“A Câmara Sangrenta” e o monstro como metáfora

“A Câmara Sangrenta” e o monstro como metáfora

O que torna os contos de fadas tão fascinantes? Poderiam eles revelar aspectos de nossos desejos, medos e fantasias que não deixamos transparecer explicitamente na nossa vida cotidiana? 

Esse parece ser o ponto de vista da escritora inglesa Angela Carter. Autora de contos, romances, poemas e peças teatrais, suas obras revelam um interesse pelo fantástico e o gótico e, mais precisamente, pela maneira como esses elementos evidenciam características submersas da natureza humana. Entre sua vasta produção literária, talvez nenhum trabalho capture esses assuntos tão bem quanto seu livro de contos A Câmara Sangrenta.

O livro contém dez contos inspirados no folclore e nas tradições orais europeias. Por meio de releituras de famosos contos de fadas, Carter objetiva, em suas palavras, extrair o conteúdo latente das histórias tradicionais e usá-lo como início de novas histórias”. Portanto, suas histórias não se limitam a mera reinterpretação dos contos originais, mas representam abordagens alternativas que buscam reimaginar essas histórias sob um olhar crítico contemporâneo. 

Capa do livro A Câmara Sangrenta de Angela Carter.
Capa do livro A Câmara Sangrenta de Angela Carter | Imagem: reprodução

O resultado se revela impressionante: as dez histórias revisitam os contos clássicos sob uma perspectiva feminista e reconfiguram a figura do monstro nos contos de fadas como um símbolo da sexualidade.

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Monstros, vítimas, desejo

Algumas histórias de A Câmara Sangrenta seguem uma estrutura semelhante: uma jovem se depara com um homem que está no limiar entre o humano e o monstruoso. Esses encontros se desenrolam de diversas maneiras. No conto “A Câmara Sangrenta“, inspirado no conto do Barba Azul, uma jovem pobre é seduzida por um misterioso homem rico.

Em “A Noiva do Tigre“, uma reinterpretação de A Bela e A Fera, a protagonista é obrigada a habitar a mansão de um Homem-Tigre após seu pai perdê-la em um jogo de cartas. Esses encontros têm um impacto profundo nas vidas das jovens protagonistas, as quais devem confrontar esse “outro” que até então existia apenas como um fragmento de suas imaginações.

O que diferencia as histórias de Angela Carter dos contos de fadas que a inspiraram está, sobretudo, na personalidade de suas protagonistas femininas. Carter subverte os contos tradicionais ao posicionar suas protagonistas femininas além do papel de vítimas.

A relação delas com a própria sexualidade ilustra esse papel mais emancipador. Enquanto nos contos originais, as garotas eram frequentemente retratadas como mártires da inocência e da pureza, aqui, Carter permite que suas protagonistas encontrem poder na expressão de sua sexualidade. Elas conquistam agência sobre os seus próprios corpos e sobre os monstros.

As personagens femininas nos contos de fadas de Angela Carter

Dessa forma, as mulheres retratadas por Angela Carter nunca podem ser vistas meramente como objetos do desejo masculino. Em vez disso, a autora procura evidenciar o desejo feminino em suas histórias.

A figura do monstro masculino, portanto, assume uma posição complexa em seus contos. Alguns deles, de fato, representam uma ameaça à integridade das protagonistas; no entanto, também simbolizam o despertar sexual pelo qual elas passam.

Ao se submeterem a esses monstros/homens, elas tomam uma decisão consciente de abandonar uma vida tradicional em busca de outro aspecto de sua feminilidade, afastando-se das expectativas que a sociedade impõe sobre as mulheres.

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Angela Carter, 1988
Angela Carter, 1988 | Imagem: Getty Images

Quando o monstro é uma mulher

Um conto se destaca de maneira significativa em A Câmara Sangrenta. Em “A Senhora da Casa do Amor“, temos um protagonista masculino, um jovem soldado inglês que viaja pela România. Em um vilarejo abandonado, o jovem encontra uma mansão habitada por uma mulher misteriosa e sua criada.

O lugar, sujo e decadente, parece esconder glórias do passado que assombram o rapaz durante a sua estadia. A senhora da mansão, entretanto, se mostra prestativa e gentil, oferecendo-o comida e um lugar para dormir. Além disso, sua beleza lhe chama a atenção, e o rapaz é aos poucos fisgado pela teia de sedução orquestrada pela mulher. 

O lugar, sujo e decadente, parece esconder glórias do passado que assombram o rapaz durante a sua estadia. A senhora da mansão, no entanto, se mostra prestativa e gentil, oferecendo comida e um lugar para dormir. Além disso, sua beleza chama a atenção do rapaz, e ele é gradualmente atraído para a teia de sedução orquestrada pela mulher.

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Ao longo do conto, descobrimos que a senhora da mansão é uma vampira que há muitos anos reside na mansão abandonada, seduzindo homens jovens e os matando para se alimentar. A sua condição é tratada como uma maldição – ela não consegue escapar da sua natureza perversa, sendo controlada pelos seus próprios desejos.

O desejo feminino na monstruosidade

Um tema que ressoa na coleção de contos é a complexidade emocional de seus personagens monstruosos. Assim como os protagonistas não são apenas vítimas, os monstros não são meros vilões. Carter, portanto, nos impulsiona a sentir um certo grau de empatia por eles.

Afinal, como personagens de um romance gótico, eles são constantemente arrebatados por seus mais profundos desejos, que os controlam e ditam suas ações. Isso é nítido em A Senhora da Casa do Amor; a vampira apenas se alimenta de suas vítimas devido à sua necessidade biológica.

O contraste com os outros contos de Carter se torna evidente: dessa vez, é o personagem masculino que é virginal e inexperiente, enquanto a criatura misteriosa e insaciável que ameaça os padrões de comportamento social é uma mulher. Com isso, a metáfora para o desejo feminino é ainda mais enfatizada ao ser materializada na figura do monstro.

Se tornando o monstro

Durante uma entrevista para a BBC em 1981, Angela Carter comenta sobre o seu fascínio pelo conto de fadas A Bela e A Fera e como ela interpreta o significado simbólico da Fera:

“A Fera é a sexualidade, obviamente. Mas na maioria das interpretações psicanalíticas, a Fera é a sexualidade masculina, essa coisa áspera e peluda que as mulheres têm de aprender a se adaptar, e a enxergar o humano que há nela

(…)

O que me parece é que a maioria precisa se adaptar à própria sexualidade (…) É por isso que, Bela, em A Noiva do Tigre se transforma em uma fera”. (tradução própria)

O monstro é, portanto, uma representação direta da sexualidade humana, compreendendo os desejos mais obscuros e subconscientes que temos dificuldade em aceitar.

Carter acredita que esses desejos não se restringem apenas aos homens; mulheres também os experienciam, por isso elas também podem ocupar o lugar do monstro em uma narrativa.

No caso de A Noiva do Tigre, Carter escreve sobre uma garota aos poucos aceitando seus sentimentos pela Fera, o que a leva a também se tornar uma fera. Esse é o poder transformador do desejo: nos metamorfosear de volta nos animais que sempre fomos.

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Formada em Letras, mestranda em Literatura. Grande apreciadora do surreal, do fantástico e do onírico. Passa boa parte do seu tempo livre pensando e escrevendo sobre mulheres fictícias.
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