6 contos não tão conhecidos de Stephen King

6 contos não tão conhecidos de Stephen King

Na sua coletânea Tudo é Eventual, Stephen King afirma: “Contos são artefatos, não criações nossas pelas quais possamos receber crédito, mas objetos preexistentes que desenterramos.” Na introdução do livro, publicado em 2002, King reflete sobre o ato de escrever contos, seu prazer em lidar com o lado comercial e a desvalorização dessa prática no mercado editorial.

Considerando o contexto da época, o autor norte-americano discute a atualidade dos livros em formato e-books e obras diretamente publicadas em ambiente eletrônico. Isso funciona como um interessante objeto de estudo para se pensar no impacto da revolução digital no setor livreiro e em como as inovações tecnológicas transformaram a indústria literária de maneira irremediável.

Stephen King e seu querido "processador de textos"
Stephen King e seu querido “processador de textos” | Imagem: reprodução

Com mais de 200 narrativas não tão curtas e 12 coletâneas de temáticas diversas, é impossível negar que Stephen King domina a arte do conto como ninguém.

Afinal, foi com tal formato maleável que iniciou sua carreira, produzindo histórias para revistas populares voltadas para o público masculino. É para esse gênero narrativo que o autor  se volta como escritor, mas principalmente enquanto leitor. Aliás, King faz questão de frisar a importância do apoio e consumo na luta contra o aniquilamento do conto enquanto arte produzida e lida.

“Há poucos prazeres tão fantásticos quanto sentar na minha poltrona preferida numa noite fria, com uma xícara de chá quente do lado, escutando o vento lá fora e lendo um bom conto que posso terminar em uma sentada só.”

Das paráfrases de Sherlock Holmes e Lovecraft, inspiração para filmes como Conta comigo (1986), Um sonho de liberdade (1994), O nevoeiro (2007) e 1922 (2017), às narrativas que quase se assemelham a uma novela ou romance propriamente ditos, o renomado autor percorre há mais de cinco décadas esse formato narrativo. E, como ele enfatiza na introdução de Tudo é eventual, faz questão de manter a arte do conto viva.

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Comemorando o aniversário de Stephen King com 6 contos pouco conhecidos

Hoje, 21 de setembro, para celebrar os 76 anos do mestre Stephen King, selecionamos seis contos que transitam entre gêneros, temas e estilos, demonstrando o caráter versátil e rico tão amado na escrita do autor.

1) A corredora (The gingerbread girl)

Capa do audiobook "A corredora" (The gingerbread girl), do Stephen King
Capa do audiobook do conto de Stephen King | Imagem: reprodução

Originalmente publicado em 2007 na revista Esquire, o conto “A Corredora” faz parte da antologia Ao Cair da Noite (Just After Sunset, 2008) e é uma ótima escolha para os fãs de Misery e true crime, especialmente por apresentar protagonismo feminino.

Na narrativa, acompanhamos Emily, uma mulher imersa em culpa após a morte súbita de sua filha bebê no berço e a subsequente separação do marido. Como forma de lidar com a dor, ela passa a viver na casa de praia do pai, em um local remoto da Flórida, e a praticar corrida de forma obsessiva, a ponto de vomitar e se machucar durante o exercício.

Um dia, é exatamente esse exercício que a leva a se deparar com uma cena de crime: ao espiar o carro aberto de Jim Pickering, um de seus poucos vizinhos, Emily se depara com o corpo de uma moça cuja garganta foi cortada. A partir desse momento, inicia-se uma caçada entre o assassino e a testemunha, na qual a única saída para a protagonista é correr e usar a força psicológica para não se tornar mais uma vítima do serial killer.

Fazendo um paralelo entre a corrida e a fábula do homem de biscoito de gengibre, que precisa correr para escapar dos humanos que o cozinham e assam, Stephen King entrega uma história que aborda temas como maternidade, luto, perda, morte e a ânsia de lutar pela própria vida, mesmo nos momentos em que ela parece não valer o esforço.

