Ninfas Diabólicas: uma pérola da Boca do Lixo Paulista

Ninfas Diabólicas: uma pérola da Boca do Lixo Paulista

Polo cinematográfico brasileiro entre os anos de 1960 e 1980, a Boca do Lixo – termo pejorativo não aceito por muito produtores e cineastas da época –, foi um movimento importante para o nosso cinema, principalmente no que se refere às produções que flertavam com os gêneros cinematográficos.

O gênero de horror, por exemplo, foi amplamente explorado nesse reduto. Para além de sustos, mistérios, bisonhices e cenas repulsivas, a atmosfera do horror estava intimamente relacionada com as questões da época, considerando o próprio terror imposto pela ditadura militar.

No filme Ninfas Diabólicas de John Doo, uma pérola da Boca do Lixo Paulista, a imaginação, o erotismo e o fantástico são ingredientes que reconfiguram o enredo além das limitações de uma mera pornochanchada.

Cartaz de "Ninfas Diabólicas"
Cartaz de “Ninfas Diabólicas” | Fonte: IMDB

As garotas que dão título ao filme, Úrsula (Aldine Muller) e Circe (Patrícia Scalvani), vão além da juventude e sensualidade que esbanjam. Parece que, em plena a década de 1970 e em um contexto em que o corpo feminino é frequentemente explorado como objeto, algo de subversivo emerge – o caso das “mulheres monstruosas”.

O que foi a Boca do Lixo?

Localizada no bairro da Luz, em São Paulo, a Boca foi uma região que testemunhou uma intensa produção e distribuição de filmes durante as décadas de 1960 a 1980. Estes filmes, em sua maioria, tinham conteúdos eróticos, o que deu origem às pornochanchadas paulistas.

Esse berço de longas-metragens que misturavam o erótico com gêneros como faroeste, policial e horror, era conhecido por seu sensacionalismo. Assim, as personagens femininas jovens, frequentemente apavoradas e parcamente vestidas, eram a principal atração.

Podemos afirmar que a Boca provinha do que pesquisadores, como Lúcio Piedade, chamaram de cinema de exploração ou exploitation. Esse cinema se desdobrou em quatro fases: a clássica, o teenexploitation, a explosão e a generalização. Na última fase, os filmes se espalharam pelo mundo.

A atriz Claudete Joubert recebe o prêmio "Estrela da Boca" na rua do Triunfo
A atriz Claudete Joubert recebe o prêmio “Estrela da Boca” na rua do Triunfo | Fonte: Unicamp (Ozualdo Candeias/Divulgação)

Dessa forma, as produções que surgem para comentar assuntos proibidos, como sexo, drogas e delinquência juvenil, se transformam em narrativas de monstruosidade, desdobrando-se em gêneros específicos, como sexploitation, blaxploitation e nunexploitation, antes de serem assimiladas pelo cinema mainstream.

A exploração do conteúdo sexual, a recorrência de clichês de gênero e as limitações orçamentárias são os principais elementos característicos desses filmes. Inicialmente voltadas para o público masculino, essas produções, ao objetificar as mulheres, também as tornavam objeto de problematização.

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Ninfas Diabólica: uma produção de baixo orçamento, mas que diz muito

Ninfas Diabólicas, o longa-metragem de estreia da parceria entre John Doo, cineasta sino-brasileiro, e Ody Fraga, foi originalmente concebido para ser dividido em dois episódios. Com essa abordagem, o filme ultrapassaria a marca dos 90 minutos exigida pelos exibidores nacionais. No entanto, apenas um dos segmentos foi de fato produzido.

Com cenas em lugares externos – estrada e praia – a parte não filmada fora pensada a partir do contraste, ou seja, cenas realizadas em ambientes fechados, com espelhos e um teor expressionista.

Contudo, a falta de recursos – algo comum no contexto da Boca – justificaria uma espécie de “má qualidade” quando comparado ao cinema mais industrial.

Mesmo diante das dificuldades, a criatividade não fora deixada de lado: a direção de fotografia, feita por Ozualdo Candeias, um dos pioneiros do Cinema Marginal, fora elaborada como um processo de documentação de seu tempo. No filme, é possível visualizar a paisagem do litoral norte paulista, além disso, a utilização do som direto, ainda que de baixíssima qualidade, permite, por exemplo, sintonizarmos na rádio Eldorado à época.

A história cíclica de Ninfas Diabólicas

No filme, Rodrigo (Sérgio Hingst) é um executivo de meia idade que vive uma vida pacata. Em uma manhã qualquer ele se despede de sua esposa (Dorothy Leirner) com um beijo desinteressado e segue com as crianças (André Piacentini e Geórgia Carolina) para a escola.

No caminho, o rádio sintonizado serve para acompanhar as notícias do dia. O trio encontra uma jovem oriental que pede carona, negada por Rodrigo, e o “exemplo” é dado aos filhos: não devemos dar carona para estranhos (estranhas)!

Após deixar as crianças, Rodrigo volta para a estrada para visitar um cliente e depara-se com Úrsula e Circe, duas jovens que pedem caronas. Agora sozinho e interessado nas meninas, Rodrigo decide ajudá-las, já pensando em como “tirar uma casquinha”.

Úrsula se senta no banco da frente, Circe atrás, como uma espécie de voyeur. Rodrigo passa sua mão pelo corpo de Úrsula e atende ao desejo das jovens de irem para a praia. O ato sexual se confirma, enquanto isso, Circe desaparece.

