“Jogo Perigoso”, o retrato da mulher e os traumas da infância

“Jogo Perigoso”, o retrato da mulher e os traumas da infância

O texto contém spoilers do livro e trigger warning (Aviso de gatilho para temas que podem incomodar psicologicamente)

Comecei a ler Stephen King quando tinha 9 anos e por muito tempo me dediquei a acompanhar suas obras. Quando o protagonista não era um carro assassino, era um cachorro, quando não era um vampiro, era um hotel mal assombrado. Então quando chegou um novo livro do autor na biblioteca do meu bairro, fui correndo para reservar, mas algo me chamou atenção: no livro Jogo Perigoso não tinha nenhum monstro ou assombração, era apenas a história de uma mulher acorrentada a uma cama com o marido falecido, então pensei: mas quem salvará a mocinha indefesa? Haverá algum vampiro boa pinta que a ajudará? Ou talvez a assombração do dono da casa que morreu anos atrás e desejava se redimir? Quem salvará a mocinha? Quem?

O romance foi publicado originalmente em 1992 e surge como uma forma de Stephen King provar que conseguia escrever sobre mulheres. Passando por Carrie, do livro homônimo; Wendy Torrence, do clássico O Iluminado; e Susan Norton, de A hora do Vampiro, parece que ao falar sobre personalidades femininas o autor sempre deixava a desejar. As personagens estavam envoltas em relacionamentos abusivos, tanto por parte de seus parceiros, quanto por parentes de sangue. O abuso servia de trampolim para a evolução ou desgraça da personagem, mas em Jogo Perigoso vemos que o mestre do terror usou do mesmo recurso, porém, de uma forma mais aprofundada.

Jessie Burlingame tem 39 anos e é casada com um advogado bem sucedido, Gerald. Ela é a típica esposa americana, bonita, magra, que vive para a casa (pois a pedido do marido largou o emprego de meio expediente como professora). Como são casados há alguns anos, o desejo sexual entre o casal esfria. O marido compensa a falta de atração pela mulher, bebendo e trabalhando; já Jessie, a princípio nos é mostrado que não sente falta do sexo, pois ela é uma mulher e mulheres não se incomodam de ficar sem transar, não é mesmo?

Para apimentar a relação e tentar salvar o que restou do casamento, Gerald tem a ideia de dar uma fugidinha do trabalho e levar sua esposa para a casa do lago que está deserta naquela época do ano. A ideia é continuar um jogo sexual que eles fazem há algum tempo, em que Jessie é amarrada em sua cama com algemas. A brincadeira não dá certo, pois o marido sofre um ataque cardíaco fulminante e deixa sua esposa acorrentada, usando apenas lingerie.

Por mais que Jessie acreditasse que tinha o controle sob a situação, que estava gostando do jogo, de ser tratada como uma escrava sexual, mesmo pedindo a Gerald que a soltasse, a voz no interior da mente dela dizia que o marido não a escutava naquele momento por não enxergar a imagem de sua esposa, mas sim porque para ele Jessie desapareceu no momento em que as algemas fecharam, portanto, ela não passava de uma boneca de ar de pele rosada, que tinha como única função prover prazer para o seu homem. Nessa hora outra voz adentrou sua mente: a da Esposa Perfeita que aparecia de tempos em tempos quando Jessie não se comportava, essa voz dizia para deixá-lo fazer o que quiser que logo aquilo acabaria.

Em meio aos pensamentos de Jessie, somos apresentadas a vozes, tanto de personalidades diferentes dela mesma, como de pessoas que conheceu anos antes. Uma das mais presentes em sua vida e que agora retorna é a da Esposa Perfeita, que tenta fazer com que Jessie se sinta culpada pelo ataque cardíaco de seu marido.

