Baba Yaga: uma figura má ou injustiçada do folclore eslavo?

Baba Yaga: uma figura má ou injustiçada do folclore eslavo?

A bruxa da floresta que vive em uma cabana de madeira e que atrai transeuntes inocentes – normalmente moças jovens e crianças – para um destino terrível. Em quantos contos de fadas, produções audiovisuais e livros todas nós já não vimos essa mesma premissa de vilã? E a imagem vem bem clara à mente: uma senhora de idade muito avançada, com um nariz grande, corcunda e olhos maléficos. Embora na maioria dos casos essa personagem popular nem sequer ganhe um nome, na cultura eslava ela é chamada de Baba Yaga e não, John Wick, ela não guarda nenhuma semelhança com o Bicho Papão.

Quem é Baba Yaga?

A título de apresentação, trazemos aqui a definição de Baba Yaga segundo o livro Folktales and fairy tales: traditions and texts from around the world:

“Baba Yaga é a bruxa preeminente notoriamente ambígua do folclore eslavo. Seu nome é sinônimo do termo russo ‘ved’ma‘ (bruxa) e suas variantes regionais. Ela é uma espécie de genius loci (espírito protetor) para os valores e associações que se ligam ao arquétipo da ‘bruxa na floresta’ na tradição eslava. […] Ela está ligada aos dragões, aos quais às vezes é chamada de mãe, e  aos espíritos da floresta em que reside e à fronteira entre a vida e a morte, sobre a qual reina.”¹

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Baba Yaga. Ilustração de Ivan Bilibin, 1900.
Ilustração de Ivan Bilibin, 1900.

A maioria das fontes localizadas dizem que o primeiro registro escrito de Baba Yaga data do século XIX, embora não seja impossível imaginar que ela já existisse na cultura oral há muito mais tempo. Além das características já citadas, a bruxa se locomove em uma espécie de pilão voador ou almofariz de ferro – que ela controla com um galho grande de árvore ou um pistilo ou ainda uma vassoura – e sua cabana na floresta tem um ou dois pés de galinha, o que a torna quase como uma outra personagem que faz dupla com sua moradora. 

Mesmo que Baba Yaga seja notoriamente vista como uma vilã, quando aprofundamos um pouco mais em suas representações, há uma dúvida sobre a sua verdadeira natureza: será que ela é realmente – e puramente – do mal? Através de algumas representações mais famosas da personagem, buscamos ferramentas para refletir sobre isso.

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Baba Yaga em “Vasilissa, a Bela”

De acordo com a antologia Contos de fadas em suas versões originais, da editora Wish, “Baba Yaga e Vasilissa, a bela” é um conto que data de aproximadamente 1855 e é assinado por Alexander Afanasyev (1826- 1871), um prolífico escritor russo de contos de fadas. Esta será a versão da história narrada aqui e, como se trata de uma narrativa longa pelos padrões de contos de fadas, omitimos diversos detalhes e nuances do texto original. 

Vasilissa na cabana de Baba Yaga. Ilustração de Ivan Bilibin, 1899.
Vasilissa na cabana de Baba Yaga. Ilustração de Ivan Bilibin, 1899.

A história começa com a morte da mãe de Vasilisa, esta última uma bela e jovem menina filha de um mercador. Seu pai casa-se de novo após o período de luto. A nova madrasta tinha duas filhas e logo se mostrou ser uma pessoa má. As irmãs, igualmente malvadas, obrigavam a pobre Vasilisa a fazer trabalhos domésticos. A única coisa que mantinha a pobre heroína ainda em plena sanidade era uma bonequinha de madeira que sua mãe lhe dera em seu leito de morte.

A boneca, que era dotada de consciência, a aconselhava, protegia e até fazia algumas das tarefas que eram de sua responsabilidade. Após a madrasta dar um golpe em seu pai e fugir com as filhas e a enteada com todos os bens do marido, as mulheres foram morar próximo a uma floresta. Em um plano arquitetado junto de suas filhas, a madrasta consegue um meio de obrigar Vasilisa a buscar fogo na cabana de Baba Yaga. 

A cabana é descrita como “miserável […] sobre seus pés de galinha. A parede ao redor […] era feita de ossos humanos e no seu teto havia caveiras. Havia um portão no muro, cujas dobradiças eram ossos de pés humanos e, as fechaduras, ossos de mandíbulas humanas, com dentes afiados.” E quando chegada a noite, “todos os olhos das caveiras se acenderam e brilharam até o local se tornar claro como o dia.

Quando a dona da casa aparece, aceita ajudar Vasilisa com o fogo, mas com a condição de que a moça trabalhasse para ela por algum tempo sob a ameaça de que a devoraria caso não fosse obediente. 

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A bruxa ilustrada pelos traços de Viktor Vasnetsov (1917)
Baba Yaga, obra de Viktor Vasnetsov, 1917.

A bonequinha de Vasilisa a ajuda com a maioria das tarefas impostas pela bruxa. Após alguns dias, Vasilisa conta da benção que carrega consigo de sua mãe e a bruxa, enojada, a expulsa com o fogo que prometera. O fogo, contido em um crânio, era mágico e matou queimadas as meia-irmãs e a madrasta malvada de Vasilisa. No final de tudo, Vasilisa acaba casada com o próprio Czar.

Cabe aqui diversas interpretações do que pode significar toda essa trajetória de Vasilisa, de sua orfandade até o título de rainha². Vasilisa começa sua jornada perdendo a primeira figura feminina importante em sua vida: a própria mãe. Com a bênção que recebe dela, enfrenta então a segunda figura feminina personificada em sua madrasta má. Essas mulheres apenas a maltratam e obrigam a cumprir tarefas domésticas. Após esse período de provação, a heroína chega a mais um ciclo de desafios na cabana de Baba Yaga. 

