Espectros animalescos espiam do canto da sala. Uma névoa densa toma conta de todos os cômodos, ficando impossível enxergar quem — ou o quê — se aproxima lentamente, urrando, à distância. O medo e a solidão criam formas físicas capazes de nos sufocar. Amparo Dávila tinha o poder de converter os aspectos cotidianos em fogo vivo, assombro, maldição.
A autora foi uma das grandes contistas e poetas mexicanas do século XX, destacando-se sobretudo na prosa de ficção fantástica, berço fértil de imagens horripilantes e estranhas que, segundo ela, visavam metamorfosear os três pilares fundamentais da vida: o amor, a loucura e a morte.

Conforme subia as escadas, pensava estar me aproximando da eternidade, uma eternidade de brumas e silêncio.
(Trecho do conto “Moisés y Gaspar”. Tradução minha)
Origem e influências na literatura de terror latino-americana

Tendo como grandes admiradores confessos a poeta argentina Alejandra Pizarnik, o escritor Julio Cortázar, de quem foi amiga e se correspondeu por carta durante anos, e as autoras contemporâneas de terror Mariana Enriquez e Silvia Moreno-Garcia, Amparo Dávila seguiu parte da vida sem muita notoriedade no seu país e no mundo (tanto que sua estreia propriamente dita nos Estados Unidos aconteceu apenas em 2018, com a publicação da antologia de contos The Houseguest and Other Stories (“O Hóspede e Outras Histórias”, em tradução livre), algo um tanto contraditório para o peso e a maestria de sua escrita que trabalha tão bem o terror e o suspense em cenários facilmente relacionáveis com a nossa vida, assemelhando-se em vários pontos aos escritos de Edgar Allan Poe e Shirley Jackson.

No entanto, a autora vem sendo resgatada nos últimos anos e tem um potencial gigantesco para ser traduzida em mais países devido à ascensão da literatura insólita escrita por mulheres, sobretudo na América Latina.
Nascida em 1928, na cidade de Pinos, localizada em Zacatecas, Amparo desde muito cedo conviveu com a morte bem de perto: além de observar, maravilhada e com certo espanto, os cortejos fúnebres que passavam pela rua de sua casa quando ainda era criança, teve também de lidar com a morte precoce do irmão mais novo e de seus outros dois irmãos, conforme crescia. O luto a marcou profundamente e reverbera em suas obras de forma realista ou transformado no fantástico característico de seus contos.
Leia mais » Autoras do Realismo Fantástico: as assombrações cotidianas de Mariana Enriquez
Filha de um pai apaixonado por literatura e orgulhoso de sua biblioteca particular, não demorou muito para que, além da morte, a pequena Amparo também descobrisse a magia das palavras e delas extraísse parte de sua essência como contadora de histórias.
Perdida nas gravuras de Gustave Doré que ilustravam lindamente o exemplar robusto de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, internalizava o mundo em preto e branco que rondava a própria existência e seus livros favoritos, uma escala de cinza também encontrada em sua obra, que reflete as dimensões onde a vida, em alta velocidade, desgoverna-se e capota em um precipício de insanidades.

