Em entrevista ao Caderno G”, da Gazeta do Povo, a escritora argentina Samanta Schweblin alegou “não sentir a presença do fantástico em seus trabalhos” e que “não se considerava continuadora da literatura fantástica” típica de seu país, elucidada pelos trabalhos de Adolfo Bioy Casares, seu escritor favorito, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, mestres do gênero e inspirações para a autora, como revelado mais à frente na entrevista.
Nascida em Buenos Aires, em 1978, Samanta Schweblin escreve sobre realidades palpáveis, mas que cobertas por uma aura de estranheza, aguça o imaginário de leitoras e leitores, nos permitindo continuar a peregrinação ficcional da autora através de imagens que, contrariando o que Samanta de fato sente, são fantásticas e transcendem o lugar-comum do cotidiano por excelência.
Desde pequena, Samanta gosta de contar histórias. Aos 12 anos, parou de falar espontaneamente e, após muita angústia por parte dos pais e uma série de exames psicomotores, descobriram a real causa do interrompimento da fala: a garota não se entendia com a própria língua e não sentia que o que queria dizer às pessoas era compreendido, de fato. Por conta disto, enxergou na literatura uma forma de voltar a ter voz e fazer-se legível para o mundo. “Ficava muito frustrada com a linguagem. Me chateava com a distância entre o que eu queria fazer, transmitir e o que, por fim, chegava ao outro” (tradução livre), disse a autora em entrevista à BBC Mundo.
Ela contou, em entrevista ao canal alemão Literarisches Colloquium Berlin, que a família fora grande incentivadora de suas empreitadas pelo mundo da literatura, inclusive incentivando-a a inscrever-se em concursos de redações (inscrevendo-se pela primeira vez em um deles apenas para mostrar aos familiares que não iria ganhar, Samanta recebeu a condecoração pelo melhor texto da competição). Vencedora do prêmio Casa de las Américas (2008), ela foi eleita pela revista Granta como uma entre os 22 melhores escritores e escritoras de língua espanhola da nova geração.
Leia-a sem respirar
Formada em Cinema pela Universidade de Buenos Aires, Samanta montou uma agência de design, mas nunca fora o que realmente quis fazer:
“Meu plano A era o de escrever. Mas, para concretizar o plano A precisava de um plano B que me desse um retorno financeiro. No entanto, a agência cresceu muito rápido e me aniquilava o tempo para o plano A. Por isso, quando recebi uma bolsa do governo mexicano em Oaxava, ‘baixei a persiana’, deixei a agência para meus empregados e decidi que só ficaria com o plano A. É difícil viver de escrever, mas dá para viver dando aulas de literatura. Minha vida agora é mais austera, menos estressante e com mais tempo livre. E estas são três coisas importantes para o espaço da escritura!”
(Samanta Schweblin, em entrevista ao Estado de São Paulo em 05 de abril de 2012)
O ritmo cinematográfico de uma vida atarefada foi transferido para seus contos que, em poucas páginas, vão direto ao ponto e mostram às leitoras e leitores o propósito da história. Samanta acredita que objetividade da velocidade permite que o leitor faça parte do enredo e infira muitos aspectos não apenas ao final das obras (a autora gosta de ter controle sobre o texto e arrematá-lo com um fim fechado), mas, principalmente, em seu desenvolvimento.
As imagens evocadas por sua escrita dariam excelentes filmes e, inclusive, seu romance “Distância de Resgate“, publicado no Brasil pela Galera Record, está sendo gravado pela diretora peruana Claudia Llosa (La Teta Asustada, 2009) e conta com a atriz espanhola María Valverde (Tres metros sobre el cielo, La flaqueza del bolchevique) e a argentina Dolores Fonzi (La patota, El campo, La cordillera) como protagonistas. O filme será lançado pela Netflix, mas ainda não tem data de estreia confirmada.
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A fragilidade das famílias como tema norteador
As relações familiares e as problemáticas que delas derivam estão presentes em boa parte das obras de Samanta. O conto que dá título ao livro “Pássaros na Boca” (obra vencedora do prêmio Casa de las Américas), por exemplo, apresenta pais separados que precisam lidar com o fato de a filha pequena passar a alimentar-se de pássaros vivos. O próprio “Distância de Resgate” versa sobre a relação entre mãe e filha e as dificuldades da maternidade. Para Samanta, tudo o que pode existir de estranho, inadequado e conflituoso parte primeiro da relação do ser com os próprios familiares.
A literatura de Samanta Schweblin, apesar de aqui e acolá apresentar-nos faíscas de um imaginário que transcende as leis do realismo puro, é muito orgânico ao ser facilmente comparado com ocasiões que, se não acontecidas em nosso dia a dia, poderiam muito bem estar presentes nas vidas de outras pessoas.
Além disto, a autora trabalha as características psicológicas de seus personagens de forma que pareçam fiéis às pessoas comuns que existem mundo à fora. Suas motivações, medos, desejos e realizações são verossimilhantes e tornam a prosa de Samanta uma caixa de surpresas (boas), uma vez que, somadas ao insólito, entretêm e são digeridas aos poucos após o arremate de cada página. A forma íntima como se relacionam é, muitas vezes, a força motivadora e destruidora das relações presentes nas obras. Tudo é efêmero.
Uma carreira premiada
Samanta Schweblin foi traduzida para mais de 25 línguas e carrega vários prêmios por seus contos e romances: El núcleo del disturbio, seu primeiro livro, recebeu o primeiro prêmio do Fondo Nacional de las Artes (2001), “Distância de Resgate” deu a ela o prêmio Tigre Juan (2015) e uma indicação ao Man Booker Prize (2017) com a edição traduzida para o inglês desta obra. Em 2018, a autora recebeu o prêmio Shirley Jackson na categoria conto. Seu último lançamento, chamado “Kentuckis”, fala sobre os perigos da hipertecnologia.
Desde 2012, Schweblin mora em Berlim, Alemanha, onde leva uma vida pacífica em sua peregrinação pela literatura e dá aulas de escrita criativa. Assumidamente feminista, ela apoia os atos revolucionários pró-aborto ocorridos na Argentina e é, sem dúvidas, uma das vozes mais inspiradoras da contemporaneidade.
Deste modo, Samanta Schweblin e sua prosa original ganham cada vez mais destaque entre os novos e antigos apreciadores e apreciadoras da literatura latino-americana tão rica, plural e significativa, e serve como exemplo para outras autoras do gênero desabrocharem e colocarem tantos escritos, igualmente importantes, no mundo.
Edição realizada por Isabelle Simões.