O gótico feminino nos filmes de Walter Hugo Khouri

O gótico feminino nos filmes de Walter Hugo Khouri

Walter Hugo Khouri foi um diretor singular na cinematografia brasileira, com uma filmografia que abrange 26 longas-metragens, explorando diversos gêneros e um olhar apurado para a classe alta no Brasil. A partir desse enfoque, surgem personagens femininas fascinantes e complexas que dialogam com elementos da ficção gótica. A abordagem do gótico feminino nos filmes de Khouri oferece um terreno rico para reflexões sobre as relações entre mulheres.

Walter Hugo Khouri e o retrato da burguesia brasileira

Nascido em São Paulo em 1929, Khouri tinha ascendência italiana e libanesa. Demonstrando, desde cedo, interesse pela escrita, música, filosofia e cinema, ele passou por experiências diversificadas. Além disso, envolveu-se na pré-produção de filmes, fez adaptações para teleteatro e manteve uma coluna no jornal O Estado de S. Paulo. Posteriormente, direcionou suas energias para o cinema.

A filmografia de Khouri pode ser categorizada em três fases distintas. Inicialmente, sua primeira fase é fortemente influenciada por cineastas renomados, tais como Ingmar Bergman, Josef von Sternberg, Val Lewton e o expressionismo alemão.

A segunda fase, por sua vez, explora profundamente questões existenciais, sobretudo em meio à sensação de alienação experimentada pela burguesia da época.

Por fim, a terceira fase apresenta títulos que incorporam elementos do estilo pornochanchada. Nessa etapa, Khouri habilmente equilibra as demandas tanto comerciais quanto artísticas que prevaleciam naquele contexto.

Walter Hugo Khouri
Walter Hugo Khouri | Fonte: Revista Cult

Renato Luiz Pucci Jr., em seu trabalho intitulado “O equilíbrio das estrelas: filosofia e imagens no cinema de Walter Hugo Khouri” (2001), destaca uma característica particularmente intrigante na obra do diretor. Pucci Jr. identifica os filmes como uma espécie de “obra-curso”, uma abordagem em que situações e personagens se entrelaçam de maneira intricada, o que pode dificultar análises abrangentes devido à riqueza abundante de imagens, ideias e personagens presentes no universo khouriano.

No entanto, o foco principal reside nas personagens femininas. Enquanto Khouri é amplamente reconhecido por sua abordagem cinematográfica que explora a burguesia, realizando discussões formalistas, universais e metafísicas, ele também apresenta um enfoque significativo nas mulheres pertencentes à classe média brasileira. Sua filmografia oferece uma perspectiva profundamente valiosa, a qual merece ser investigada de forma mais aprofundada para compreendermos sua relevância e complexidade.

Alguns apontamentos sobre o gótico feminino no cinema

Laura Cánepa desempenha um papel importante ao analisar o filme O Anjo da Noite (1974) de Khouri a partir da perspectiva da tradição da literatura gótica do século XVIII. Essa abordagem posteriormente servirá de inspiração para o subgênero cinematográfico do gótico feminino tanto em países latino-americanos quanto em Hollywood.

Cartaz de "O anjo da noite" (1974) de Khouri
Cartaz de “O anjo da noite” | Fonte: The Movie Database

O protagonismo feminino durante a década de 1940 nos filmes estadunidenses abriu caminho para o que se caracterizaria como os “filmes de mulher”. Esse caráter híbrido também deu origem aos “filmes de mulheres paranoicas“, como destacado por Mary Ann Doene (1987).

Nesses filmes, exemplificado pelo clássico Rebecca, a Mulher Inesquecível (1940) de Alfred Hitchcock, a ameaça vivida pelas mulheres cria uma atmosfera de mistério. A história verifica a validade do olhar feminino, frequentemente relegado a uma espécie de inferioridade psicológica.

