Lançado no início de 2019, o segundo thriller psicológico de Jordan Peele “Nós” (ou “Us”, em inglês) é uma das diversas e impressionantes esnobadas das tradicionais premiações do cinema norte-americano. Afastando-se do extremo fator racial que o antecessor “Corra!” se banhou em 2017, dessa vez a obra do diretor aposta em fatores próprios do imaginário da população dos Estados Unidos. A obra “Nós” ainda se apoia na atuação brilhante – para além do elenco certeiro e talentosíssimo – de Lupita Nyong’o.
O filme pega emprestado questões de natureza psicológica há muito questionadas pela humanidade, como “o duplo” e a própria jornada de descobrimento do indivíduo, e as coloca sob uma lente ainda considerada pouco profissional e não levada muito a sério: o terror. A verdadeira natureza humana é – por mais perturbadora que seja – explorada e dissecada ao longo da trama. Porém, o filme ainda oferece um bom mistério capaz de nos manter presas à tela e ansiosas a cada cena.
Talvez por ter sido lançado em março de 2019, ou por ter proximidade a blockbusters como “Vingadores: Ultimato”, o filme ainda não é muito lembrado e citado pelo grande público. Tem, ainda mais que seu antecessor, uma percepção mais indie e alternativa, a qual se propõe a apresentar uma faceta escondida de nós mesmos e dos Estados Unidos. Quanto a isso, o filme abre com uma proposta de pensamento à telespectadora: para o que os túneis subterrâneos em solo norte-americano servem? A qual, adiantamos, não é exatamente respondida ao fim da trama, mas ao invés disso planta novos questionamentos no público.
Filmes de Terror como sessão de terapia
Em um TEDx Talks de 2017, o professor assistente Dr. Steve Schlozman, do departamento de psiquiatria da Escola de Medicina de Harvard propôs a discussão acerca de filmes de terror. Filmes desse gênero cinematográfico, mais do que quaisquer outros, nos ensinam sobre nós mesmas e sobre a espécie humana como um todo. Em menos de 30 minutos, analisou as escolhas que são realizadas nos filmes do gênero, assim como o que elas refletem – e o que incitam – sobre comportamentos e reações reais fora das telas.
Em “Nós”, nossa psicologia pessoal (inconsciente particular) é constantemente utilizada para criar o imaginário em volta da trama. A ideia de nós mesmas sermos as nossas maiores inimigas, um questionamento recorrente na teoria de desenvolvimento da personalidade de Carl Jung, por exemplo, encontra uma nova forma da trama trazida no filme. É possível, dessa forma, observar como os “clones” podem ser lidos – no mundo real – como o arquétipo psicológico da Sombra. Esse aspecto é explorado por Jung, no sentido de ser ela a detentora de nossos pensamentos e ações primitivas, os quais, no caso da trama, não são controlados pelo “self” de uma pessoa.
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Podemos tratar a trama do filme como, na verdade, uma grande metáfora para o desenvolvimento pessoal humano. É interessante enxergar que os “clones” são apenas as próprias pessoas observando-se em um momento de desequilíbrio psicológico, resultante da desconexão da Sombra com o “self”. Porém, podemos ver os “clones” como pessoas por si mesmas – e não como uma metáfora para o “self” utilizada por Peele. Desta forma, percebemos como a exclusão física e social imposta a eles os afastou do convívio com o restante da sociedade e deu espaço ao crescimento indiscriminado de suas Sombras. Assim, as ações deles – apesar de talvez não justificadas – são motivadas, de fato, por questões psicológicas para além da pincelada superficial de retaliação.
“Todo homem tem uma sombra e, quanto menos ela se incorporar à sua vida consciente, mais escura e densa ela será. De todo modo, ela forma uma trava inconsciente que frustra nossas melhores intenções.”
