A Mulher da Casa Abandonada: um ensaio sobre o true crime

A Mulher da Casa Abandonada: um ensaio sobre o true crime

Uma mulher morando em uma mansão abandonada em um dos bairros mais ricos de São Paulo. Se você vive no Brasil e tem acesso à internet, é muito provável que você já tenha ouvido pelo menos uma variação dessa frase ao longo do mês de julho de 2022. Na verdade, é bem possível que você não aguente mais ouvir falar na tal mulher, nem em mansão abandonada, nem em São Paulo, e menos ainda no podcast que deu origem a todo esse bafafá: A Mulher da Casa Abandonada.

Desenvolvido pelo jornalista Chico Felitti para o jornal Folha de São Paulo, A Mulher da Casa Abandonada tem como personagem central Margarida Bonetti. Moradora de uma mansão decrépita no bairro de Higienópolis, Margarida inspira pena e curiosidade naqueles que a veem com o rosto coberto de Hipoglós, arrumando briga com funcionários da prefeitura por causa de um suposto esquema de corrupção na poda de árvores. Mas isso é só num primeiro momento. A pena é substituída por raiva e indignação quando é revelado que Margarida já esteve na lista de procurados do FBI por manter uma mulher por 20 anos em condições análogas à escravidão, nos Estados Unidos.

Chico Felitti - A Mulher da Casa Abandonada
Chico Felitti | Imagem: Chico Felitti/Divulgação
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A história de Margarida Bonetti e da mulher que ela escravizou (cujo nome é mantido em sigilo) não é fácil de contar. E, para muita gente, ela não foi contada do jeito certo. Para outros, porém, o problema não está na forma como Felitti abordou o caso, mas na recepção do podcast pelos fãs e pelo resto da mídia. Em vez de encarar o caso com seriedade, alguns ouvintes do podcast optaram por encher as redes sociais com fotos de si mesmos com a cara cheia de pomada branca na frente da tal casa. Daí para um circo midiático completo, com direito a Datena e Luísa Mell, foi um pulo.

A Mulher da Casa Abandonada furou a bolha de quem normalmente consome podcasts e séries de true crime. Virou um dos assuntos mais comentados da internet brasileira. E, como costuma ser o caso quando as coisas ganham essa proporção, tornou-se praticamente impossível ter uma conversa equilibrada sobre o podcast. No Twitter, críticas válidas ao trabalho de Felitti se misturavam a teorias da conspiração, como de que o jornalista estaria sendo pago por grandes empresas do ramo imobiliário. Rapidamente, formou-se um tribunal não apenas do podcast em si, mas de todo o gênero true crime.

Mas, afinal, o true crime é ou não é sensacionalista? Tem ou não tem serventia social? E Felitti, soube contar com ética e sensibilidade a história que escolheu investigar? São essas e outras perguntas que a gente não vai responder nesse texto, porque, no fim das contas, as respostas não são fáceis de achar. Contudo, vamos procurá-las mesmo assim.

True crime: o que é e de onde vem

Talvez seja bom colocar as cartas na mesa: este texto não é uma crítica de A Mulher da Casa Abandonada. Ou até é, mas não só. Como foi o podcast que motivou muitos dos questionamentos que apresentamos aqui, é impossível não falar de sua qualidade. Porém, o objetivo do texto não é dizer se o podcast é bom ou ruim, sensacionalista ou jornalismo de primeira. O objetivo é discutir algumas das questões que foram levantadas pelo programa e pensar quando e como devemos consumir conteúdo sobre crimes.

A expressão true crime, ou crime verdadeiro, serve de guarda-chuva para diversos tipos de produções midiáticas com algumas coisas em comum. Uma série, filme, podcast, livro ou até quadrinho de true crime deve ter como ponto de partida um crime real. A abordagem pode ser ampla ou focada em aspectos como os detalhes do crime, a investigação, as vítimas, os acusados ou condenados, a cobertura midiática ou o impacto que o crime e sua cobertura tiveram na sociedade da época (e vice-versa).

