Em junho de 2012, os noticiários brasileiros foram tomados pelo assassinato de Marcos Matsunaga. Herdeiro da Yoki, o empresário foi morto e esquartejado pela esposa, Elize Matsunaga. O crime causou comoção nacional e as vidas de Marcos e Elize foram reviradas pela promotoria, pelos advogados e pela imprensa. Em 2021, quase dez anos após o crime, o caso volta aos holofotes com a série documental Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime, disponível na Netflix.
Dirigido por Eliza Capai, o documentário procura reconstruir não apenas a história do crime, mas também o julgamento e a repercussão na mídia. Para isso, conta com depoimentos do delegado, do promotor e dos advogados envolvidos, de jornalistas que cobriram o caso e de amigos e familiares de Elize e Marcos.
Porém, o grande trunfo da série é uma entrevista exclusiva com a própria Elize. Conduzida pela jornalista Thais Nunes, a entrevista foi gravada durante duas saídas temporárias de Elize, que cumpre pena em regime semiaberto. Ao todo, foram mais de 21 horas de material.
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É a primeira vez que Elize fala do crime desde que foi condenada, em 2016. Ao longo dos quatro episódios da série, ela também discorre sobre o relacionamento com Marcos, a filha e a adolescência no interior do Paraná.
Contudo, a série não se resume à entrevista em si. Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime chama atenção também para o machismo que permeou o julgamento e a cobertura do caso, principalmente depois que veio à tona o passado de Elize como garota de programa. Sem negar a gravidade do crime, o documentário procura entender a mente de sua personagem central e se pergunta por que o “caso Yoki” gerou tanta comoção.
Guerra de versões em “Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime”
Ao contrário de outros documentários de true crime, Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime não tem nenhum grande mistério nas mãos. Não há dúvidas a respeito de quem matou Marcos Matsunaga. Além de ter confessado o crime, Elize foi flagrada pelas câmeras do prédio em que morava transportando o corpo do marido. Jamais voltou atrás em seu depoimento e sempre afirmou que agiu sozinha.
Elize foi condenada em 2016 por homicídio qualificado e ocultação de cadáver. Reduzida em 2019, a pena original foi de 19 anos, 11 meses e um dia. Em bom português, seu crime foi matar o marido com um tiro na cabeça, esquartejar o corpo e distribuir as partes por um matagal na Grande São Paulo.
E até aí todos concordam. O problema começa na hora de determinar por que Marcos foi morto. Tanto na mídia quanto no tribunal, acusação e defesa pintaram dois retratos bem diferentes de Elize Matsunaga. Essa guerra de versões é um dos principais temas do documentário.
Elize afirma ter matado o marido após ter sido agredida por ele. Marcos teria se irritado ao ser confrontado pela esposa, que descobrira que o empresário estava tendo um caso. Depois de levar um tapa e ser ameaçada, Elize teria pegado uma das armas que o casal tinha em casa e atirado no marido. Desesperada, cortou o corpo em pedaços e colocou-o em malas.
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As partes do corpo de Marcos foram encontradas em um matagal em Cotia (SP), três dias após o crime. Elize chegou a comunicar a família a respeito do desaparecimento de Marcos e a forjar um e-mail do marido dizendo que estava bem. Tudo, segundo ela, por medo de ser presa e perder a guarda da filha.
Entretanto, a confissão de Elize não foi totalmente aceita pela acusação. Segundo a promotoria e os advogados da família Matsunaga, o crime foi premeditado. Os motivos teriam sido a traição e o dinheiro: Marcos receberia uma bonificação após a venda da Yoki, que estava para acontecer.
O documentário não toma partido de nenhuma das duas versões. Aceita pelo júri, a versão de Elize ganha destaque devido à entrevista. Porém, tanto o promotor quanto os advogados da família têm espaço para contar suas histórias. Fica a cargo do público decidir em quem acreditar.
Elize e Kelly: o machismo no “caso Yoki”
Um dos elementos que embasou a tese da acusação de que o crime teria sido cometido por dinheiro foi a história pregressa de Elize. Ela e Marcos se conheceram quando Elize trabalhava como garota de programa. Seus serviços eram anunciados em um site em que ela se apresentava como Kelly.