– Carl Jung
Jordan Peele brinca, a todo o momento, com a questão do descobrimento de si mesmo, seja em pequena ou em larga escala. Para que servem os túneis? Quem os construiu? De onde vieram os “clones”? Quem os criou? Realizando um paralelo com a humanidade é difícil não relacionar tais questionamentos àqueles realizados por nós há séculos. O filme nos mostra nuances de humanidade e monstruosidade, mesmo que não sabidas, em uma verdadeira cadeia de causa e consequência a qual, apesar da tentativa de quebra pelos “clones”, permanece atuante. Ora, são eles quem iniciam a onda de matança retaliatória contra os “da superfície”. Eles estrategicamente se aproveitam do suspense noturno, porém ao longo da trama notamos como tal ação foi integralmente motivada por atos anteriores e externos a eles, assim como por um anseio libertativo pungente. Na reviravolta final do filme, aliás, é que percebemos como tudo resulta de um simples ato individual e inconsequente.
Na onda da proposta terapêutica de se assistir e pensar filmes de terror, dessa forma, como não seria possível ver nos absurdos teatrais uma razão de profundo desconhecimento e descontrole humano? No mais, como não relacionar o resultado a obsessão por grandeza reconhecidamente deturpada e manipulada da humanidade? Para nós, impossível.
Negritude vs. Terror
Foi em 1968 que lançou-se o primeiro filme de terror protagonizado por uma personagem negra. “A Noite dos Mortos Vivos” apresentava questionamentos humanos e pertinentes a época em que se situa, assim como, de forma inédita, tratava de questões raciais ainda vistas como um tabu, especialmente em um filme. Mesmo assim, o filme é considerado um marco tanto do cinema de terror quanto do protagonismo negro em filmes de grande repercussão e fora dos gêneros tipicamente reservados a atuação negra, como as famosas comédias pastelão ou as tramas de escravidão.
Passaram-se quase 50 anos – sem contar o remake de 1990 de “Todo Mundo em Pânico” – para um filme do gênero e com protagonismo negro ter sucesso e reconhecimento mundiais. O fato, apesar de impressionante, não causa surpresa, afinal já nos é conhecida a restrição cinematográfica imposta a “minorias” étnico-raciais como um todo. Parece, entretanto, que tal realidade se intensifica quando tratamos do terror. O gênero parece ter sido gerado exclusivamente para atender aos ideais de supremacia protagonista branca, repetindo as mesmas tramas e com, basicamente, as mesmas famílias. Foi apenas com “Corra!” que o grande público foi, observando questões macrossociais. Além disso, também foi reapresentado a possibilidade negra em papéis de destaque também em filmes de terror e por fim, pensamos, redirecionado à análise de questões para além da bolha étnica (e branca).
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No caso de “Nós”, entretanto, não há nenhum claro desenvolvimento de temas raciais, mas isso não se mostra necessariamente como um problema. Ainda que tratemos, e reconheçamos, como a questão de raça é intrínseca a atual existência da comunidade negra, é interessante ver como a abordagem não precisa ser absoluta. Indivíduos negros se individualizam e reconhecem-se como além da simples genética fenotípica e genotípica. Talvez seja por isso que Peele decidiu tratar a trama como a história de uma simples família que teve uma noite ruim. Não há necessidade, nem convenhamos espaço, de se retirar as percepções sociais acerca do papel de cada personagem no mundo atual – negativa ou positivamente – do campo subjetivo e trazê-las ao objetivo.
O abordado nessa texto, é só uma de inúmeras interpretações possíveis à trama de “Nós”. Questões de meritocracia, exclusão social e ciência ainda podem ser, da mesma forma, discutidas e trazidas a tona sobre a história. Para nós, entretanto, a questão mental falou mais alto. A profundidade da mente humana, caçando incessantemente a liberdade absoluta, seja interna ou externa, não nos permite ignorar os paralelos utilizados no filme. A proposta de “Nós” é pessoal e direta; busca fazer-nos pensar, mesmo que inconscientemente, no que alguém seria capaz de fazer para conseguir o que quer. Para se ver livre e sob o céu azul, mesmo que para isso tenha que refazer – ou desfazer – a si mesmo.