resolve, então, expor o seu passado até aquele ponto para Dupin, o investigador que busca condenar a família Usher e sua empresa por produzir e comercializar analgésicos à base de opióides, altamente viciantes.

Logo no começo, o público descobre que os seis filhos de Roderick morreram em acidentes bizarros em um curto espaço de tempo. Cada episódio, portanto, se dedica a desvendar mais a respeito do passado dos irmãos Usher e se debruça sobre cada uma das mortes dos herdeiros de Roderick. Isso é feito através de flashbacks da juventude de Roderick e Madeline, os acontecimentos que antecedem a morte de seus filhos, e o estado de aparente loucura em que Roderick conta tudo para Dupin.

A Casa Usher apresenta uma família disfuncional na qual o dinheiro assumiu o protagonismo das relações, e onde não existem escrúpulos para ações que visem proteger o seu legado. O conflito tem início na história quando o investigador Dupin insinua que um dos herdeiros foi informante do FBI sobre as investigações contra os negócios do grupo. Isso leva os Usher por uma espiral de acontecimentos trágicos que apenas afastam cada vez mais os membros restantes da família.

Família Usher em A queda da Casa Usher | Netflix

Enquanto isso, conhecemos a uma personagem misteriosa vivida por Carla Gugino, que parece ser a encarregada de entregar os castigos para a família Usher, de um modo que mistura o real com o sobrenatural. Sempre presente durante as mortes dos herdeiros de Roderick Usher, ela se liga aos gêmeos na noite de ano novo que mudou as suas vidas.

Edgar Allan Poe e os horrores contemporâneos

Como já foi mencionado, a obra se inspira no trabalho do escritor estadunidense Edgar Allan Poe. A produção nos mostra que houve uma extensa pesquisa sobre as obras do autor, já que elas são referenciadas em toda a série. Seja como adaptações de contos, declamações de poemas ou até mesmo apenas o nome de personagens.

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Sendo assim, a premissa de A queda da Casa Usher segue um narrador indefinido visitando um amigo. Roderick Usher pede ajuda para enterrar a sua irmã gêmea, Madeline. Os dois seriam, então, os últimos membros da família Usher, e Roderick se encontra em um estado desesperado.

As referências a Edgar Allan Poe em A queda da Casa Usher

Além do conto que dá título à série, também estão referenciados nos nomes e no enredo de alguns dos episódios contos e poemas, tais como:

  • A Máscara da Morte Rubra“, a história de um príncipe chamado Prospero que refugia a si e outros nobres em seu castelo enquanto uma peste assola aqueles que não podem se proteger.
  • Os Assassinatos da Rua Morgue“, que segue a investigação de assassinatos misteriosos.
  • O Gato Preto“, um dos contos mais célebres de Poe, segue um homem que passa a sofrer com fenômenos sobrenaturais e paranoia após maltratar um gato chamado Pluto.
  • O Coração Delator“, conto em que um homem comete um assassinato, mas não para de ouvir o som do coração de sua vítima.
  • O Escaravelho de Ouro“, poema que conta a história de uma caça ao tesouro que tem início após a descoberta de uma peça de escaravelho de ouro.
  • O Poço e o Pêndulo“, um conto que segue um homem condenado à morte e à tortura pela Inquisição Espanhola.
  • Por fim, “O Corvo“, que conta a história de um homem que perde a sua amada, chamada Leonore, e é perseguido por um corvo que repete sem parar, “Nevermore” (nunca mais).
Leo em A queda da Casa Usher | Netflix

Os poemas de Poe declamados na série

O único episódio que não leva o nome de uma obra de Edgar Allan Poe é o primeiro, “Meia-noite que apavora” (Midnight dreary em inglês), mas faz referência à linha de abertura de “O Corvo”, o poema mais famoso do autor.

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary, (Uma meia-noite apavorante, enquanto eu ponderava, fraco e cansado) 

Over many a quaint and curious volume of forgotten lore— (Sobre volumes pitorescos e curiosos de folclore esquecido) 

While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping, (Enquanto minha cabeça pendia, quase dormindo, de repente veio uma batida)

As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.” (Como alguém gentilmente batendo, batendo, na porta do meu quarto)

Durante a série, também há poemas declamados, além de “O Corvo”, incluindo “Annabel Lee”, “A Cidade do Mar”, “Dreamland” e “Spirits of the Dead”.

