Clarice Lispector e as angústias femininas no conto “Amor”

Clarice Lispector e as angústias femininas no conto “Amor”

Clarice Lispector foi (e ainda é) uma das escritoras mais icônicas da literatura brasileira. Sua escrita é, sem dúvidas, única, complexa e intrínseca. Laços de Família, sua segunda antologia, publicada em 1960, não seria diferente. No livro de contos, a autora retrata diversos temas recorrentes em suas obras acerca do caráter feminino, como o papel da mulher na sociedade e na família nuclear.

Clarice Lispector, 1961 | Foto de Claudia Andujar / Fundação Casa de Rui Barbosa
Clarice Lispector, 1961 | Foto de Claudia Anduja

O conto “Amor” de Clarice Lispector

Amor” é um dos contos que melhor ilustra essa temática. Publicado pela primeira vez na coletânea Alguns Contos, em 1952, e posteriormente em Laços de Família, o texto conta a história de Ana, uma dona de casa que, após fazer compras, está voltando para casa de bonde.

Ao analisarmos o enredo de forma isolada, ele é extremamente simples. De relance, o cotidiano de uma dona de casa dos anos 1950 não parece ser uma história particularmente interessante – mas é claro, tratando da Clarice, nada é tão simples assim.

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O fogão enguiçado

Quando se fala em Clarice Lispector, é preciso entender que ela não segue a forma da narrativa tradicional. Os conflitos das narrativas são sempre embaralhados, ou seja, sua abordagem literária desafia as estruturas convencionais, apresentando um conflito interno ao invés de externo.

Em “Amor”, Ana está vivendo mais um dia de sua vida pacata. Não existe um conflito externo a incomodando. Nada de especial está acontecendo. O conto começa com um parágrafo que ilustra isso – ele narra algo muito simples, o rotineiro ato de embarcar em um transporte público:

“Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.”

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Depois desta introdução descritiva, o conto mergulha, aos poucos, na psiquê de Ana. No parágrafo seguinte, um pedaço da vida da protagonista é revelado ao leitor:

“Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros.”

A relação de Ana com os filhos é, aparentemente, uma relação comum entre mãe e filhos, nada fora do esperado para uma dona de casa dos anos 1950.

O interessante do parágrafo é a relação de Ana com o fogão. O aparelho é descrito como defeituoso, danificado. Um fogão que dá estouros cria uma imagem visual e sonora de algo funcionando com dificuldade, dando a ideia de um conflito latente que surge progressivamente dentro de Ana.

Em um fluxo de consciência, o conto descreve a vida banal de Ana e como ela aceitou seu papel de mulher, sem nunca ter pensado sobre outras maneiras de existir. A narrativa segue essa focalização interna até ser interrompida por uma cena que Ana nunca tinha presenciado antes: um homem cego mascando chiclete.

A epifania

Clarice Lispector | Foto: Divulgação/IMS

“O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.”

O fogão enguiçado finalmente implode. Ana sente pelo homem cego uma piedade que nunca havia sentido antes, e dessa piedade surge um conflito existencial. A protagonista começa a enxergar a vida de uma forma diferente.

“E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.”

Esse despertar, esse momento onde ocorre uma revelação interna, é chamado de epifania. Na literatura de Clarice, a epifania dá passagem para a viagem interna nuclear da narrativa. No caso de Ana, ela percebe como a sua vida, até agora, foi limitada. 

Perturbada por sua epifania, Ana derruba as compras do colo. Os ovos se quebram e sujam a sacola de tricô. Os ovos, assim como as escolhas de vida da personagem, eram frágeis. Uma vez que ela percebe o quanto essas escolhas limitam suas experiências, elas se rompem.

Ana desce do bonde na parada errada e decide ir para casa caminhando. Logo, ela se vê em um lugar aonde não iria normalmente: o Jardim Botânico.

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O jardim

Um espaço geográfico novo indica um espaço mental novo. O Jardim Botânico representa o renascimento de Ana. 

Tudo lá é muito monumental. Ana se sente pequena perante a grandiosidade da natureza, mas, ao mesmo tempo, fica encantada com a beleza do Jardim. Ela sente nojo e admiração ao mesmo tempo. 

O Jardim mostra à protagonista não só outras formas de vida, mas também outros sentimentos que ela não sabia serem possíveis de sentir. Ana, possivelmente, não havia se permitido vivenciar o nojo, a repulsa, juntamente com a felicidade, afinal, faz parte do papel de uma esposa, mãe e dona de casa estar sempre contente em fazer o seu serviço.

Ana encontra parte de sua própria humanidade no Jardim. Ela não tem tempo de explorar sua humanidade, afinal, ela lembra que seus filhos estão esperando em casa.

A Ana que chega em casa não é a mesma que saiu para fazer compras. A nova Ana conhece a si mesma e os seus sentimentos. 

Os conflitos internos latentes de Ana são trabalhados ao longo de toda a narrativa. Talvez o leitor pressupunha que ela mude alguma coisa, que perante ao seu descontentamento com a sua vida, ela tome alguma atitude – mas, novamente, tratando da Clarice, nada é tão simples assim.

Ana reconhece seu papel, mas não o altera. Ela chega em casa, cozinha, janta e dorme, para acordar no dia seguinte e repetir o ciclo. Ela se torna um arquétipo social que entende a sua função externa e, por mais que lhe cause dor, a aceita. 

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O convite

Seria errado dizer que a falta de atitude de Ana no final do conto o torna anticlimático. Considerando o foco das narrativas de Clarice nos conflitos interiores, a ausência aparente de ação externa no desfecho é indiferente. Perceber seus sentimentos e refletir sobre o seu lugar no mundo por si só destacam o tumulto emocional que ocorre no âmago da personagem e cumprem seu papel narrativo.

“Amor”, em sua essência, é um convite para mergulhar na psique de uma personagem complexa inserida em um enredo simples. O enredo comum e cotidiano é um recurso narrativo que mostra ao leitor como os enredos internos podem ser mais relevantes do que os externos. 

O conto “Amor” nada mais é do que Clarice convidando o leitor a partilhar da angústia particularmente feminina que ela criou em Ana.

Colagem em destaque: Tatiane Machado para o Delirium Nerd

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Estudante de Letras que (tenta) escrever sobre literatura, cinema e cultura pop.
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