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As diferentes vozes em “Jogo Perigoso” e seus significados

A Esposa Perfeita é aquela que é confiante, mas não demais. Aquela que se dedica exclusivamente a cuidar do marido e da casa, que nunca dispensa sexo – pois sabe que se não der o que parceiro pede, será aceitável ele buscar outras mulheres. É aquela que apoia o marido em suas ideias (principalmente nessa de usar algemas), é aquela que faz tudo por seu marido – não por querer, mas por ser algo imposto à esposa.

Temos também a figura de Ruth Neary que foi sua companheira de quarto na universidade. Ruth era uma mulher bem resolvida que se recusava a raspar as pernas e gostava de pregar peças em colegas e professores, e foi a grande amiga de Jessie. Ruth entra como a personificação de tudo que Jessie gostaria de ter sido, e a Esposa Perfeita de tudo o que a sociedade espera que ela faça.

Outra voz é a da própria Jessie, com 11 anos, quando seu pai lhe deu o apelido de Bobrinha. Essa voz, apesar de ser de uma criança muito assustada, será a chave para a liberdade da personagem, pois fará com que ela confronte futuramente seus medos.

“Aquela voz, que ela veio a considerar a da Esposa Perfeita, frequentemente a exasperava; era por vezes a voz da cautela, muitas, a voz da culpa, e quase sempre a voz da negação. Coisas desagradáveis, coisas que lhe diminuíam, coisas dolorosas… com o tempo desapareciam se você as desprezasse com bastante fervor, essa era a opinião da Esposa Perfeita.”

As vozes servem para deixar a narrativa mais interessante e também para exemplificar as diversas personalidades da protagonista. Stephen King usa a Esposa Perfeita para exemplificar estereótipos criados por Hollywood e, consequentemente, na literatura. Quem aceita ser amarrada a uma cama mais uma vez é a voz da Esposa Perfeita, que romantiza sua submissão naquela brincadeira, que julga Jessie quando ela pensou em não aceitar o papel imposto por seu marido e fez parecer que a tentativa de se livrar das algemas foi tida como insolência e ingratidão. Afinal, Gerald deixou o trabalho no meio do dia para estar com a esposa, portanto, por que ela não poderia ficar feliz com isso e ser grata? E se ela concordou, por que quis desistir no meio? Por que ela insistia em provocar o marido, o deixar excitado para depois não querer mais e ainda se fazer de vítima, como fez com o seu pai há mais de 25 anos atrás?

Essa voz pode ser entendida como a necessidade de Jessie em querer agradar o marido, mesmo que isso vá além de sua vontade, colocando o papel da esposa acima do da mulher. Nessa hora, Stephen King nos leva para um passeio pelas memórias da infância de Jessie. A sua família sempre passava o verão no lago Dark Score, e no verão de 1963 todos estavam animados para presenciar o eclipse total. Jessie vivia com seus pais e mais 2 irmãos. Ela era a irmã do meio e a preferida de seu pai, e por causa disso não tinha um relacionamento saudável com a mãe.

No dia Jessie convenceu o pai a assistirem ao Eclipse separados do restante da família. Ao tentar convencer a mãe, o pai entra em uma discussão. A mãe enxergava que Jessie, por já ter menstruado há pouco e ser considerada já uma moça, poderia ter segundas intenções com o pai (sim, isso mesmo! =O). Após a saída de todos e o início do eclipse se aproximando, o pai pede que Bobrinha – como ele a chama – sente-se em seu colo. É aí que somos apresentadas a horríveis e detalhadas descrições de como o pai abusou de Jessie e como ele a fez sentir culpada pelo ocorrido, visto que foi ela mesma que pediu para ficar sozinha com ele. O autor nos permite sentir a confusão na mente da pequena e faz um paralelo com o odor dos resíduos deixados pelo pai em sua calcinha, com o de minerais presentes na casa do lago que a acompanhará pelo resto de sua vida.

