O terror e o universo inabitável nos jogos da desenvolvedora Kitty Horrorshow

O terror e o universo inabitável nos jogos da desenvolvedora Kitty Horrorshow

O terror é um gênero que permite explorar a criatividade com maior facilidade. É a escolha de quem deseja uma maior liberdade de expressão em seus trabalhos, uma vez que não tem compromisso com a realidade nem com a retenção de um grande público.

Possessões demoníacas representando dificuldades internas, casas assombradas como metáfora para lares disruptivos ou assassinatos em série como consequência para jovens descuidados. É comum delinear esses temas dentro das obras de terror, que procuram representar sentimentos cruéis e inexplicáveis de forma lúdica.

É por meio das produções assustadoras que muitos artistas conseguem abordar temas sensíveis e socialmente mal vistos. O terror é uma categoria ligada ao abstrato, que explora o subconsciente humano em busca da forma mais eficiente de atingir o espectador. Por isso, o uso de analogias, metáforas e tendências artísticas expressionistas encontra seu espaço nesse gênero.

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É possível encontrar exemplos desse estilo em diversas mídias. No universo dos videogames, essa estética já esteve presente em jogos como Silent Hill, Clock Tower, Fran Bow e Omori, que utilizam elementos abstratos e narrativas incertas para ilustrar a realidade do luto, das doenças mentais e outras questões internas.

Talvez como referência, talvez como local de escape, também é na profundeza das questões existenciais do ser humano que a desenvolvedora Kitty Horrorshow pauta seu trabalho.

Introduzindo o terror de Horrorshow

Captura de tela do jogo "Grandmother's Garden", mostrando a personagem jogável em meio a uma floresta sombria.
Captura de tela do jogo “Grandmother’s Garden”. | Via kittyhorrorshow.itch.io

Kitty Horrorshow é uma desenvolvedora de jogos independente especializada no gênero de terror psicológico. Em seu trabalho, ela explora uma estética com um sentimento familiar, já que a ambientação de seus jogos é similar à dos videogames antigos, no início da habituação com ambientes virtuais 3D.

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Todos os trabalhos de Kitty contam uma história que depende da exploração do jogador para se desenrolar. Portanto, seus jogos são de curta duração, com muitos textos e um universo jogável reduzido. Mesmo assim, o impacto emocional e sensorial é suficiente para tornar cada experiência inesquecível.

Um formato constante nos jogos da desenvolvedora, por exemplo, envolve a combinação de pequenos recados que surgem como jumpscares na tela, junto com a ambientação do próprio jogo. Isso ajuda a tornar a atmosfera mais tenebrosa e a adicionar trilhas sonoras mais estridentes ao longo da jogabilidade.

As temáticas das produções de Kitty são intensamente subjetivas. Ela insere indícios do que o material pode representar, e há uma tendência por parte do público de relacionar alguns dos jogos com alguma faceta pessoal da artista ou consigo mesmos. Relações complicadas com gênero, família e, principalmente, com a própria existência, são interpretações comuns dos universos que ela desenvolve, e são a razão para o envolvimento do público com o trabalho de Horrorshow.

Contudo, há um tópico específico que é muito interessante para análise, que se une aos cenários comuns na estética da desenvolvedora. As histórias estão sempre ligadas à exploração de espaços completamente abandonados ou com pouquíssimos personagens, o que contribui para a solidão do jogador. São lugares inabitados, inabitáveis e conscientes, que impactam o jogador e são impactados em retorno.

Universos inabitados e inabitáveis

Horrorshow cria mundos que parecem agonizar em sua própria solidão. Destruídos e abandonados, aqueles que ainda os habitam – sejam entidades, glitches ou pessoas imóveis – são os principais mensageiros da narrativa daquele lugar.

Captura de tela do jogo “Dust City”. | Via: kittyhorrorshow.itch.io

No jogo Dust City, uma das experiências mais completas de Kitty, a jogadora assume o papel de um investigador de atividades paranormais, encarregado de vasculhar uma cidade que misteriosamente apareceu nos registros da sua agência. Ela já se tornou pó, deixando vestígios da sua civilização para trás, mesmo antes de ser plenamente conhecida.

Dentro da cidade, é necessário descobrir portais e códigos que conduzem a novas áreas a serem exploradas. Além disso, é possível deparar-se com anomalias, que funcionam como personagens que um dia habitaram o local, deixando mensagens sobre a história daquele lugar.