Praia dos Ossos
Banner do podcast Praia dos Ossos | Imagem: Elisa Pessôa/Divulgação

Algumas obras de true crime fazem um apanhado de tudo o que se sabe sobre um crime que já ocorreu e discutem o caso de uma perspectiva mais “histórica”. É o caso, por exemplo, do podcast Praia dos Ossos, sobre o assassinato da socialite Ângela Diniz e a repercussão que o crime teve no Brasil dos anos 70. Outras dedicam-se a uma investigação que busca desvendar um caso ou questionar a solução oficial. Entre os exemplos, podemos citar O Caso Evandro, a primeira temporada de Serial e o longo trabalho da jornalista Michelle McNamara para descobrir a identidade do Golden State Killer, documentado no seriado I’ll Be Gone in the Dark, da HBO.

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Mas nem tudo são rosas no mundo do true crime. Na verdade, muito do que brota no campo do gênero costuma estar mais para erva daninha. É que a expressão guarda-chuva também recobre produtos midiáticos bem menos prestigiados do que os citados no parágrafo acima. Dá para chamar programas sensacionalistas como finado Linha Direta, da Rede Globo, e os muitos derivados do Brasil Urgente de true crime. Aqueles sites e perfis que prometem fotos chocantes do último crime do momento sem a menor preocupação com a dor das vítimas também podem reclamar o rótulo.

Cena de O caso Evandro
Cena de reconstituição de O Caso Evandro | Imagem: Divulgação/Globoplay

Embora muitos profissionais e fãs do gênero gostem de atribuir o nascimento do true crime ao jornalista americano Truman Capote, a realidade é bem menos glamourosa. Claro, é difícil imaginar a existência de um Serial ou Making a Murderer em um mundo em que A Sangue Frio nunca foi publicado. Lançado em 1965, o romance de não ficção de Capote fala sobre o massacre da família Clutter, ocorrido no Kansas, em 1959. O livro é considerado um marco por sua abordagem repleta de liberdades narrativas e com ricos detalhes das vidas das vítimas, dos assassinos e da comunidade rural em que o crime aconteceu.

Contudo, bem antes de Capote sequer saber o que era um crime, já havia uma longa tradição de escritos sobre assassinatos, estupros e crimes escabrosos como um todo. Em um artigo para o Jstor Daily, Pamela Burger diz que, a partir do século XVI, a nascente imprensa britânica começou a produzir um imenso número de panfletos sobre crimes capitais, ou seja, que podiam levar à pena de morte. Segundo a autora, assim como no caso dos documentários atuais, o tom dos textos de antigamente podia variar bastante:

“Essas narrativas podiam ir do sensacionalista ao espiritual e ao didático, às vezes, em um mesmo panfleto. Algumas serviam de propaganda estatal, ao passo que outras eram fábulas morais que retratavam o criminoso como um degenerado que enfrentaria a justiça a divina. Outros, ainda, falavam com compaixão das vidas dos criminosos, principalmente de ‘mulheres perdidas’, embora a compaixão muitas vezes tivesse tons de condenação moral. Por mais sensacionalista que fossem os panfletos, eles também chamavam atenção para as dificuldades dos pobres e marginalizados.”
A Arma de Lizzie Borden
Christina Ricci em A Arma de Lizzie Borden | Imagem: Divulgação

No século XIX, o interesse por crimes reais aumentou com o surgimento das primeiras forças policiais regulares, das ciências criminais e dos tabloides. Autores renomados como Charles Dickens e William Makepeace Thackeray começaram a demonstrar interesse no tema e a publicar textos criticando as formas de punição da época.

Em 1829, o ex-criminoso e investigador Eugéne-François Vidocq publicou seu livro de memórias, influenciando tanto detetives reais quanto da ficção. Em 1842, Andrew e Abby Borden foram mortos a machadadas em sua casa no estado de Massachusetts. Segundo Burger, o julgamento da filha do casal, Lizzie Borden, pelo crime recebeu uma atenção midiática comparável ao caso O.J. Simpson. Até hoje, Lizzie é objeto de interesse de escritores e cineastas.