Foi também em Franz Kafka, Hermann Hesse, Horacio Quiroga, Juan Rulfo, entre tantos outros autores clássicos, que Amparo encontrou o desconforto e encantamento necessários como inspiração para a criação de suas histórias.
Quando adulta, trabalhou por um tempo como secretária do autor mexicano Alfonso Reyes, grande incentivador de sua escrita e responsável por apresentá-la aos maiores círculos literários mexicanos. Com o apoio dele, sobretudo ancorada no próprio talento, Amparo começou a publicar seus textos na década de 50, estreando com o livro de poesias Salmos bajo la luna (1950) e, mais adiante, publicando sua primeira antologia de contos, Tiempo destrozado (1959), época em que a literatura escrita por mulheres era menosprezada e apagada, fardo que ela também dividiu com suas contemporâneas Rosario Castellanos e Elena Garro (Tiempo destrozado foi publicado seis anos após as mulheres receberem o sufrágio no México).
Leia mais » Maíra Vasconcelos: “Algumas ideias para filme” e a poesia gritante
A autora teve de enfrentar, inclusive, a desaprovação da própria família, que desejava que ela encontrasse um “emprego de verdade” e não se tornasse escritora — felizmente, Amparo seguiu as batidas ensurdecedoras de seu coração e fez da escrita seu ofício, deixando um legado de trevas e admiração por onde passou.
Amparo tinha um estilo próprio de criar; não alimentava uma rotina de escrita, mas sim esperava que a inspiração partisse de alguma memória ou acontecimento presente para que a história surgisse, o que ela denominou la literatura vivencial, e isso não agradava os editores sedentos por uma abundância de materiais a serem publicados.
Após a publicação das antologias Música Concreta (1964), Árboles petrificados (1977) e Muerte en el bosque (1985), a autora passou anos esquecida pelo público e pelas editoras locais, lançando uma nova obra apenas em 2008, Con los ojos abiertos. O livro póstumo, Cuentos reunidos, que reúne todas as antologias de Amparo, foi publicado em março de 2022, com introdução de Mariana Enriquez.
A ameaça invisível nos contos de Amparo Dávila
Amparo utiliza o México e sua população como foco de seus contos, algo que pode ser claramente visualizado nos nomes de seus personagens, cidades onde as histórias se passam e até nos jargões em espanhol mantidos na tradução para o inglês de El huésped y otros relatos siniestros.
No entanto, como cita Silvia Moreno-Garcia em sua resenha* do livro, a obra de Amparo não aborda aspectos etnográficos mexicanos, como as festas populares e o folclore, muito menos cai nos velhos estereótipos propagados mundialmente: assim como em Gótico Mexicano, obra de Silvia, o terror aparece, muitas vezes, nos cantos de belos casarões e assombra famílias mexicanas ricas em seus carros, roupas e perfumes importados.