“It was many and many a year ago, (Foi a muitos anos atrás)

In a kingdom by the sea, (Em um reino próximo ao mar)

That a maiden there lived whom you may know (Que uma dama que lá vivia, a quem você deve conhecer)

By the name of Annabel Lee; (Pelo nome de Annabel Lee)

And this maiden she lived with no other thought (E essa dama vivia com nenhum outro pensamento)

Than to love and be loved by me.” (A não ser o de amar e ser amada por mim) 

Além disso, os títulos e enredos dos episódios, bem como os próprios personagens, carregam nomes e histórias que fazem parte do folclore sombrio criado por Poe.

A queda da Casa Usher é mais um êxito de Mike Flanagan

A divisão da história em diferentes cronologias também é algo conhecido para os fãs do diretor e que ele acerta em sua última produção em contrato com a Netflix. Apesar dos formatos se repetirem, a Casa Usher se destaca das outras obras de Flanagan por não convidar o espectador a simpatizar e torcer por seus protagonistas. 

A queda da Casa Usher é mais um êxito de Mike Flanagan. A série segue o formato das outras produções do diretor, com personagens diversos e números que se destacam em momentos-chave da narrativa.

A divisão da história em variadas cronologias também é algo conhecido pelos fãs, e ele acerta em sua última produção em contrato com a Netflix. E apesar dos formatos se repetirem, A Casa Usher se destaca das outras obras de Flanagan por não convidar o espectador a simpatizar e torcer por seus protagonistas.

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Nos outros casos, o terror que se conecta ao drama depende da proximidade e identificação do espectador com as personagens. Aqui, não há muito tempo para o desenvolvimento da maioria dos personagens, o que realça o destaque de Roderick e Madeline, em menor intensidade, como os verdadeiros protagonistas.

Esses desvios na narrativa, envolvendo múltiplas linhas do tempo, além de um narrador confuso e assombrado, podem prejudicar o fluxo da história nos primeiros episódios. Entretanto, a partir do momento que fica clara a forma como a narrativa está organizada, os episódios fluem sem parecerem confusos ou maçantes (algo que a crítica apontou em relação à minissérie de Flanagan, O Clube da Meia-Noite).

Os destaques de A queda da Casa Usher

Os elementos de terror das histórias de Edgar Allan Poe são bem encaixados no estilo narrativo de Flanagan, com destaque para o foco no sentimento de paranoia que assola seus personagens, levando-os à loucura. A incerteza sobre o que é real ou imaginário também recai sobre o espectador, que não tem certeza da veracidade do que é apresentado até que a série o esclareça.

No entanto, o grande destaque é a personagem de Carla Gugino, que, além de servir como fio condutor, conectando cada núcleo da série, oferece uma interpretação fantástica da atriz. Sempre que entra em cena, ela captura inteiramente a tensão das possíveis consequências para as personagens, mantendo a atenção do espectador intrigada com sua presença e função na história.

O restante do elenco não deixa a desejar, com ótimas atuações de Bruce Greenwood, Henry Thomas e Carl Lumbly.

Carla Gugino em A queda da Casa Usher | Netflix
Carla Gugino em A queda da Casa Usher | Netflix

O gênero de horror ontem e hoje

A minissérie é uma excelente maneira de apresentar os fãs do horror do século XXI a uma das grandes vozes referências do gênero. Ela combina elementos modernos e políticos da nossa sociedade com a melancolia e paranoia das obras de Edgar Allan Poe, sem abrir mão dos dramas familiares que permeiam o trabalho de Flanagan.

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A obra coroa uma parceria de sucesso e redime Mike Flanagan da recepção negativa de O Clube da Meia-Noite. Contudo, é importante levar em consideração que o material de origem utilizado na produção da série se sustenta por si só, sendo obras literárias aclamadas por quase 200 anos.

Sendo assim, A Queda da Casa Usher continua a tradição de produções recentes do gênero de horror, que se destacam por sua complexidade e conexão com o espectador. Ela segue o formato já bem conhecido do seu idealizador, que obtém êxito ao escolher adaptar Edgar Allan Poe para o mundo contemporâneo dentro do seu próprio estilo narrativo, conservando a genialidade de Poe e a originalidade de sua própria obra. Por fim, nos resta esperar e torcer para que Flanagan continue a ter sucesso em outras plataformas.

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Historiadora e mestranda em Cinema e Audiovisual, com pesquisas voltadas para as relações entre os lugares ocupados por mulheres no cinema brasileiro. Apaixonada por arte, cinema e educação.
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