Ao que tudo indica, a atual onda de produções de true crime começou com o lançamento do podcast Serial, da jornalista Sarah Koenig. Lançado em 2014, o podcast reexamina a condenação do jovem Adnan Syed pelo assassinato da namorada, Hae Min Lee, em 1999. Outro marco importante foi o lançamento da série documental Making a Murderer pela Netflix, em 2015. O seriado conta a história de Steven Avery e Brendan Dassey, condenados pelo estupro e assassinato de uma mulher. O foco do documentário são os muitos erros cometidos durante as investigações, e uma suposta rixa entre Avery e membros importantes da polícia local.

É perceptível o boom no número de séries documentais sobre crimes de meados da década passada para cá. Segundo o site The Ringer, houve um aumento de 63% só entre janeiro de 2018 e março de 2021. Isso falando apenas da TV americana.

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A Mulher da Casa Abandonada - Brasil Urgente
Brasil Urgente fala de Margarida Bonetti | Imagem: Reprodução

Porém, embora seja difícil encontrar dados do tipo sobre o Brasil, basta dar uma olhada nas plataformas de streaming para ter uma ideia do sucesso do formato. Só entre 2021 e 2022, tivemos O Caso Evandro, Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime, O Caso Celso Daniel, Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez e por aí vai. No âmbito dos podcasts, Carol Moreira e Mabê Bonafé fazem sucesso com o Modus Operandi, Ivan Mizanzuk está na quarta temporada do Projeto Humanos, a Atabaque Produções lançou Cálice e a Folha veio com A Mulher da Casa Abandonada.

E, é claro, o Brasil Urgente e seus irmãos continuam firmes e fortes.

Questões éticas e modos de usar

Mas nem só de Datenas vive a crítica ao true crime. Como bem aponta o investigador e pesquisador em Psicologia Social Lucas Ed., para cada Caso Evandro há um mar de TikTokers fazendo maquia e fala sobre crimes hediondos. Para cada Cálice, há milhares de programas detalhando a biografia de Charles Manson. Falar de crimes é sempre um clique fácil, audiência garantida, mais um exemplar vendido. E, com isso, vem uma série de problemas.

O primeiro deles é o quanto o true crime alimenta aquilo que a jornalista americana Gwen Ifill chamou de síndrome da mulher branca desaparecida. Trocando em miúdos, a síndrome da mulher branca desaparecida é quando a mídia devota todo o seu aparato para cobrir o caso de, bem, uma mulher branca desaparecida ao passo em que ignora o número de mulheres negras e indígenas que desaparecem e morrem com muito mais frequência. Isso cria uma discrepância entre os crimes que realmente se apresentam como problemas sociais e aqueles que são percebidos como problemáticos.

A crítica midiática Princess Weekes fala de algo parecido em um vídeo para o YouTube. Ao discutir o Amber Alert – sistema de alerta americano para desaparecimento de crianças –, ela diz que ele é criado para responder ao pânico do stranger danger. Ou seja, ele serve para combater casos de sequestros cometidos por estranhos nas ruas, mas ignora que a grande parte da violência contra crianças ocorre dentro de casa. Mesmo os sequestros são muitas vezes cometidos por pais que perderam a guarda de seus filhos. Não é que o Amber Alert não sirva para o problema que foi criado para resolver, mas ele tem como efeito colateral a criação de uma falsa sensação de segurança.

Panfleto do século XIX
Panfleto de crime do século XIX | Imagem: U.S. National Library of Medicine Digital Collections
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A verdade é que as coisas mudaram bem pouco dos panfletos do século XVI para cá. Assim como nos folhetos da Europa renascentista, o foco continua recaindo sobre as histórias que podem servir de fábula moral. A lição é que você não deve deixar o seu filho sair na rua ou não deve falar com homens estranhos, pois há sempre um serial killer à espreita. A lembrança de que o perigo está muito mais perto do que a gente imagina e pode ser imperceptível não é assim tão bem-vinda. Afinal, ela viola a nossa ilusão de segurança e vai contra o mito de que, se você se comportar direitinho, nada de ruim vai lhe acontecer.

