A Hora da Estrela (1985), obra da autora Clarice Lispector adaptada para o cinema pela diretora Suzana Amaral, conta a história de Macabéa (Marcelia Cartaxo), órfã, de 19 anos, uma nortista (não confundir com “cabeça-chata” nem baiana) que vai para a cidade grande após a morte da tia. Datilógrafa, virgem (“virginha”), adora cachorro-quente e coca-cola.
— Escuta, você tá fingindo que é idiota ou é idiota mesmo?
— Eu acho que sou alguma coisa.
Macabéa também é feia (“feíssima — parece um maracujá de gaveta”, “tem cara de quem comeu e não gostou”), desajeitada, sonsa, esquisita, tem cheiro ruim, é suja e nunca vai ser uma artista de cinema porque não tem corpo, não tem cara, não tem “é nada”; não presta nem pra dar cria. Achou pesado? É o que os outros personagens dizem para ela. Macabéa no parque quando conhece seu namorado Olímpico (José Dumont).
Crua como uma flor sem poda, Macabéa tem a disposição de uma criança para aprender. E aprende como? Vendo e ouvindo. Ela penteia os cabelos como a colega de quarto; seca o corpo do mesmo jeito que o namorado após o banho de chuva; copia a pose da manequim da loja de vestidos de noivas, imita a colega de trabalho que passa batom, mente para o chefe e seduz os homens (nesta, falhando miseravelmente). Macabéa também aprende sobre si mesma ouvindo o que os outros têm a dizer sobre ela.
— Por que você não fala de você?
— Eu?
— Por que esse espanto? Gente fala de gente.
— Ah, mas eu não acho que sou muita gente.
— Se você não é gente, que que você é então?
— É que eu ainda não tô acostumada.
— O quê? Não se acostumou com o quê?
— É que eu não sei explicar. Será que eu sou eu?
— Olha, eu vou embora. Eu vou me embora porque você não tem é jeito.
— E o que que eu faço pra ter jeito?
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Sua curiosidade incomoda o namorado Olímpico, paraibano, “um dos últimos guerreiros da grande nação Tabajara”, que reproduz o machismo e transpira masculinidade tóxica. Ao contar para ele uma curiosidade ouvida no seu programa de rádio favorito, Olímpico imediatamente desconfia da veracidade, ou melhor, que Macabéa seja inteligente o suficiente para saber algo como isso.
Quando ela pergunta o significado de cultura, usuário, álgebra, mimetismo, — palavras que também aprendeu no programa de rádio — recebe respostas como “cultura é cultura”, “isso não é coisa pra moça donzela saber não”, “isso é coisa de fresco, de homem que vira mulher, de bixa”. A verdade é que ele tampouco sabe a resposta, mas não assume sua ignorância e despeja nela o desprezo sentido por si mesmo por desconhecer o significado das palavras.
— A zona tá cheia de rapariga que perguntaram demais.
— E onde é a zona, hein?
— É um lugar ruim onde só vai homem. Você não vai entender, mas eu vou te dizer uma coisa: você me custou muito pouco, mas eu não vou gastar mais nada com você.
A Hora da Estrela conversa com a Macabéa adormecida em cada corpo feminino. Mulheres crescem ouvindo que são sujas, vulgares, preguiçosas, gordas demais, magras demais, ciumentas, mentirosas, incapazes de entender alguma coisa ou insira-aqui-outra-característica. De tanto ouvir, principalmente de pessoas que admiram, muitas mulheres acreditam a ponto de se tornar verdade e crescem inseguras em uma tentativa insaciável de se encaixar em padrões que as façam ser aceitas. Submissa, mãe, dona de casa, inocente, educada… Escolha o seu.
— Não reparou até agora que tudo que você fala não tem resposta?
Ainda que aceite as humilhações — muito por não saber que são humilhações — Macabéa reconhece sua essência através de seus sonhos e de seus reflexos (no espelho sujo, na janela quebrada, na vitrine da loja). Quando está sozinha, gosta de ouvir o barulho do tempo (tic, tic, tic), aprende as notícias da Rádio Relógio, escreve, dança livremente, se emociona com música erudita, quer casar e sente desejo sexual. Quem dá força à sua voz interna é a cartomante (por sinal, melhor personagem. Fernanda Montenegro, te amo). Madame Carlota é a única a elogiar o nome de Macabéa. A trata com carinho, a acolhe com empatia, e mesmo mentindo sobre o seu futuro, fortalece Macabéa com palavras que a encorajam sentir orgulho de si.
A hora da estrela chegará para todas. Mas antes que chegue (e quanto antes melhor) é bom que a gente se olhe no espelho, mesmo com a imagem refletida ainda turva, e contemple a nossa essência dando voz à intuição. O amor próprio é a semente para o nosso solo fértil, é preciso fazer a nossa rega diária, uma dose de autocuidado não faz mal a ninguém. É imprescindível que a gente mesmo faça a nossa poda, se livre dos maus sentimentos e das pessoas desagradáveis, mesmo quando as admirávamos. Florescer entre a praga da masculinidade tóxica e prosperar apesar das adversidades, muitas vezes parece não ser possível, mas é.
Autora convidada: Lígia Maciel Ferraz é taurina com lua em peixes, ama animais descabelados e pessoas esquisitas. Ao longo dos anos, entre tantas variáveis, a escrita sempre se manteve constante.