Autoras do Realismo Fantástico: Isabel Allende e os contextos da América Latina

Autoras do Realismo Fantástico: Isabel Allende e os contextos da América Latina

O gênero do realismo fantástico possui diversas variações, inclusive nos contextos latino-americanos. Da corrente surgida no continente, despontaram figuras como Isabel Allende e Gabriel García Márquez. Através, então, dos elementos fantásticos, os autores discutem particularidades de países de intensa colonização, explorados historicamente por práticas imperialistas, mas também refletem acerca de questões sociais.

Isabel Allende é uma escritora chilena nascida em 1942, cujos livros são exemplificativos, então, do realismo fantástico latino-americano. Filha do diplomata Tomás Allende, a escritora é prima de Salvador Allende, presidente chileno deposto pelo golpe militar chileno. A própria escritora teve de se refugiar na Venezuela durante o período ditatorial, e traz, inclusive, em sua célebre obra de estreia, “A Casa dos Espíritos”, referências ao período ditatorial de Pinochet.

Antes de se tornar conhecida como escritora, atuou como jornalista e trabalhou na Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação e participou da revista feminista Paula, da qual é cofundadora. Além disso, fundou, em 1996, a Fundação Isabel Allende, que visa a proteção dos direitos das mulheres.

Isabel Allende
Isabel Allende. Imagem: reprodução

Principais obras

Em 1981, Isabel Allende ainda vislumbra uma sangrenta ditadura em seu país de origem e decide contar, através de uma carta, detalhes de sua vida para o avô de quase cem anos. Essa carta, então, é o que dá origem ao manuscrito de “A Casa dos Espíritos, sua primeira grande obra, publicada originalmente em 1982 – e mais outras 22 obras de sua autoria foram publicadas desde então, totalizando, assim, 23 livros publicados, traduzidos para 42 línguas com mais de 74 milhões de cópias vendidas.

Como a autora escreve em seu site:

“A primeira mentira da ficção é que o autor dá ordem ao caos da vida: ordem cronológica ou qualquer ordem que ele escolha. Como escritora, você seleciona uma parte do todo. Você decide que s coisas são importantes e o resto não. E você escreve sobre essas coisas pela sua perspectiva. A vida não é desse jeito. Tudo acontece simultaneamente de um jeito caótico,e  você não faz escolha. Você não é a chefe: a vida é a chefe. Então, quando você aceita, como uma escritora, que ficção é mentira, você se liberta. Você pode fazer qualquer coisa. Então, você começa a andar em círculos. Quando mais você roda, mais você alcança a verdade. Quanto maior o horizonte – quanto mais você caminha e dedica um tempo a tudo – maior a chande de encontrar parcelas da verdade”.

O mistério de Isabel Allende

A inserção do elemento fantástico, nas obras de Isabel Allende, está mais conexa às discussões sociais de sua literatura. Retrata, desse modo, a mulher silenciosa, em sua recusa de interagir com a sociedade, que pode ver espíritos e ter vislumbres do futuro ou fantasmas que retornam para transmitir mensagens. Do mesmo modo, traça um paralelo com o contexto local, referindo-se a questões próprias da América Latina. É o caso, por exemplo, do sutil elemento fantástico em “Filha da Fortuna“.

filha da fortuna

Na história, a protagonista possui a capacidade de identificar cheiros como ninguém e memórias além das capacidades humanas. O olfato aguçado, contudo, muitas vezes é ferido em sua relação com a cultura chilena, na culinária ou na medicina nativa, e sua memória traz também uma carga de historicidade desde o momento de seu abandono e adoção por um casal de ingleses – a memorização de suas origens, quem sabe. O gênero, portanto, é desenvolvido através da sutileza e da normalidade do absurdo. Cabelos verdes naturalmente não chocam; soam como algo que desperta reações diversas, da admiração à luxúria. Nas palavras da escritora:

“Às vezes, eu escrevo alo e sou praticamente convencida de que é apenas minha imaginação. Meses ou anos depois, eu descubro que era real. E eu sempre fico assustada quando isto acontece. Eu penso: ‘O que é isto? E se as coisas acontecerem porque eu as escrevi? Eu preciso ser cuidados com as minhas palavras’. Mas minha diz, ‘não, elas não acontecem porque você as escreveu. Você não tem esse poder. Não seja tão arrogante. O que acontece é que você é capaz de vê-las, e as outras pessoas não são, porque elas não têm tempo, porque estão ocupadas com o barulho do mundo’. Minha avó era clarividente. E ainda que ela não escrevesse, ela poda adivinhar coisas e lidar com esses eventos e sensações desconhecidas. Ela era consciente. Eu imagino que é apenas questão de ser mais consciente”.