Mais do que criar uma falsa sensação de segurança, o true crime também pode estimular aquilo que temos de pior dentro de nós. Ao falar sobre um ataque a faca que sofreu enquanto passeava com seu cachorro, a escritora Emma Berquist traz para a mesa os inúmeros produtos midiáticos sobre o serial killer Ted Bundy e suas vítimas. Segundo os criadores desses produtos, Bundy teria se aproveitado da generosidade das mulheres que matou, fingindo precisar de ajuda para recuperar um animal perdido.

Logo, é importante sempre seguir os seus instintos e não se deixar levar por estranhos pedindo socorro, pois eles podem ser assassinos disfarçados. Contudo, Berquist ressalta que se a mulher que parou para socorrê-la após a facada tivesse seguido esses conselhos, talvez ela não tivesse sobrevivido para contar a história.

Weekes também bate nessa tecla dos instintos. “E se o seu instinto for racista?”, ela pergunta. “E se o seu instinto for sexista? E se o seu instinto for homofóbico? E se o seu instinto causar a morte de alguém? E se a sua reação instintiva for fruto de anos de preconceitos internalizados?

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E isso não fica restrito apenas a crimes violentos. Recentemente, dois subgêneros do true crime que andaram fazendo muito sucesso foram os documentários sobre seitas e golpistas. Como aponta a crítica de cinema e televisão Ieda Marcondes, nesses casos, o que move o espectador é a falsa certeza de que ele jamais seria como aquelas pessoas na tela. “Ficamos felizes em imaginar que jamais passaríamos pelo mesmo, que somos muito inteligentes para cair num golpe ou fazer parte de uma seita”, diz Marcondes.

O Falsificador Mórmon
Cena da série O Falsificador Mórmon | Imagem: Divulgação/Netflix

Mas o true crime também pode ir além do schadenfreude, da fábula moral e da falsa segurança. Marcondes aponta que, em muitos casos, falar ou ouvir falar de crimes reais pode ser uma forma de processar os horrores do próprio passado. Weekes, em outro vídeo, fala de obras de true crime que chamam atenção para as falhas da polícia e do sistema judiciário – e nem precisa ser um Caso Evandro e comprovar tortura por A + B para fazer algo decente nesse sentido.

Trazer a perspectiva da vítima ou oferecer as lentes certas para que o público possa entender um determinado acontecimento também podem ser benefícios de um bom true crime. Uma das melhores produções sobre seitas lançadas na última década é o podcast Heaven’s Gate. Nele, o jornalista Glynn Washington conta a história de uma comunidade religiosa new age que ficou conhecida por um suicídio coletivo nos anos 90. Tendo sido criado em uma seita cristã, Washington lança um olhar humanizado para os membros da Heaven’s Gate e procura entendê-los. Mais do que isso, procura entender sua própria experiência e o que levou seus pais a entrar para uma seita.

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Crimes são parte da sociedade em que vivemos. Portanto, falar de um crime de maneira responsável não pode ser nunca falar de um crime. Se fizermos um apanhado de todos os “crimes que chocaram o país” das últimas três décadas, não tem um que não revele algo profundo sobre a sociedade brasileira – e, portanto, que não renda uma boa reportagem ou documentário.

Falar do caso Liana Friedenbach, por exemplo, pode ser falar sobre como a morte de uma jovem e a dor de um pai foram usados por uma extrema-direita sedenta por sangue e poder. Falar da chacina da Candelária pode ser falar dos esquadrões de extermínio da polícia carioca e como isso desemboca nas milícias.

Mas também dá para não falar de nada disso. Dá para passar 15 minutos detalhando todas as violências que Liana sofreu antes de morrer ou bater palma para a polícia pelos CPFs cancelados de gente que nem tinha idade para tirar documentos. É mais fácil, mais barato, exige menos do senso crítico e, portanto, é o que mais tem por aí.