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2) Tudo é eventual (Everything is eventual)

Capa da edição original de "Tudo é eventual" (Everything is eventual), do Stephen King
Capa da edição original | Imagem: reprodução

Com a primeira publicação em 1997 na The Magazine of Fantasy & Science Fiction, o conto “Tudo é Eventual” deu nome à antologia de 2002 e nasceu de um sonho. Mesclando ficção científica com um toque sobrenatural, a história está conectada ao complexo universo da série de oito livros A Torre Negra, fazendo parte do que os fãs chamam de Kingverso.

King constrói o relato de Dinky Earnshaw, um jovem de 19 anos que abandonou o ensino médio e aparentemente tem a vida perfeita: casa e carro próprios, um bom emprego, benefícios e tudo mais que desejar – até mesmo CDs que ainda nem foram lançados, basta anotar no quadro de avisos.

No entanto, tudo isso traz condições muito específicas, afinal, ele não deve pesquisar nem falar sobre seu trabalho, ter contato direto com pessoas conhecidas e precisa gastar os 70 dólares que são colocados em sua caixa de correspondência toda semana – mesmo que precise triturar o troco.

A verdade é que Dinky tem a habilidade de influenciar a vida de pessoas e animais por meio de desenhos e escritos, por isso foi recrutado pelo senhor Shanton para trabalhar em prol de uma organização com interesses políticos.

A situação fica ainda mais estranha quando o rapaz percebe que a instituição tem alterado a sociedade em escala mundial e que seus poderes estão sendo usados para matar muito mais do que meros criminosos.

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3) Vovó (Gramma)

Cena da adaptação cinematográfica "Pacto Maligno" (2004) 
Cena da adaptação cinematográfica “Pacto Maligno” (2004)  | Imagem: reprodução

Tendo sido adaptado duas vezes, em forma de episódio para a série de TV Além da Imaginação em 1986 e como o filme Pacto maligno (Mercy, 2014), o conto “Vovó” foi publicado na Weirdbook Magazine em 1984 e atualmente pode ser encontrado na coletânea Tripulação de esqueletos (Skeleton Crew, 1985), fazendo companhia ao aclamado “O nevoeiro” (The mist).

A história mistura terror psicológico, sobrenatural e cósmico ao seguir George Bruckner, um menino de 11 anos que está em casa com a mãe, Ruth, quando descobre que o irmão Buddy de 13 anos quebrou o tornozelo em um jogo de baseball. Para que a mãe vá buscá-lo no hospital, quilômetros dali, alguém precisa cuidar da avó acamada, de quem George inexplicavelmente morre de medo.

Este é o ponto de partida para que o garoto revive memórias estranhas em sua mente, relacionadas ao comportamento da avó, desde sua expulsão da igreja e do trabalho como professora, até a leitura de livros proibidos em línguas ininteligíveis, o que apenas aumenta seu pavor.

Quando barulhos começam a vir do quarto dela, George precisa encarar a matriarca de frente e descobrir se suas constatações terríveis sobre a própria avó realmente são verdadeiras.

Devido a certas características e criaturas, o conto de Stephen King se encaixa no universo dos Mitos de Cthulhu, criado por H. P. Lovecraft, além de ser uma das várias narrativas que têm como plano de fundo a cidade fictícia de Castle Rock.

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4) A maleta do doutor (The doctor’s case)

Capa da edição brasileira "A maleta do doutor"
Capa da edição brasileira| Imagem: reprodução

Não só de terror e drama vive Stephen King, e “A maleta do doutor” é um exemplo disso. Considerado um pastiche, ou seja, uma obra que reproduz o estilo de determinado artista, no caso, Arthur Conan Doyle, criando mais uma história inédita ao invés de uma paródia, o conto foi publicado na coletânea centenária The new adventures of Sherlock Holmes em 1987 e chegou ao Brasil em 2018 pela editora Nova Fronteira.