Outras particularidades da escrita de Amparo são os chamados “terror doméstico” e “a ameaça invisível”; muitas de suas protagonistas são mulheres e não raro as encontramos nos contextos em que a rotina de cuidar da casa, dos filhos e de parentes adoentados se torna sufocante, afundando-as em uma espiral de horrores e medos que as fazem questionar a própria sanidade, evocando monstros, internos e externos, com potencial devastador.
Diversas vezes desamparadas e desacreditadas pelos homens presentes em suas vidas, essas personagens denunciam o machismo nas relações familiares, aspecto transformado em metáfora para contar o terror a que são submetidas no local em que supostamente deveriam se sentir seguras: o lar.
Leia mais » Rinha de Galos: as mulheres monstruosas de María Fernanda Ampuero
O conto mais famoso da autora, El huésped, é um grande exemplo disso: uma mãe precisa reunir forças com a doméstica que a auxilia para se protegerem, e protegerem os filhos de ambas, da ameaça de um hóspede assustador recém-chegado e levado pelo próprio marido para dentro de casa, que por negligenciar a própria família e passar horas fora a trabalho não vivencia o medo que as duas passam a sentir, inclusive menosprezando a preocupação da esposa. Na história, a mulher descreve o visitante da seguinte forma:
Ele era macabro, sinistro, tinha grandes olhos amarelados e redondos que não piscavam, que pareciam transpassar coisas e pessoas.
Não se sabe ao certo se o hóspede é um homem ou animal; esta é a beleza da ambiguidade que Amparo colocava em seus contos e que aparece também em outras histórias. De todo modo, há nele algo inquietante de imediato, que se torna cada vez mais desesperador conforme a criatura, também masculina, passa a ter autonomia dentro de um lar que não é seu, e a violentar física e psicologicamente as mulheres e crianças que ali moram ou frequentam.
Leia mais » Mandíbula: a monstruosidade entre as mulheres no romance de Mónica Ojeda
O local em que essas personagens vivem se mistura ao terror e prenuncia o que está para acontecer de ruim em suas vidas, outra ramificação da ameaça invisível que as ronda. Logo no início deste conto, Amparo trabalha a ambientação informando que a protagonista e a família viviam “em um lugarejo isolado, longe da cidade. Um lugar moribundo ou prestes a desaparecer”.
Já no conto Óscar, uma jovem viaja após anos morando na capital para a cidadezinha em que morava e reencontra os fantasmas de seu passado: os pais e os irmãos desgastados pela presença de Óscar, um familiar que vive no porão da casa e dita as regras de como todos devem se comportar e, quando a família dorme, entra nos quartos para observá-los de perto.
Do porão, Óscar coordenava suas vidas; sempre foi assim e continuaria a ser. Ele era o primeiro a comer — ninguém podia experimentar a própria comida antes dele. Ele sabia de tudo, via tudo. Sacudia, furioso, a porta de ferro do porão e gritava quando algo o desagradava.
Óscar é outro grande exemplo dessa ameaça invisível que ronda os personagens de Amparo. Também uma figura masculina e violenta, que não sabemos ao certo se é humana, mas que se comporta animalescamente, ele tem nas mãos aquelas vidas e com elas brinca como bem entende, amedrontando-as pelo fato de existir (mesmo não convivendo com elas durante o dia — logo, sendo de algum modo invisível para eles), ainda mais ao observar a relação de subserviência a que elas mesmas se submetem por medo de algo pior acontecer.
É na figura de Mónica, a filha que os visita, que Óscar projeta um gigantesco entrave na sua rotina e em suas ações tão meticulosamente arquitetadas, pois a garota, diferente dos pais e dos irmãos, outrora conseguiu se desvencilhar da relação opressora que também vivia para conseguir trabalhar e estudar na capital, desafiando as ordens da criatura — e quando ela chega, tudo naquele lar desmorona.
Já na narrativa Musique concréte, uma das histórias que mais evocam o infamiliar na obra de Amparo, uma mulher descobre que o marido a trai com uma costureira e é assombrada por um coaxar constante e enlouquecedor, cuja origem é ainda mais perturbadora: a própria amante, que com olhos imensos e postura de sapo, a persegue em todos os lugares, encarando-a.
Leia mais » Biblioteca Wandinha Addams: livros de terror escritos por mulheres que ela teria na estante
Este conto também evoca o arquétipo da “mulher insana” que aparece em determinadas obras de terror, semelhante ao que sofre a protagonista de O papel de parede amarelo, história de Charlotte Perkins Gilman, uma vez que a personagem de Musique concréte não é levada a sério pelo amigo narrador da história e passa a se questionar se tudo aquilo não é fruto de sua imaginação, enquanto o exterior tenta a qualquer custo destruí-la e enlouquecê-la de fato.
Mas é em Moisés y Gaspar que Amparo Dávila tem uma de suas histórias mais emblemáticas e alvo de diversos estudos literários, por ser profundamente ambígua do início ao fim e suscitar emoções completamente confusas nos leitores: um homem recebe a notícia do falecimento do irmão e fica encarregado de cuidar de Moisés e Gaspar, dois animais de estimação que ora se comportam como gatos ou cachorros, não se sabe ao certo, ora parecem duas crianças que, enlutadas, passam a tirar o sono de seu novo tutor, despertando nele um desejo sanguinário nunca vivenciado.
Leia mais » De gados e homens: a representação da violência na obra de Ana Paula Maia
A própria ambientação do conto, assim como em El huésped, transmite o processo traumático de luto pelo qual tanto o protagonista quanto os dois animais estavam passando, ao descrever os cenários como cobertos por uma névoa que não permitia enxergar aquilo que estava diante dos personagens, fazendo com que toda a atmosfera fosse envolvida por um pesadelo sem fim.
A maioria de suas histórias termina abruptamente e de forma certeira, até mesmo um tanto pessimista, e os desfechos poderosos povoam o imaginário dos leitores até mesmo após o término das leituras.
***

A autora faleceu recentemente, em 2020, aos 92 anos. Partiu de braços dados com a Morte, sua velha conhecida, em um dia lindo de primavera, como sempre sonhou partir — e aqui, a Ceifeira permanece povoando sua obra inquietante, repleta do terror maravilhoso que assombra, inspira. Permanece.
Fontes:
- *Unseen Forces Menace ‘The Houseguest’ (NPR)
- The Crying Cat (The Paris Review)
- The Fern Cat (The Paris Review)
- Amparo Dávila em the horror of domesticity (Columbia Journal of Literary Criticism)