Baba Yaga abusa da bondade de Vasilisa, torturando-a com a ameaça de devorá-la e obrigando-a a cozinhar e limpar. Porém, a bruxa não descumpre com sua palavra: liberta a menina com o que foi prometido e ainda a livra dos sofrimentos que vivia com as três mulheres odiosas. E guarda ainda mais uma diferença fundamental das outras: ela não é humana. É uma verdadeira força da natureza, e talvez até uma personificação da própria natureza em sua luz e, principalmente, sombra

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No seguinte diálogo entre Vasilisa e a bruxa, descobrimos que Baba Yaga detém poder sobre os astros: 

“ – Bem… – disse a velha bruxa – só lembre que cada pergunta não levará a nada bom. Se sabe demais, envelhecerá muito cedo. O que deseja perguntar?

– […] Quando vim para a sua cabana, um cavaleiro passou por mim. Ele estava todo vestido de branco. E galopava em um cavalo branco como leite. Quem era ele?

– Aquele era meu dia branco e brilhante – respondeu Baba Yaga com raiva – Ele é um servo meu, mas não pode machucá-la. 

[…]

– Um segundo cavaleiro me ultrapassou. Ele estava todo vestido em vermelho e cavalgava um cavalo vermelho como sangue. Quem era ele?

– Esse era meu servo, o sol, redondo e vermelho; e ele, também, não pode feri-la 

[…]

– Um terceiro cavaleiro […] veio galopando sobre o portão; ele era negro, suas vestes também eram negras e seu cavalo negro como o carvão. Quem era ele?

– Esse era meu servo, a noite negra e escura! […] Mas ele também não pode fazer mal a você.”

A história de Vasilisa é sobre crescimento e amadurecimento que passa pela fase doce da companhia materna, pelo luto, abusos e, enfim, felicidade. Baba Yaga cumpre uma tarefa fundamental neste ciclo – embora de forma dolorosa, pois a natureza não segue princípios humanos de bem ou mal –  ensinando-a a buscar a própria sobrevivência em tempos de adversidade.

A representação da bruxa em “A princesa sapo”

Koschei e Vasilissa no média-metragem Царевна-лягушка (1954), de Mikhail Tsekhanovsky.
Koschei e Vasilissa no média-metragem Царевна-лягушка (1954).

A União Soviética ficou muito conhecida por seu cinema e suas animações adaptaram diversos contos infantis populares na cultura eslava e no mundo. Em 1954, uma dessas produções traz um outro papel para a velha bruxa que não a de vilã. Царевна-лягушка (“Princesa sapo”, em tradução literal) é um média-metragem dirigido por Mikhail Tsekhanovsky e adapta a história de uma outra Vasilisa.

Aqui, a protagonista é uma moça linda que vive na floresta até que é raptada e transformada em sapo pelo malvado Koschei, o imortal. Um dia, um dos príncipes daquela região, se vê obrigado a casar-se com ela, que ainda está sob a forma animal. Apesar do desgosto, Vasilisa prova ser uma companhia valiosa e o príncipe acaba se apaixonando. Mal se inicia a história de amor, Koschei rapta Vasilisa novamente e o príncipe deve resgatá-la com a ajuda da sábia Baba Yaga, a única que sabe como derrotar Koschei.

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A animação é bem humorada  e traz uma Baba Yaga que é apenas uma bruxa, sendo que a própria Vasilisa já ocupa o cargo de bruxa boa (a protagonista realiza várias mágicas pequenas ao longo da história) e Koschei, de bruxo mau. Ela realmente ajuda o príncipe dizendo exatamente o que ele deve fazer e garantindo o sucesso da missão. Pode-se concluir, então, que nesta produção Baba Yaga desempenha o papel da velha sábia. 

Baba Yaga e o príncipe no média-metragem Царевна-лягушка (1954), de Mikhail Tsekhanovsky.
Baba Yaga e o príncipe no média-metragem Царевна-лягушка (1954).

Esta dicotomia entre o que se espera de uma bruxa e o que ela realmente faz e representa em uma história, é uma nuance bem explorada no artigo “Who’s afraid of Baba Yaga? A reading of ageing from the gender perspective”: “A aparência física de Baba Yaga – nariz pontudo, sobrancelhas fartas e juntas, pés grandes, seios enormes e caídos… – não atende a nenhum padrão físico-estético controlado por uma corporação imposto às mulheres, o que a classifica além da mitologia artificial atual da beleza feminina. […] Baba Yaga é caprichosa, insaciável, mal-humorada, sem companheiro, mas às vezes age como uma mãe auto suficiente de pequenos seres humanos”³. Quando contraria as normas dos códigos que definem uma mulher ideal, a velha bruxa também é temida por ser independente e ambígua

Dentro e fora da União Soviética e da Rússia atual, Baba Yaga continua morando em sua cabana de ossos dentro do nosso imaginário. A conclusão que se pode chegar sobre sua natureza é que sua força reside em sua própria contradição. Ela se permite ser boa, má, justa e injusta. Está aquém de qualquer necessidade de aprovação, no limiar dos mundos, nos provocando a encontrar em nós mesmas as respostas para os desafios humanos. 

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Notas:

  • 1 Tradução nossa.
  • 2 Inclusive, em uma nota de rodapé, o livro destaca que Vasilisa é um nome comum nos contos de tradição eslava e, sendo uma versão feminina do nome “Basil”, significa “rainha”.
  • 3 Tradução nossa. 

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Criança dos anos 2000, filha do cerrado mato-grossense, estudante de História(s) e pesquisadora da cultura. Aspirante a crítica.
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