Mas e A Mulher da Casa Abandonada nisso tudo?

A primeira pergunta deve ser feita a respeito de A Mulher da Casa Abandona é se ele é um podcast de true crime. A resposta é que até é, mas não só. A Mulher da Casa Abandonada é uma obra que se encaixa muito bem no resto da carreira de Chico Felitti, que é um jornalista voltado para crônicas sociais. 

Seus dois trabalho anteriores mais conhecidos são a reportagem Fofão da Augusta? Quem me chama assim não me conhece, para o Buzzfeed News, e o podcast Além do Meme. Em ambos, Felitti procura mostrar o que há de real e de humano por trás de coisas ou pessoas coisificadas que são reconhecidas apenas como curiosidades. É um trabalho de desmistificação do folclore urbano que também está presente em A Mulher da Casa Abandonada.

Assim como em Fofão da Augusta e Além do Meme, Felitti mostra que, por trás daquela coisa estranha que é a mansão decrépita de Higienópolis, há pessoas e uma história. Só que, dessa vez, em vez da beleza de uma vida ou da complexidade de uma foto viral, o que veio à tona foi algo feio e tristemente banal.

Reportagem Fofão da Augusta
Uma das fotos da reportagem Fofão da Augusta? | Imagem: Reprodução/Buzzfeed News

E daí vem a primeira crítica que pode ser feita a A Mulher da Casa Abandonada: o gênero de jornalismo escolhido por Felitti é realmente o mais apropriado para contar uma história de escravidão contemporânea? No podcast, Felitti se coloca como protagonista em alguns momentos. Passa longos minutos descrevendo o que estava fazendo quando recebeu uma ligação ou contando de quando foi tomar um café. São amenidades que cabem na crônica social, mas que parecem fora de lugar quando estamos lidando com um caso tão sério.

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O protagonismo de Felitti também pode ser sentido nas inserções musicais. A trilha sonora do podcast reflete o percurso do jornalista: começa bobinha quando ele apresenta Margarida Bonetti como uma figura estranha arrumando confusão com funcionários da prefeitura e fica sombria conforme se revela a gravidade da situação. Faz sentido, mas para entender como isso é um problema, basta imaginar uma versão em podcast de Fofão da Augusta que começasse com uma música de programa infantil dos anos 80.

Embora o protagonismo de Chico Felitti seja questionável em alguns momentos, por outro lado, ele serve para amenizar o foco na verdadeira personagem principal do documentário: Margarida Bonetti. Afinal, são ela e a casa em que mora que são as atrações de circo que Felitti tenta desmistificar. Dar mais espaço do que o necessário para Margarida poderia torná-la uma personagem demasiadamente simpática e desviar a atenção do que realmente importa: a violência cometida contra a mulher que passou 20 anos sendo escravizada por Margarida e o marido, Renê Bonetti.

Porém, isso não significa que Margarida não deva ter espaço nenhum na reportagem. Muitos ouvintes se incomodaram com o fato de o último episódio ser uma entrevista com Margarida. A crítica é de que alguém como ela não deveria ser ouvida. Contudo, como lembrou o jornalista Leandro Demori no Twitter:

“Por princípio o jornalismo ouve, sim, todo mundo. O que a gente mais faz em muitos momentos é ouvir criminosos, pessoas horríveis. O ponto não é ouvir, o ponto é contrastar, não condescender, fazer as perguntas certas. Mas tem que ouvir. Falo isso porque vejo muita gente boa confundindo as coisas. Essa linha de raciocínio leva à criminalização do jornalismo. É a mesma linha de raciocínio que muitas vezes criminaliza advogados. Peço que tomem cuidado. Esse caminho de ‘não se ouve tal tipo de pessoa’ é complicado”.

No sexto episódio de Praia dos Ossos, a jornalista Branca Vianna discute consigo mesma a decisão de entrevistar o assassino de Ângela Diniz, Doca Street. Afinal, Ângela não sobreviveu para contar a própria dos fatos, “talvez o Doca já tenha mesmo falado demais”. “Por outro lado”, Vianna continua, “não dá pra negar que o Doca também é um protagonista dessa história, e precisa ser retratado”.