A revelação da ex-profissão de Elize foi usada como forma de questionar seu caráter durante o julgamento. Como se ter sido trabalhadora sexual fizesse de Elize uma pessoa sem moral, que não vê problemas em matar por dinheiro. E mesmo em Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime persistem os depoimentos que tentam associar o trabalho como garota de programa com o assassinato.
A questão da prostituição também foi amplamente explorada na mídia. Até hoje, é possível encontrar matérias que se referem a Elize como ex-prostituta, muito embora ela também seja bacharel em direito e auxiliar de enfermagem.
Por sua vez, a defesa apostou em uma estratégia semelhante para atacar a reputação de Marcos. Junto com as acusações de abuso psicológico, veio à tona também um perfil do empresário em um site em que ele dava notas para as prostitutas que contratava.
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A tática deu certo com o júri. Porém, Marcos não é identificado nas matérias sobre o caso como “ex-cliente de garotas de programa”. Nas palavras da própria Elize Matsunaga: “Um homem contratar um serviço de uma garota de programa é absolutamente normal e compreensível. Mas uma mulher estar nessa posição não pode, é imoral?”.
O machismo envolvido no julgamento é um dos temas centrais de Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime. O documentário questiona também o argumento da acusação de que Elize levaria uma “vida de princesa” e, portanto, não poderia ser vítima de abuso. Além da própria Elize, mulheres jornalistas que cobriram o caso também falam dos aspectos sexistas da história.
Porém, há uma outra questão que vem à tona ainda na investigação. Quando as partes do corpo começaram a ser encontradas, chamou a atenção da polícia e da imprensa o fato de se tratar de um homem de pele clara, usando roupas de marca. E o documentário não deixa passar batido: termina lançando no ar a dúvida a respeito de qual teria sido a visibilidade do caso se a vítima e a assassina fossem negras e pobres.
Romantização ou humanização?
Apesar de levantar questões importantes sobre o caso, o documentário acaba deixando o debate em si só para a reta final. Nos três primeiros episódios, o machismo e outros problemas mais profundos aparecem de vez em quando em depoimentos e imagens de arquivo. Mas o foco está na história de Elize, desde a infância até a prisão.
Em entrevista ao podcast Pauta Pública, Eliza Capai conta que trabalhava com detentos presos por feminicídio antes de ser chamada para o documentário. A diretora revela que tem interesse em entender o que leva alguém a matar a pessoa com quem se casou. Para isso, porém, é preciso ver além do crime e tratar o assassino como um ser humano.
Nesse sentido, a entrevista com Elize Matsunaga foi uma grande oportunidade. E, de fato, Capai procura humanizar o máximo possível a personagem. No documentário, a imagem da assassina é substituída pela de uma mulher que cometeu um assassinato.
A forma como Elize é retratada rendeu ao documentário críticas que o acusam de romantizar e tentar transformar em vítima uma assassina confessa. Entretanto, não é uma visão romântica de um assassinato o que vemos na tela, mas um drama humano. O que fica é a sensação de que quem mata raramente é um monstro sem coração, mas uma pessoa comum.
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Contudo, apesar de não romantizar a figura de Elize, o documentário traz alguns elementos que acabam dando ao crime uma aura folclórica. Alguns não são culpa da produção: é o caso do visual à moda Gandalf do legista Jorge Oliveira, que chamou a atenção do público e ganhou até fanart.
Porém, outros poderiam ter sido evitados por meio de decisões mais cuidadosas na ilha de edição. Imagens como a de Elize coberta por um véu vermelho no meio da mata, gravadas exclusivamente para o documentário, são esteticamente interessantes, mas destoam da seriedade do caso. O mesmo vale para depoimentos como o do prefeito de Chopinzinho (PR), cidade natal de Elize, que diz que ela “picou o cara da Yoki”.
É verdade que o assassinato de Marcos rendeu muitas piadas de gosto duvidoso, assim como vários outros crimes. Incluí-las no documentário não é necessariamente um erro. Porém, ao apresentar certas falas sem contraponto, a série mais reforça o ar de galhofa e sensacionalismo do caso do que o questiona. Não chega a ser o suficiente para invalidar a produção, mas também não acrescenta muita coisa.
Edição e revisão por Isabelle Simões.