Cena de "Rebecca" com Joan Fontaine e Judith Anderson
Cena de “Rebecca” com Joan Fontaine e Judith Anderson | Fonte: La Vanguardia

Nos filmes de Khouri, o espaço é ocupado por essas figuras, seus medos, anseios e pensamentos. Na dupla escolhida – As Filhas do Fogo (1978) e Amor Voraz (1984) – é possível reconhecer um encontro intrigante entre o gótico feminino e conexões evidentes com o horror.

Uma atmosfera gótica na obra de Walter Hugo Khouri

Daniel Serravalle de Sá, em seu livro Vertigo: Vertentes do Gótico no Cinema (2017), já havia estabelecido a relação entre o gótico feminino e a obra de Khouri. Essa observação se confirma, por exemplo, na utilização do trope da mansão antiga – os antigos castelos medievais agora se materializam nos casarões burgueses em contexto nacional.

O espaço desempenha um papel crucial no âmbito do gótico feminino, no entanto, é relevante considerar outras circunstâncias relevantes.

É fundamental lembrar que o conceito de Female Gothic, conforme elaborado por Ellen Moers, abrange narrativas que retratam mulheres confinadas em uma fragilidade tanto mental quanto física, gerando uma sensação de ansiedade em relação aos seus próprios corpos.

No entanto, o alcance do gótico feminino transcende a representação de figuras enclausuradas exclusivamente em ambientes domésticos. O termo, mencionado por Moers, estende-se para abranger a literatura gótica produzida por mulheres no século XVIII, bem como a centralidade das personagens femininas nessas tramas.

Esse contexto foi fundamental para realçar, ao longo do tempo, as questões da política sexual no pensamento das gerações feministas subsequentes. Portanto, é válido lembrar de textos seminais como Frankenstein (1818) de Mary Shelley, que, na leitura de Moers, alude às experiências decorrentes da maternidade.

Assim, nos dois filmes de Khouri que discutiremos aqui, a atualização do gótico feminino ocorre pela evocação dessas experiências dentro do ambiente doméstico, ou pelo menos do que é considerado doméstico nessas narrativas.

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As filhas do fogo

Em As Filhas do Fogo, acompanhamos a viagem de Ana (Rosina Malbouisson) à Serra Gaúcha para visitar sua namorada, Diana (Paola Morra), uma jovem abastada de origem alemã, órfã de mãe e distante do pai. Os dias são angustiantes; Ana fica apreensiva e sente-se observada constantemente durante os passeios na mata.

Cartaz de "As filhas do fogo"
Cartaz de “As filhas do fogo” | Fonte: Banco de Conteúdos Culturais

Durante uma caminhada matinal, o casal encontra Dagmar (Karin Rodrigues), amiga da falecida mãe de Diana, que está captando sons na floresta. Dagmar convida as jovens para sua casa, onde elas descobrem que ela trabalha captando vozes de pessoas falecidas. Ao mesmo tempo, Dagmar organiza uma festa tradicional em que todos devem estar fantasiados.

As fantasias são providenciadas por um grupo de mulheres mais velhas que vivem com Dagmar. Nesse meio tempo, um forasteiro pede abrigo na casa de Diana e, mais tarde, uma discussão entre os dois deixa um clima tenso. O forasteiro é encontrado morto submerso em um lago no dia da festa. A dupla se prepara para a noite e, ao chegar à casa de Dagmar, descobre que a festa não acontece há 10 anos.

A mãe de Diana, Silvia (Selma Egrei), aparece do além, e Ana desfalece de susto. Diana mata Dagmar e fica presa na casa tomada pela vegetação. Mariana (Maria Rosa) – uma espécie de governanta da casa de Diana – é a única sobrevivente.

Amor Voraz

Em Amor Voraz, Anna (Vera Fischer) é uma jovem que sofre de distúrbios psicológicos e, portanto, foi isolada pela mãe para tratamento. Sua amiga de infância, Cléia (Lucinha Lins), acompanha seu caso de perto, propondo um tratamento alternativo sem medicamentos.

Cartaz de "Amor voraz"
Cartaz de “Amor voraz” | Fonte: Banco de Conteúdos Culturais

No casarão isolado, as mulheres cuidam de Anna, incluindo a governanta Silvia (Marcia Rodrigues) e a jovem Julia (Bianca Byington), adotada pela família. Em uma noite, Anna encontra um homem emergindo das águas, um alienígena (Marcelo Picchi), com quem ela consegue se comunicar apenas por pensamento.