A narrativa inspirada no detetive mais famoso depois de Auguste Dupin de Edgar Allan Poe agora está inserida na antologia Pesadelos e paisagens noturnas (Nightmares & Landscapes, 1993).  Temos Dr. Watson narrando a investigação do assassinato de Lord Hull, cujos filhos e esposa, é claro, são os principais suspeitos, enquanto Holmes comicamente encontra-se em uma crise alérgica devido aos diversos gatos do falecido.

A misteriosa morte é considerada um “crime impossível”, ou “the locked-room crime”, muito comum nas narrativas de detetive. Logo descobrimos que Holmes entendeu tudo desde o início, guardando o desfecho para si a fim de ver Watson brilhar.

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5) O vírus da estrada vai para o norte (The road virus heads north)

Cena do episódio da série "Pesadelos e paisagens noturnas"
Cena do episódio da série “Pesadelos e paisagens noturnas” | Imagem: reprodução

Também presente em Tudo é eventual, esse conto de título cativante foi adaptado para a série de TV Pesadelos e paisagens noturnas (Nightmares & Dreamscapes, 2006) e inspirado em um quadro que o próprio King tinha em casa.

Com um toque de O Retrato de Dorian Gray e a ideia de pinturas que ganham vida, conhecemos o famoso escritor de terror e colecionador de bizarrices Richard Kinell em uma viagem de volta para sua casa em Derry, cidade fictícia na qual se passam A coisa (It, 1996) e certas partes de Novembro de 63 (11/22/63, 2011).

No caminho, Richard se depara com uma venda de garagem e decide comprar um quadro intitulado “O vírus da estrada vai para o norte”. A pintura traz um homem de dentes afiados dirigindo um carro e, fascinado pela notícia de que o criador era um pintor insano que queimou todas as suas outras obras antes de tirar sua vida, o escritor decide levar o objeto.

Não demora muito para que Richard perceba que o homem do quadro não apenas se movimenta, mas existe e, como um vírus em transmissão, está cada vez mais chegando perto, pronto para ceifar vidas que respingarão na própria pintura.

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6) Rato (Rat)

Ilustração da capa de "Com sangue", conto de Stephen King
Ilustração da capa de “Com sangue”, conto de Stephen King | Imagem: reprodução

Por fim, apresentamos o conto de “Com sangue” (If it bleeds), uma das quatro histórias que compõem a última e mais recente coletânea do autor, publicada simultaneamente em 2020, com a edição brasileira trazida pela editora Suma de Letras e traduzida por Regiane Winarski.

Em mais uma de suas narrativas que focam em protagonistas escritores e nas temáticas da criação literária, ambição e criatividade, além de trazer o medo comentado na introdução de Tudo é eventual sobre a perda da capacidade de escrever contos ou romances mais extensos, conhecemos Drew Larson, escritor de diversas narrativas curtas que está passando por um bloqueio criativo ao não conseguir finalizar um romance sequer.

Quando finalmente surge a inspiração para escrever um thriller, Drew decide se isolar em uma cabana da família para se concentrar plenamente em seu ofício. No entanto, o local que parecia a solução para seus problemas criativos torna-se fonte de frio e mal-estar.

A aparição de um rato é o que muda tudo, pois o animal propõe uma barganha ao homem: a morte de pessoas amadas em troca de fertilidade de imaginação e fama. Com o contrato feito, a história de Larson nos faz retornar às reflexões iniciais de Stephen King acerca do mercado editorial e o preço que estamos dispostos a pagar ao enxergar a escrita e a leitura apenas como produtos estocados em prateleiras.

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A maestria de King: escrevendo como quem respira

Após a leitura de contos tão promissores, podemos ficar tranquilas quanto ao fato de que, para Stephen King, escrever é tão natural quanto o bombeamento de sangue para o coração. Portanto, o conto jamais se tornará uma arte perdida.

Referências:

Tudo é eventual: surpresas e terrores em contos de Stephen King – Boca do Inferno

Colagem em destaque: Tatiane Machado para o Delirium Nerd

Ilustração: Matthew Bourel

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