Rinha de Galos: as mulheres monstruosas de María Fernanda Ampuero

Rinha de Galos: as mulheres monstruosas de María Fernanda Ampuero

A presença feminina na literatura latino americana vem ganhando cada vez mais destaque na mídia, em especial as autoras que se debruçam sobre o horror e o fantástico. Seja na Argentina com Mariana Enriquez e Samanta Schweblin, na Bolívia com Giovanna Rivero ou até mesmo no Brasil com Ana Paula Maia, a cada ano surgem novas histórias de arrepiar os cabelos. No Equador, um dos expoentes é María Fernanda Ampuero, que teve seu livro de contos Rinha de galos traduzido por Silvia Massimini Felix e publicado pela editora Moinhos em 2021.

Ampuero é uma jornalista e escritora, nascida em 1976 em Guaiaquil. Escreve tanto ficção quanto não ficção, e já foi publicada em mais de 5 línguas, sendo a edição da editora Moinhos sua primeira em português. Sua carreira literária começou com duas obras não ficcionais, Lo que aprendí en la peluquería, de 2011, uma coletânea de crônicas e Permiso de residencia, de 2013, sobre a migração de equatorianos para a Espanha, onde reside desde 2005. Rinha de galos é sua estreia na ficção, que também conta com um lançamento do ano passado intitulado Sacrificios humanos e ainda não tem tradução no Brasil.

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O mais notável no trabalho da autora no seu primeiro percurso por histórias ficcionais é o empenho em construir narrativas curtas e concisas, mas tão assustadoras quanto longos relatos detalhados. Nos 13 contos de Rinha de galos, María Fernanda Ampuero cria pesadelos com situações que não pertencem ao onírico, como o abuso sexual e a violência contra a mulher.

Alguns, todavia, se perdem e tornam-se esquecíveis, outros reverberam como grandes histórias de horror, que é o caso das suas mulheres monstruosas. Destacando 3 contos da antologia, é possível compreender como a autora constrói suas personagens femininas, cercadas pelo medo, pela loucura, pela vingança.

Autora de Rinha de Galos, María Fernanda Ampuero.
Autora María Fernanda Ampuero | Imagem: reprodução

Aviso: esse texto contém spoilers da obra

Aos galos que devoravam minhas tripas

O conto que abre o livro e determina o tom que coletânea vai seguir é intitulado Leilão. Com uma forte construção atmosférica, a narradora não identificada, já na idade adulta, remonta brevemente a sua infância, quando acompanhava o pai em rinhas de galos e sofria constantes assédios.

No tempo presente da narrativa, ela identifica pelo cheiro podre de vísceras o lugar onde está: um galpão sujo e escuro, no meio do nada, junto com outros desafortunados que foram sequestrados durante uma viagem de táxi. Há um leilão acontecendo, no submundo do crime. E ela é uma das peças à venda.

“Certa noite, a barriga de um galo estourou enquanto eu o carregava nos braços como se fosse uma boneca, e descobri que aqueles homens tão machos que gritavam e atiçavam para que um galo rasgasse o outro de cima a baixo tinham nojo da merda, do sangue e das vísceras do galo morto. Assim, eu passava essa mistura nas mãos, nos joelhos e no rosto, e eles pararam de me importunar com beijos e outras idiotices. Diziam ao meu pai: “sua filha é um monstro.” (p. 10)

Leilão é uma história contada em poucas páginas, contudo, elas são suficientes para María Fernanda Ampuero mostrar a que veio. O ambiente é preenchido pela voz do homem responsável pelo leilão e pelo medo que envolve os futuros leiloados. Quando chega a vez da narradora, é a lembrança do terror que vivia na infância que a salva de um final trágico. Ser considerada monstruosa é mais uma vez sua salvação em meio aos verdadeiros monstros. Ou melhor, aos homens comuns.

Medo dos vivos e dos mortos

Mais um conto de Rinha de galos é Monstros, protagonizado por irmãs gêmeas de 12 anos. Os dias das meninas se dividem entre assistir clássicos do cinema de horror e tremer de medo dos filmes na hora de dormir. Esse é o momento em que chamam pela presença de Narcisa, a empregada doméstica de apenas 14 anos que trabalhava na casa, apesar do desgosto que isso provocava no pai delas.

Cercado pelas referências aos mais assustadores personagens do cinema, a narrativa traz a primeira menstruação como marco da passagem entre a infância e o tornar-se mulher, momento esse tão aterrorizante para as garotas quanto uma aparição do vilão Freddy Krueger.  

Edição de Rinha de Galos, publicado pela editora Moinhos.
Edição de Rinha de Galos, publicado pela editora Moinhos | Imagem: reprodução

Narcisa era pequena em tamanho e idade, apenas dois anos a mais que nós, mas parece que já tinha vivido umas quatrocentas vidas a mais.

Estava nos machucando quando disse que agora sim que tínhamos que nos preocupar mais com os vivos que com os mortos, que agora sim tínhamos que ter mais medo dos vivos que dos mortos.

— Agora vocês são mulheres — disse. — A vida não é mais uma brincadeira.” (p.25)

Enquanto a narradora mantém-se firme frente aos filmes assustadores, sua irmã Mercedes, a mais frágil e mais medrosa da dupla, tem constantes pesadelos com freiras possuídas. Conforme a história caminha para uma conclusão, as irmãs começam a entender os conselhos de Narcisa, que esconde delas um segredo violento revelado apenas nos últimos parágrafos. 

O riso do vinho e da liberdade em Rinha de Galos

Se nos primeiros contos destacados o momento de horror era o tempo presente na narrativa, em Luto são as memórias do passado que representam tamanha crueldade. Mesclando os dois períodos, as protagonistas Marta e Maria celebram que agora vivem sozinhas na casa onde moram, lugar que um dia também foi habitado pela mãe, pelo pai agressivo e pelo irmão que tomou seu lugar de algoz.

Então, cheia de vinho e de frango e da noite libérrima, Maria tirou o vestido,  fechou os olhos e abriu os braços para que sua irmã a visse inteira, nua, como se estivesse na cruz.

Para que visse o que as pessoas são capazes de fazer quando ninguém as detém. Para que entendesse, nos talhos da pele, que a crueldade sempre triunfa diante do desamparo.” (p. 68)

A condenação da sexualidade feminina é o único motivo que faz o irmão torturar Maria, deixando-a para morrer em uma vala no curral após inúmeras agressões. O homem não contava que ficaria muito doente e sobraria apenas Marta para cuidar dele, a irmã que não pode proteger Maria de tanto sofrimento, mas que consegue se vingar do homem em seu momento de vulnerabilidade. 

Considerando a totalidade das narrativas de Rinha de galos, a antologia tem seus pontos fracos e contos pouquíssimo memoráveis. Contudo, prevalece a ideia de monstruosidade gendrada, ligada às mulheres consideradas monstros apenas por serem mulheres ou por arriscarem ultrapassar uma barreira de comportamento idealizada pelos homens, esses sim as verdadeiras criaturas abjetas das histórias.


Rinha de galos

María Fernanda Ampuero

Editora Moinhos

82 páginas

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Escrito por:

Carioca, flamenguista e gateira em tempo integral, projeto de roteirista-escritora nas horas vagas. Pode ser encontrada nas redes sociais comentando sobre literatura escrita por mulheres, cinema de horror ou a última corrida da Fórmula 1.
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