Histórias de Mistério: a “Twilight Zone” feminina e brasileira de Lygia Fagundes Telles

Histórias de Mistério: a “Twilight Zone” feminina e brasileira de Lygia Fagundes Telles

Uma das grandes contistas brasileiras explora a morte e o misterioso em sua pequena coletânea re-lançada pela editora Seguinte.

O conto é gênero literário do recorte, uma espécie de lupa no olhar do escritor. Um delicado pedaço de vida representado em poucas páginas da literatura, mas que possui potencialidades artísticas de forma alguma inferiores ao romance ou à poesia. É um gênero em que os detalhes e minúcias da vida cotidiana tomam proporções de história completa, e onde o fantástico, o suspense e o drama podem ser tratados como uma rápida imersão, em que a volta à superfície da leitura nos remete a um mergulho profundo, porém rápido.

“Juntar duas ou três personagens, criar um determinado clima e deixar correr uma tênue trama pode fazer surgir uma história, mas não garante esse delicado pedaço de vida que é um conto bem realizado.” – Regina Dalcastagnè

Lygia Fagundes Telles é uma escritora veterana de produção vasta. Além de contista, Lygia é romancista, advogada, membra da Academia Brasileira de Letras, e também reconhecida por muitos como uma das maiores escritoras brasileiras do século XX. Sua produção, considerada pós-modernista, agrega crítica social com uma nova representação feminina. Com voz própria e protagonismo, Lygia cria mulheres que desafiam as estruturas de poder ao mesmo tempo que refletem sobre sua participação no jogo social.

Não é espanto que a pequena coletânea lançada em 2004, Histórias de Mistério, que reúne contos presentes em livros anteriores, agrupados pelo tema comum do suspense, consiga abordar uma gama de questões em pequenos recortes misteriosos.

Apesar da centralidade na mulheridade branca e de classe média que há em sua obra, as facetas de diferentes mulheres dentro desse recorte são variadas. São vozes que guiam as trajetórias dos contos, e que partem tanto de jovens universitárias, de primas adolescentes e tias de meia idade, na projeção das percepções de outras mulheres sobre uma nova integrante da família, de uma namorada em Amsterdã e da própria Lygia. Suas versões são expostas e colocadas à crítica.

Imagem: Lygia Fagundes Telles. Crédito: Andre Lessa/AE (reprodução) 

Em Histórias de Mistério, o fantástico e o real se misturam em uma escrita quase visual dos acontecimentos, em que somos transportadas para uma versão feminina e brasileira de Twilight Zone. O mote é simples: a morte é explorada de várias perspectivas. O momento da morte, a espera da morte, o medo da morte, a certeza da morte e a metamorfose da morte.

São seis breves histórias, que começam com a adrenalina de uma caçada, em que não sabemos que posição ocupamos, a do caçador ou da caça. O cheiro do medo da morte e da confusão do momento final exalam das palavras de suspense da escritora. As alucinações do momento final lembram a cena marcante de morte do romance de Osman Lins, Avalovara, em que o escritor também usa das metáforas literárias e do fluxo de pensamento e memória para representar o irrepresentável: o momento final da vida de alguém.

Em “A caçada”, de Lygia, um retrato de uma cena de caça em uma tapeçaria é ao mesmo tempo, o começo e a própria história de quem não se sabe caçador, ou caça. Em “As formigas” é a natureza e o passado que trabalham para confundir as expectativas de duas estudantes em uma pensão. Uma caixa de ossos, uma trilha de formigas, uma anfitriã suspeita e acontecimentos inexplicáveis vão construindo um suspense que instiga o escape: físico e mental das situações que não fazem sentido lógico no mundo prático. Estaremos a salvo do desconhecido por meio da fuga? Lygia não responde.

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“Natal na barca”, o isolamento do mar aberto e o pânico do momento da morte nos transportam para os braços da transeunte que carrega seu bebê doente. Pelos olhos da narradora sem nome e sem destino conhecido, ficamos a par de uma história de sofrimento e superação, de uma mãe solitária e abandonada que carrega o filho com esperança. Entre o ceticismo da narradora e esperança da mãe, entramos em contato com um desconhecido surpreendente.

“O jardim selvagem” é um dos contos que também integra a coletânea “Antes do Baile Verde“, lançada em 1970. Mas em Histórias de Mistério, o conto contribui para o clima de suspense que permeia todo o livro. “Jardim Selvagem” é como a moça Daniela, esposa do tio do narrador do conto, é descrita pela família de seu amado. Conhecemos Daniela apenas pelos comentários da sobrinha e sua tia, que entre preconceitos, ciúmes e curiosidade, tentam entender o comportamento da moça misteriosa que sempre usa uma luva em sua mão direita. A presença de Daniela e suas convicções vão afetar diretamente no cotidiano dessa família.

Talvez o conto mais metafísico dessa coletânea seja “Lua cheia em Amsterdã”, em que a briga cansada de um casal que se questiona sobre o fim do amor se mistura com a dança dos animais que habitam a cidade. Ali, em meio à fome de uma viagem mal planejada e dificuldade de comunicação que o casal enfrenta na cidade, as pequenezas de um fim são explorados a ponto de mudarem de forma e de significarem coisas além. O relacionável da situação humana comum do casal, logo se transforma em mistério.

Já em “Onde estiveste de noite?” quem habita o mistério é a própria Lygia. Essa história se trata da noite anterior à morte de sua amiga e também escritora, Clarice Lispector. Amizade, cumplicidade existencial e memória se embaralham no vôo da andorinha que noite adentro invade o quarto, os sonhos e o inconsciente de Lygia que relata sua despedida de sua amiga, mesmo sem saber.

É por meio desses breves recortes que as histórias e os mistérios de Lygia nos envolvem e permitem mergulhar no mundo dos desconhecidos, em que coisas incríveis e amedrontadoras podem acontecer, sem que a explicação seja entregue à leitora. Os mistérios existem ao nosso lado.


Histórias de Mistério

Lygia Fagundes Telles

Companhia das Letras / Editora Seguinte

64 páginas

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Feminista Raíz
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