Felitti não deixa Margarida falar sem oferecer contraponto. Contrasta, não condescende, faz as perguntas certas. Seu tom chega a ser até mesmo agressivo durante a entrevista, o que não chega a ser um problema dado o esforço que Margarida faz para falsear a realidade. Para alguns ouvintes, caiu mal a falta de paciência de Felitti, mas é no mínimo compreensível a irritação do jornalista.

A casa abandonada
A tal casa “abandonada” | Imagem: Reprodução

Chico Felitti também toma certo cuidado para não apresentar a história de Margarida Bonetti como algo extraordinário. O podcast procura contextualizar o caso, apresentando outras histórias de trabalhadoras domésticas submetidas a regime de escravidão. Contudo, a contextualização fica restrita ao quinto episódio. Talvez tivesse sido melhor costurá-la ao longo de toda a história. Ainda assim, o crime de Margarida não fica solto no espaço. Não aparece como algo que apenas um monstro inimaginável pode cometer.

Ao contrário do grosso das produções de true crime, A Mulher da Casa Abandonada também não aborda um crime chocante ou raro. Não cria uma ilusão de perigo constante ou de falsa segurança focando em um serial killer de criancinhas ou em uma mulher branca desaparecida. O crime do qual trata o podcast é comum, corriqueiro e vitima justamente pessoas que costumam ser ignoradas pela mídia policial – com exceção de quando são as acusadas.

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Os principais objetivos do podcast parecem ir em duas direções: o primeiro é desmistificar a tal casa que Felitti insiste em chamar de abandonada (um erro, pois ela é muito da habitada), além de chamar atenção para os crimes de escravidão contemporânea. O programa, portanto, tem como propósito conscientizar e dar uma cara ao tipo de crime cometido por Margarida. Nesse sentido, o podcast tem sucesso e falha ao mesmo tempo: consegue dar uma cara para a criminosa, mas ela é, muitas vezes, excêntrica demais para que os ouvintes reconheçam nela seus vizinhos e familiares; já a vítima, que prefere não ser identificada, permanece sem rosto.

Entre o Brasil Urgente e O Caso Evandro – que se estabeleceu como o grande exemplo de true crime de prestígio no Brasil – há uma vastidão povoada por pesquisas sérias e fios de Twitter sem um pingo de senso crítico. A Mulher da Casa Abandonada fica em algum ponto dessa grande planície, no lado das investigações jornalísticas mais aprofundadas. É um trabalho que tem suas falhas, mas também tem seus méritos.

Talvez a principal crítica que pode ser feita a A Mulher da Casa Abandonada não seja ao texto ou à edição do podcast em si, mas àquilo que o cerca. Felitti e a Folha deveriam ter tido mais cuidado com a forma como o podcast foi divulgado, evitando, por exemplo, participações em podcasts de fofoca. E, embora o jornalismo dependa em grande parte da publicidade para se manter, um anúncio de um filme de terror como O Telefone Preto não foi a melhor escolha para um conteúdo tão pesado. (Aliás, tem toda uma discussão que dá para ser feita sobre a relação do terror com o true crime, mas essa é outra história.)

E, por fim, teve toda aquela repercussão…

A mulher, a casa, a mídia e o público

A primeira vez em que muita gente ouviu falar de A Mulher da Casa Abandonada foi quando rios de fotos e vídeos de pessoas com a cara coberta de pomada branca na frente da mansão de Higienópolis começaram a aparecer nas redes sociais. O podcast já estava por volta do quarto episódio e daí em diante as coisas degringolaram rapidamente. A influencer Luísa Mell começou a dar plantão na frente da casa de Margarida para “resgatar” os cachorros de estimação da mulher e o nome real da vítima chegou a ser pichado no muro da casa.