Aos poucos, as informações reunidas sobre Dust City tornam-se uma recordação dos dias finais da cidade e de como seus habitantes foram incapazes de impedir sua destruição. Nesse sentido, a desenvolvedora brinca com a ideia da imortalidade humana, da tentativa de preservar arquivos, monumentos e relatos intocados, e da notável falha nesse esforço. A autora coloca a memória como algo tão limitado quanto o corpo físico.

As cidades assombradas nos jogos da desenvolvedora

Haunted Cities é uma série de pacotes de mini jogos criados por Kitty, com quatro volumes disponíveis atualmente. São, ao todo, dezesseis cidades para serem exploradas, percorridas e interpretadas.

Captura de tela do jogo “Ghost Lake”. | Via: kittyhorrorshow.itch.io

Cada cidade tem um perfil independente. Elas podem ser o quintal de uma avó, um mundo mágico, um ambiente sombrio e distorcido ou, de fato, uma metrópole com algum toque especial de bizarrice.

Em Tenement, um dos jogos incluídos no pacote Haunted Cities Vol. IV, uma cidade cinzenta e desolada está livre para ser explorada, com exceção das casas e apartamentos. Vez ou outra, é possível encontrar um habitante do local, que compartilha um pequeno conto pessoal.

Habitante de “Tenement”. | Via: Reprodução

Os limites do mapa não são claramente definidos, e ocasionalmente você pode ultrapassá-los, sendo transportado para “o bueiro”, um lugar mais sombrio e avermelhado. No entanto, o retorno à superfície é simples, não prejudicando a experiência de exploração.

Um dos segredos mais intrigantes de Tenement é a possibilidade de “estragar” o jogo. Cada reinício torna o ambiente mais amedrontador, com garras perfurando os prédios e um céu avermelhado.

Essa característica é uma constante no trabalho de Horrorshow. Ela brinca com a dinâmica de rivalidade entre o jogo e o jogador, como se o mundo explorado também fosse vivo, capaz de sentir dor e, portanto, perturbável.

Nos ambientes da artista, você é um intruso que os adentrou e mudou seus formatos. Em outras palavras, você é um parasita ameaçador. Consequentemente, esses ambientes se deterioram, tornando a experiência breve, confusa e amedrontadora.

O ambiente tem consciência

Anatomy é um dos jogos mais renomados de Kitty Horrorshow e conquistou seu espaço entre os entusiastas do terror independente. O jogo explora o ambiente típico de uma casa mal-assombrada, incorporando elementos da memória coletiva. A missão da jogadora é explorar a casa e encontrar fitas que revelam o que ocorreu ali.

Captura de tela do jogo “Anatomy”. | Via: Reprodução

Subvertendo as expectativas atreladas a jumpscares e a criaturas ocultas no escuro, Anatomy se inspira no livro A Assombração da Casa na Colina de Shirley Jackson. Nas fitas, cada cômodo da casa é descrito como um órgão humano, reforçando a ideia de que o ambiente é como um organismo vivo. Sua assombração surge devido ao abandono e ao ressentimento que isso causou.

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Kitty mais uma vez utiliza o conflito entre o jogador e o ambiente como recurso. Quando todas as fitas são coletadas, a jogabilidade parece chegar ao fim. No entanto, ao reiniciar o jogo, a casa já não é a mesma. Os cenários estão distorcidos, objetos fora do lugar, e gradualmente, a situação piora até que a casa literalmente expulsa o jogador.

Anatomy é o epítome das histórias criadas pela desenvolvedora. O contato com lugares vivos, a metalinguagem envolvendo os espaços e a conversa entre o jogo e o jogador são características que tornam a obra da artista notável e que são muito bem executadas nesse jogo.

Realidade projetada

Por fim, vale pontuar que, sendo obras altamente subjetivas, as criações de Kitty Horrorshow têm sua melhor interpretação a partir da experiência individual. Para os entusiastas do terror, da exploração de temas complexos e da estética antiga, é essencial embarcar no universo da desenvolvedora. Mais do que tirar conclusões sobre o material, visitá-lo como uma expressão artística.

Kitty Horrorshow disponibiliza seu trabalho na plataforma itch.io, oferecendo diversas produções gratuitas. Porém, seu conteúdo mais atualizado pode ser encontrado em seu Patreon, o que requer uma contribuição mensal como forma de incentivo.

 

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Jornalista/comunicóloga, com amor pela arte e pela escrita. Do fofo ao aterrorizante, falar do que eu gosto é minha maior motivação!
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