Mais tarde, Rodrigo encontra Circe em uma cachoeira. Ele é atraído a ponto de fazer qualquer coisa, mas a jovem tem uma exigência esquisita – transar apenas se Úrsula estiver amarrada. O homem aceita as condições. Em um momento absurdo, Circe ataca a amiga com pedras na cabeça, Úrsula morre e é deixada lá, enquanto o casal vai embora.

Na volta, os dois recebem a visita inesperada de Úrsula morta, completamente ensanguentada no banco traseiro. As garotas começam a discutir e Rodrigo perde o controle do carro: eles caem em uma ribanceira e morrem.

Úrsula (Aldine Muller) retornando como "morta"
Úrsula (Aldine Muller) retornando como “morta” | Fonte: Boca do Inferno

O filme termina com Úrsula e Circe retornando para a estrada, sedutoras e petulantes – agora é a vez de Circe fazer o papel principal. Elas estão prontas para conseguir outra carona!

Quanto mais monstruosa melhor

Ninfas Diabólicas é um filme que faz parte de um momento específico do nosso sexploitation. Por meio das “mulheres monstruosas” incitava a problematização dos papéis de gênero, mais especificamente, sobre a condição feminina no cinema erótico.

Ou seja, há uma autoconsciência dos cineastas a partir das críticas recebidas, seja dos críticos mais conservadores ou das feministas.

Laura Cánepa, em texto dedicado ao assunto, nomeia alguns longas-metragens exemplares dessa consciência. Amadas e Violentadas (1976) de Jean Garret e O estripador de mulheres (1977) de Juan Bajón. Mas foi com o ciclo efetivo das mulheres monstruosas que promoviam ao sexo feminino uma oportunidade para “dar o troco”. Em Belas e Corrompidas (1977) de Fauzi Mansur, por exemplo, assim como em Ninfas Diabólicas, as vítimas não são as mulheres.

Cartaz de "Belas e Corrompidas"
Cartaz de “Belas e Corrompidas” | Fonte: Banco de Conteúdos Culturais

E é através desses papéis que a análise do cinema erótico brasileiro pode ser realizada de maneira mais diversificada. Afinal, mesmo que filmes como Ninfas Diabólicas reproduzam estereótipos problemáticos com os quais lutamos para lidar, não podemos ignorar a inovação que representaram na época em relação aos personagens femininos em filmes eróticos.

As mulheres retratadas eram belas e maléficas, perigosas, com corpos perfeitamente magros, vingativas, que faziam uso de sua sensualidade como instrumento de vingança. Nesse contexto, a abordagem da condição feminina sob um viés revanchista era, de fato, uma novidade nas produções setentistas.

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Diálogos entre horror, feminismo e o patriarcado

Em The philosophy of horror or the paradoxes of the heart (1990), Noel Carroll analisa o gênero do horror não só em sua dimensão bizarra, mas também como um produto de seu tempo.

Ainda que de difícil percepção aos olhos e ouvidos contemporâneos, existe uma base cultural sob o qual os filmes repousam: temas, fantasias, normas, imaginação e, finalmente, a subversão.

No longa Ninfas Diabólicas, a sociedade patriarcal coincide com a mesma atmosfera de filmes estadunidenses como À procura de Mr. Goodbar (1977) de Richard Brooks. Este, inclusive, fora objeto de estudo de Ann E. Kaplan em A mulher o cinema: os dois lados na câmera (1993).

Cena de "À procura de Mr. Goodbar" com Richard Gere e Diane Keaton
Cena de “À procura de Mr. Goodbar” com Richard Gere e Diane Keaton | Fonte: Revista Cine TV

No filme de Brooks, Teresa (Diane Keaton) é punida por seu comportamento: solteira, com uma vida sexual ativa e que infringe as regras da época. Morta ao final, logo após seu estupro, Teresa é uma mulher que, a partir de uma leitura mais feminista, está muito a frente de seu tempo.

E o caso brasileiro?

No contexto das garotas do filme brasileiro, o feminino é percebido como uma ameaça, como se evidencia na fala de Ricardo ao explicar aos filhos que não devem dar carona a desconhecidos, uma vez que uma mulher desconhecida, especialmente se estiver sozinha, é vista como um perigo para a sociedade.

De forma irônica, Úrsula e Circe reiteram essa percepção. Porém, elas continuam retornando ao mesmo local e com a mesma missão. Ambas conquistam os “pais de família” para, em seguida, matá-los, exacerbando o sentimento de vingança e a sensação de “missão cumprida”, que pode ressoar em parte da audiência.

Portanto, pode-se afirmar que Ninfas Diabólicas é um filme ambíguo, apresentando traços de conservadorismo, mas também revelando os conflitos de sua época. Embora produzido por homens, isso não significa que seus criadores não tinham consciência das críticas que estavam sendo feitas.

Ninfas Diabólicas é o resultado rebelde e provocativo de seu tempo, criado em meio à efervescência da segunda onda do feminismo, que buscava discutir questões relacionadas à sexualidade feminina.

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Escrito por:

Com formação em Rádio e TV, construí toda uma trajetória em torno da pesquisa acadêmica sobre o cinema - com destaque para as produções nacionais e suas relações com o feminismo. Sou roteirista e professora de comunicação e artes. Escrevo contos sobre a experiência de mulheres que já passaram pela minha vida!
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