Isabel Allende e as questões sociais no realismo fantástico 

Isabel Allende

Existem dois pontos que conquistam nas obras de Isabel Allende: a construção de seus personagens e o retrato da América Latina através do realismo fantástico. Sobre o primeiro, a autora declara:

“Quando eu desenvolvo um personagem, eu geralmente procuro por pessoa que sirvam como referência. Se eu possuo uma pessoa em mente, é mais fácil, para mim, criar personagens críveis. As pessoas são complexas e complicadas. Elas raramente mostram todos os aspectos de suas personalidades. Personagens deve ser assim também. Eu permito que os personagens vivam suas próprias vidas no livro. Às vezes, eu tenho o sentimento de que não os controlo. A história caminha para direções inesperadas, e meu trabalho é registrá-la, não forçá-la conforme minhas ideias iniciais”.

Feminismo latino-americano

A Casa dos Espíritos

As personagens de Allende, sobretudo as femininas, de fato, são complexas. Apresentam diferentes facetas e reações às suas experiências. Talvez “A Casa dos Espíritos” seja o livro mais emblemático neste sentido. Ao narrar a história da família Trueba, passa por três gerações de mulheres que, apesar das semelhanças e conexões, em muito se diferem. Contudo, nenhuma se entrega a estereótipos ou descrições planas. Clara não é a mesma que Blanca ou Alba e tampouco é a mesma personagem das outras histórias de Isabel Allende. E o mesmo se pode dizer dos personagens masculinos.

Embora as protagonistas, em geral, sejam femininas, Isabel Allende recorre a personagens masculinos profundos que interferem nas vidas de suas personagens principais. Refletem, todos, aspectos próprios, mas interferências, também de um contexto, e, claro, reagem de forma diferente aos eventos “paranormais” ou fantásticos da narrativa.

Ainda acerca das mulheres, como já abordado, Isabel Allende declara-se feminista, mantendo uma fundação em prol dos direitos da mulher, além de tentar inserir discussões de gênero e referências ao movimento em suas obras. Em “A Casa dos Espíritos”, traz com Nívea os primeiros movimentos feministas do século 20, mas há referências mais sutis: em “Filha da Fortuna”, discute a libido e a liberdade feminina – ou a castração dos desejos da mulher, entregue apenas a recordações constantes.

Imperialismo e colonização na ficção

É muito fácil, diante de um cultura eurocêntrica, ignorar as particularidades do continente e identificar como fantástico apenas elementos de uma mitologia europeia. No entanto, é preciso olhar também com olhos críticos para essa segregação e, assim, valorizar uma história esquecida pelas raízes da colonização. Ler os livros de Allende é ser transportado para um mundo desconhecido, muito embora se viva nele. Apesar dos incentivos à literatura da América Latina, ainda há mais de ser publicado por aqui e sobre aqui. A própria autora destaca que suas principais influências são escritores e escritoras latino-americanos, pois ela via poucos deles quando desejava que houvesse mais.

Ainda que tenha vivido durante algum tempo – e ainda viva – fora da América Latina, a sua referência é clara. Isabel Allende não se exime de apontar críticas ao imperialismo ainda visível. Trata da colonização e da presunção de superioridade dos colonizadores e das consequências não apenas políticas e econômicas, mas também sociais e culturais, para os povos colonizados. Fala de uma estrutura ainda hoje identificada, de valorização do estrangeiro em detrimento do nacional.

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O realismo fantástico de Isabel Allende

Isabel Allende
Clara (Grace Gummer), a clarividente, na adaptação de A Casa dos Espíritos (1993)

Isabel Allende o faz ao inserir elementos do realismo fantástico também. Explora mitos nativos, mas também filosofias e religiões em seus aspectos latino-americanos. É o caso, por exemplo, da descrição que faz do espiritismo. No entanto, os elementos fantásticos não são descritos como salvadores ou destruidores na jornada de seus personagens, são apenas parte de vidas humanas. A clarividência de Clara, desse modo, não pode evitar seu casamento com um homem violete ou uma financiada por potências estrangeiras, nem prepara sua família para as atrocidades do que viria.re

O realismo fantástico de Allende se afasta um tanto do terror – ao menos de um terror fantástico -, não apresentando, portanto, figuras mitológica típicas do gênero, como vampiros ou outros monstros – seu terror é mais humano. No entanto, insere fantasmas em algumas de suas obras, ainda que não de forma aterrorizante – e não é necessário, diante da própria vida humana. Afinal, por que recorrer a estes recursos diante de homens que violentam mulheres, do racismo e das diferenças sociais, por exemplo?

Como uma contadora de histórias, diz Isabel Allende, ela deseja transmitir algo verdadeiro sobre uma humanidade em comum. A fantasia, o desconhecido, o mistério, o fantástico, todos são elementos inerentes à própria humanidade. O medo deve vir do que não se permite ver, mas do que não se permite ver aqui, agora, dos seres humanos. Os mortos não violentam. Os mortos não matam. Os seres humanos sim.


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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