No dia 20 de julho, um verdadeiro circo se formou no quarteirão da casa: policiais loucos para mostrar serviço resolveram investigar um gato de energia e/ou as condições de habitação na mansão, acompanhados de perto por uma equipe do programa Brasil Urgente, da Band, entre outros. Luísa Mell foi junto e “resgatou” mais um cachorro em transmissão ao vivo. O apresentador José Luís Datena tratou Margarida como uma pobre senhorinha abandonada. Já Luísa fez uma enquete no Instagram perguntando se Margarida, que nunca cumpriu pena, deveria ser perdoada por escravizar uma pessoa.

Luísa Mell - A Mulher da Casa Abandonada
Cenas da live de Luísa Mell | Imagem: Reprodução

Para quem já estava incomodado com a repercussão no mínimo estranha do podcast, foi a gota d’água. O clima azedou ainda mais quando Chico Felitti apareceu na live. Segundo o jornalista, ele estava fazendo pesquisa para um episódio extra sobre a repercussão de A Mulher da Casa Abandonada. Em entrevista ao podcast Café da Manhã, também da Folha, Felitti contou que foi avisado pela polícia antes da operação na casa de Margarida. A equipe do Brasil Urgente também foi alertada, assim como Luísa Mell.

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O jornalista também criticou o circo que se formou. “Fiquei muito preocupado pelo esvaziamento, pela banalização de uma coisa que não é banal“, disse. “A partir do momento que a pessoa reduz aquilo a uma fantasia, a uma dancinha, você tira todo esse debate, que era essencial, e fica oco.” Mas será que havia algo que ele poderia ter feito para impedir isso de acontecer?

Bom, é aí que as coisas se complicam. Por um lado, como já falamos, houve uma série de erros de julgamento na hora de pensar a divulgação do podcast, e o ar de crônica social nem sempre condiz com a história que Felitti quer contar. Por outro, não dá para garantir que a história teria sido encarada com a seriedade devida se o cuidado da produção tivesse sido maior.

Mais uma vez, citamos O Caso Evandro: mesmo com todo o cuidado de Ivan Mizanzuk para tratar do satanic panic com responsabilidade, muitos se animaram com a possibilidade de Frederick Wassef, advogado de Flávio Bolsonaro, ser parte de uma seita satânica quando o envolvimento dele com um grupo acusado de ter participado de um assassinato correlacionado veio à tona. Na época, Mizanzuk chegou a lançar um episódio especial do AntiCast só para esclarecer o envolvimento de Wassef no caso. No Twitter, chamou de irresponsáveis os que tratavam a história de maneira preguiçosa.

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Iva Mizanzuk
Ivan Mizanzuk em cena de O Caso Evandro | Imagem: Divulgação/Globoplay

No fim das contas, não há garantias de que uma história, por mais real e terrível que seja, será levada a sério pelo público que a lê, ou vê, ou ouve. Como no caso do grosso das produções de true crime que citamos anteriormente, é mais fácil olhar tudo com leveza indevida, sem questionar nada nem se sentir desconfortável. E o mecanismo de opressão que permite que façamos isso é muito mais profundo do que a trilha sonora ou os intervalos comerciais de um podcast.

Podemos e devemos questionar tais elementos, é claro, mas não dá para não colocar a mão na consciência e pensar em como nos relacionamos com a mídia que consumimos. Afinal, há pessoas que tiram selfies em campos de concentração e museus do holocausto, e não dá para dizer que essas instituições não levam a sério a memória das vítimas.

Para citar o advogado e professor Thiago Amparo: “Ao ouvir [A Mulher da Casa Abandonada], é fácil nos perdermos na máscara espessa de excentricidade, consumindo – como acostumados estamos – violência racial como entretenimento. Por trás do creme que Bonetti, a mulher, usa no rosto, há outra face, a nossa: o rosto de um país abandonado às ditaduras que habitam muros altos“.

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Tradutora, jornalista, escritora e doutoranda em Linguística, na área de Análise do Discurso. Gosta de cinema, de ficção científica, de cinema de ficção científica e de batata. Queria escrever quando crescesse e, agora que cresceu, continua querendo.
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