A estranheza do encontro é vista pelas outras mulheres como um agravamento da condição psicológica de Anna. A figura masculina também causa agitação, ciúmes e brigas, pois pouco se sabe sobre ele.

Esses mistérios aguçam a curiosidade de Julia, uma ligação corpórea e sexual entre Anna e a preocupação de Silvia. A irmã de Anna, Mariana (Cornélia Herr), aparece para resolver a situação. Mesmo sofrendo de algum distúrbio, ela visita a irmã e redireciona o estranho homem para o seu próprio mundo.

O gótico feminino em dois filmes de Khouri

Em ambos os filmes, a dinâmica do aprisionamento é recorrente. Diana vive em uma casa onde a floresta foi destruída por seu avô e depois reconstruída com plantas alemãs. Anna vive em um ambiente dominado por mulheres, igualmente aprisionante, que é desestabilizado pela chegada de um alienígena.

Ambos os casarões envolvem muitas mulheres: elas vivem, constroem relacionamentos amorosos, brigam, cuidam de si e umas das outras e, por fim, assumem posições importantes.

Em Filhas do Fogo, a figura de Mariana, uma mulher de origem afroameríndia, atua como governanta da casa. Sua família, que trabalha ali há gerações, estabelece uma relação de classe mais evidente quando ela se torna a única sobrevivente no final.

Mariana (Maria Rosa) em "Filhas do Fogo" (1978)
Personagem de Mariana | Fonte: Banco de Conteúdos Culturais, Cinemateca

Em Amor Voraz, as mulheres que cercam Anna parecem estar cansadas de sua “loucura”, o que não cria um ambiente feminino agradável em grupo. Essa situação antecipa discussões sobre as individualidades das mulheres, uma perspectiva muito valorizada pelo feminismo.

Além de focar nas rotinas – saúde mental, relacionamentos amorosos e dinâmicas locais -, também destacamos as abordagens sobre a maternidade. Em outras palavras, mães ausentes e presentes, mães que rejeitam suas filhas ou mães vivas que escondem suas próprias criações: muitas mães, muitas vidas.

Dessa forma, as temáticas da “esfera privada” enfocam um debate fundamental para o pensamento feminista, remontando a Simone de Beauvoir: a noção de que o pessoal é político.

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Diálogos com a historicidade das mulheres no Brasil

Os dois filmes mencionados estão relacionados a momentos cruciais do movimento feminista brasileiro, que teve seu início durante a ditadura militar (1964-1985). Grupos de mulheres, em sua maioria de classe média com acesso à educação universitária, realizavam reuniões internas para discutir sua condição.

Apesar de não abordarem as discussões interseccionais de raça e classe, esses grupos promoviam um ativismo político paralelo à conjuntura de opressão. Albertina Costa, em É Viável o Feminismo nos Trópicos? (1988), reconhece essa atividade de luta e reflexão entre mulheres como uma “atividade política esquizofrênica”, um termo apropriado ao considerar o cenário gótico apresentado aqui.

Assim, mesmo enquanto essas mulheres eram confinadas ao ambiente doméstico, elas o faziam para desafiar as questões de gênero, mesmo que de forma limitada.

E apesar da distância temporal que nos separa das histórias de Khouri, essas circunstâncias confirmam o quão significativo é resgatar a história das mulheres que vieram antes de nós, mesmo que sob a perspectiva de um homem. Isso demonstra como é enriquecedor trazer à tona essas narrativas do passado para o presente.

Colagem em destaque: Isabelle Simões para o Delirium Nerd.

Escrito por:

Com formação em Rádio e TV, construí toda uma trajetória em torno da pesquisa acadêmica sobre o cinema - com destaque para as produções nacionais e suas relações com o feminismo. Sou roteirista e professora de comunicação e artes. Escrevo contos sobre a experiência de mulheres que já passaram pela minha vida!
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