Mente por trás dos já clássicos A Maldição da Residência Hill (2018) e A Maldição da Mansão Bly (2020), Mike Flanagan tem em Missa da Meia-Noite (2021) seu projeto mais pessoal. O conceito começou a tomar forma há mais de uma década, sob a forma de romance, então roteiro para cinema e finalmente para uma minissérie.
Após ter sido roteirizada, a história foi recusada por diversos produtores e acabou engavetada, mas nunca por completo. Apareceu como easter egg em outros trabalhos de Flanagan, Hush: a Morte Ouve (2016) e Jogo Perigoso (2017), mas foi apenas com o sucesso das duas séries da Netflix que o destino dos habitantes da ilha Crockett finalmente ganhou as telas.
Aviso: Esse texto contém spoilers leves de Missa da Meia-Noite
Cruzar qualquer sinopse da série com meia dúzia de informações sobre a vida de Flanagan já é o bastante para evidenciar o quanto a obra diz sobre o autor. De criação católica, ele não apenas estudou em escolas religiosas, como chegou a ser coroinha na igreja que frequentou ao longo de toda a juventude. Apenas quando entrou para a faculdade é que ele confrontou a visão na qual foi criado: estudou a bíblia, mas também mergulhou nas escrituras judaicas, hindus, islâmicas, budistas e, como ele mesmo define, se encontrou mais na leitura de “Pálido ponto azul”, de Carl Sagan, do que em vinte anos de estudos bíblicos.
Quando olhamos então para Riley Flynn (Zach Gilford), primeiro personagem a quem somos apresentadas – o coroinha tornado ateu –, talvez a maior surpresa seja, no fim das contas, quão abertamente ele carrega marcas da jornada do próprio Flanagan, sem qualquer disfarce.
Mas o que realmente surpreende, inclusive enquanto assistimos episódio após episódio, é o fato de que o coração e a energia condutora da série sejam Erin Greene, interpretada por Kate Siegel, esposa de Flanagan – o que só torna a dicotomia entre os dois personagens mais interessante.
E é sobre Erin, e tudo que ela traz consigo, que precisamos falar.
O contraponto necessário em Missa da Meia-Noite
Todo gênero tem seus tropos. No horror, o primeiro e possivelmente mais comum papel para uma mulher é o de vítima. Houve avanços, é claro, e a galeria de vilãs, heroínas fortes e até mesmo anti-heroínas vem crescendo. Erin, contudo, parece não se encaixar muito bem em nenhum desses papéis, ainda que sua presença seja fundamental para a estrutura de Missa da Meia-Noite.
A personagem é apresentada ao público quando Riley retorna para a ilha Crockett. Logo descobrimos que os dois cresceram juntos e, enquanto ele era o coroinha, ela era a jovem rebelde; ele deixou a ilha para estudar e empreender, enquanto ela foi atrás do sonho de ser uma estrela. Não é necessário entrar nos pormenores que marcaram os caminhos dos dois, mas é no mínimo curioso perceber como ambos percorrem trilhas reversas: enquanto Riley abraçou o ateísmo e se mostra visivelmente desconfortável diante do peso da religião no dia a dia do vilarejo, Erin se juntou aos fiéis que fazem o cotidiano da paróquia.
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Ainda assim, o contraponto que ela faz a Riley é mais brando em comparação ao que surge diante de personagens que beiram o fanatismo religioso – ou mesmo que cruzam essa linha sem qualquer pudor. Entre os tantos temas que podem ser vistos em Missa da Meia-Noite, é notória a aversão de Flanagan à maneira como o fundamentalismo pode corromper qualquer sistema de crença.
Erin, de certa forma, parece representar o oposto disso: ela encontrou a fé em seus próprios termos e, ainda que frequente a igreja em torno da qual a comunidade se organiza, não se deslumbra com os supostos milagres que começam a ocorrer, além de utilizar um senso crítico para questionar os rumos da paróquia.
A personagem também traz uma camada de doçura à trama ou, como definiu a própria Siegel em entrevista à Vanity Fair, “um raio de esperança de quem está no fundo do poço”. Grávida e afastada do pai da criança, ela retorna a Crockett sem ter realizado seus sonhos, carregando seus próprios problemas nos ombros.
Contudo, existe a alegoria óbvia: no cenário decrépito do vilarejo, onde os jovens vão embora assim que atingem a maioridade, um derramamento de petróleo fez com que muitas famílias abandonassem a região. Portanto, a gravidez de Erin parece ser o único elemento que denota um sopro de vida. Mas esse conceito não se restringe à gestação: Erin é uma das poucas pessoas a receber Riley de coração aberto. Ela é gentil com aqueles que a cercam, trazendo algo de caloroso a um ambiente triste e hostil.
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Como é comum nas obras de Flanagan, o terror de Missa da Meia-Noite frequentemente é pautado pelas angústias e horrores da condição humana; e nesse cenário de crescente desespero, Erin é efetivamente a esperança professada por Siegel.
E, retomando a questão dos tropos de gênero, há algo de muito especial na construção de Erin ao longo da série, inclusive a maneira como ela vai assumindo seu protagonismo gradualmente. Apesar de suas fragilidades, Erin, em momento algum, parece uma mera vítima.
Da mesma forma, não há um momento em que ela se descubra uma lutadora formidável, ou revele para o público uma aptidão e tanto como atiradora, que poderia ser explicada por uma fala qualquer sobre ter caçado com o pai quando criança, algo tão comum em outras obras. Erin, portanto, é dolorosamente normal e, como define sua intérprete, ao se encontrar em uma situação insuportável, ela faz o melhor que pode. Como muitas de nós.
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Em uma obra de puro terror católico como Missa da Meia-Noite, Erin carrega a fé de maneira leve. Em um cenário repleto de elementos sobrenaturais, a personagem funciona como uma âncora de normalidade. Em um mistério intrincado, no qual é difícil saber o que é real, é nela que confiamos.
Ainda que Riley seja claramente a personagem que carrega nas costas o peso dos questionamentos que Flanagan levantou ao longo de toda a vida, é bem possível supor que Erin seja aquela que mais se aproxima das respostas.