Notamos a influência que o pai tem sobre ela, mesmo depois de morto. Jessie não desenvolveu um quadro de depressão e nem transtornos mentais, e talvez por isso ela não parou para pensar nas consequências. Acompanhamos a linha de raciocínio de uma criança após ser abusada: não contar por não saber exatamente o que aconteceu; apenas compreender que foi algo ruim e que o ato poderia ocasionar uma gravidez (Jessie ainda não entendia como funcionava o ato sexual, por isso achava que a única consequência era a gravidez); não contar para a mãe, pois tem medo dela achar que o seduziu; não contar para ninguém, já que o pai é o principal mantenedor do lar. Portanto, ela passa a questionar como elas ficariam caso ele as abandonasse e, o pior, ela passa a se sentir “sortuda” pelo fato do pai “apenas” ter abusado dela, pois ele poderia ter feito coisas muito piores.

“Mas vamos encarar os fatos, Jessie pensou. Escapei quase ilesa em vista do que poderia ter acontecido… o que acontece todo dia. (…) Meu pai não foi o primeiro homem de classe média com educação superior a sentir um tesão pela filha, e eu não fui a primeira filha a encontrar uma mancha úmida na parte de trás das calcinhas.’ Não quero dizer com isso que foi certo, nem desculpável, só quero dizer que está encerrado e poderia ter sido muito pior.”

Após mais de 12 horas acorrentada à cama, Jessie acorda de um de seus pesadelos sobre o Eclipse e sente um cheiro de mineral, logo percebe que o odor vem de uma sombra que se formou próximo à janela. Paralisada, ela nota que a sombra é um homem que a espia sem dizer nada. O medo sobrenatural que ela sente, por achar que é o pai que finalmente a veio buscar, faz com que urine na cama. O pavor toma conta e ela desmaia. No dia seguinte, acorda e percebe que não estava sonhando, já que o estranho deixou algumas pegadas. Decide, enfim, que é hora de fugir. Bobrinha avisa que o intruso voltará e desta vez fará algo bem pior do que apenas observá-la.

O horror que Jessie sentiu no dia do Eclipse é o mesmo que sente pela aproximação da presença do estranho. O autor faz Jessie relacionar a figura do homem das sombras com a de seu pai, e dessa forma vemos como o abuso sofrido ainda faz parte de sua vida. Jessie consegue tirar as algemas e fugir da casa, mas a figura do homem que poderia ou não ser o seu pai vindo buscá-la, permanecerá em sua mente por muitos anos.

Imagem: cena da adaptação de Jogo Perigoso (2017), direção de Mike Flanagan. O filme encontra-se disponível na Netflix.

Tempos depois, ela descobre que o homem não era seu pai, mas sim uma pessoa com problemas psicológicos que andava pelas redondezas, aguardando uma oportunidade de roubar joias e ferir pessoas.

Jessie não precisou da ajuda de ninguém, mas nem por isso ela pode ser considerada uma espécie de super-heroína. Stephen King nos mostra a imagem de uma mulher que é lutadora, mas frágil em alguns momentos, indecisa e também confiante, ou seja, uma pessoa comum que está muito além do estereótipo de mulher perfeita que nunca desmorona. O autor nos mostra em Jogo Perigoso que o abuso sofrido não moldou completamente a vida de Jessie mas nem por isso foi esquecido, e que cada pessoa tem uma forma de lidar com seus traumas.

Jessie finalmente tem o seu encerramento e consegue ficar cara a cara com o homem que a observou pelas sombras. Ao ver sua condenação por diversos crimes, tem a certeza que seu pai não mais a perturbará, pois diferente dela, ele está morto e enterrado.

“— Ora, porra — exclamou para a casa vazia. — Que venha a noite. — Então se virou e lentamente subiu as escadas para o primeiro andar.”

Autora convidada: Janaína Ajala é formada em Publicidade, tentando entrar no mundo mágico da redação e sair do mundo das séries. Pisciana que sonha acordada, gostaria que John Hughes dirigisse sua vida.


Jogo Perigoso

Stephen King

Suma de Letras

336 páginas

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