Uma criança é assassinada em uma pequena cidade no litoral do Paraná. As investigações levam à prisão de sete acusados que teriam sacrificado a criança em um ritual satânico. Entre eles, estão a esposa e a filha do prefeito. Porém, ao longo dos julgamentos, surgem indícios de que a versão oficial da história está longe de ser confiável. Esse é o mote da série documental O Caso Evandro, que está disponível no Globoplay.
A série é baseada na quarta temporada do podcast Projeto Humanos, lançada em 2018. A investigação conduzida pelo criador do podcast, Ivan Mizanzuk, foi transposta para as telas com maestria pelos diretores Michelle Chevrand e Aly Muritiba.
A repercussão foi tanta que, no dia 7 de julho, foi lançado um episódio extra, intitulado Consequências. O episódio conta com depoimentos de pessoas que haviam se recusado a dar entrevista para a série, incluindo um dos sete acusados e o governador do Paraná na época do crime, Roberto Requião.
Leia também >> American Crime Story – O Assassinato de Gianni Versace: Abandono, fama e homofobia
O motivo foi a revelação de fitas que comprovam o uso de tortura pelos policiais envolvidos no caso. Mizanzuk teve acesso ao material por meio de uma fonte anônima e mudou totalmente o rumo da história. O podcaster também atuou como roteirista na série e é um dos principais entrevistados.
Contudo, o valor de O Caso Evandro vai além do impacto na vida dos que foram injustamente acusados pelo crime. A série é uma das melhores de true crime produzidas nos últimos anos. Em meio a debates a respeito dos limites éticos da exploração de crimes antigos, o gênero tem ganhado cada vez mais força mundo afora. Mas, no Brasil, ainda são poucas as produções do tipo.
O caso Evandro também abre espaço para uma discussão sobre pânico satânico e a forma como, no Brasil, isso se misturou ao já conhecido racismo religioso. Em tempos em que o noticiário é tomado por supostos serial killers satanistas e a política, por teorias da conspiração, falar sobre pânicos morais é cada vez mais essencial.
O que foi o caso Evandro?
Em 1992, Evandro Ramos Caetano, de 6 anos, desapareceu no caminho entre a sua casa e a escola em que a mãe trabalhava, em Guaratuba (PR). O corpo do menino foi encontrado cinco dias após o desaparecimento, em um matagal.
O caso assustou os moradores da cidade. Além da barbaridade do crime, o Paraná também passava por uma onda de desaparecimentos de crianças. Na própria Guaratuba, em fevereiro daquele ano, outro menino havia sumido: Leandro Bossi, de 8 anos. Diante desse cenário, um grupo tático da polícia civil foi mandado para a cidade para investigar o caso.
Contudo, um dos parentes da vítima não ficou satisfeito com a atuação dos policiais civis. Primo de Evandro e rival do prefeito Aldo Abagge, o ex-policial Diógenes Caetano mobilizou a polícia militar do estado, que logo chegou a sete acusados. O caso foi amplamente divulgado pela mídia e recebeu o nome de “caso das bruxas de Guaratuba”.
As bruxas em questão seriam Celina e Beatriz Abagge, respectivamente esposa e filha de Aldo Abagge. As duas foram presas e acusadas de terem sacrificado Evandro em um ritual de magia negra junto com mais cinco pessoas: Ailton Bardelli, Francisco Sérgio Cristofolini, Davi dos Santos Soares, Vicente de Paula e o pai de santo Osvaldo Marcineiro, que a polícia dizia ter comandado a cerimônia.
Leia também >> A selvageria da 4ª temporada de The Handmaid’s Tale
Após a prisão, os cinco acusados que confessaram o crime afirmaram terem sido torturados. Porém, a denúncia não foi levada a sério pelo Ministério Público, em parte porque as fitas das confissões foram editadas para eliminar as evidências de tortura. São as fitas não editadas que foram recuperadas por Mizanzuk durante a produção do podcast.
Foram quatro julgamentos entre 1998 e 2011, dos quais apenas Bardelli e Cristofolini saíram realmente absolvidos. A casa da família Abagge foi depredada pela população de Guaratuba e os rituais da umbanda, religião de Osvaldo Marcineiro, foram pintados pela mídia da época como magia negra.
Como contar um crime
A atual onda de produções de true crime costuma ser atribuída em grande parte ao podcast Serial, lançado em 2014. Nele, a jornalista Sarah Koenig se debruça sobre o caso de Adnan Syed, condenado pelo assassinato da ex-namorada. De lá para cá, a lista de podcasts, filmes e séries sobre crimes reais não parou de aumentar. O próprio Ivan Mizanzuk já disse que Serial foi uma de suas inspirações para criar O caso Evandro.
Porém, nem todo mundo acerta na hora de fazer um true crime. Lançada pela Netflix em 2019, a série documental Don’t F**k with Cats recebeu críticas pelo uso excessivo de cenas de crueldade contra animais. Também da Netflix, Cena do Crime – Mistério e Morte no Hotel Cecil foi acusada de tratar com sensacionalismo a morte da estudante Elisa Lam.
No Brasil, em fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal negou o reconhecimento do chamado “direito ao esquecimento”. O julgamento foi motivado por um ação por danos morais movida contra a Rede Globo pela família de Aída Curi. Em 1958, Aída foi sequestrada por três homens e jogada de um prédio no Rio de Janeiro. Uma reconstituição do caso foi ao ar em 2004, no programa Linha Direta Justiça, com uma abordagem considerada ofensiva pela família da vítima.
Leia também >> The Act: abuso físico e mental e um homicídio reativo
Entretanto, O Caso Evandro consegue passar longe das principais armadilhas do gênero true crime. O documentário usa o sentimentalismo com moderação, evita o uso de imagens chocantes e não explora a dor da família de Evandro.
Mas isso não significa que a série não incomodou ninguém. No Twitter, Roberto Requião acusou a equipe do documentário de ter omitido seu depoimento propositalmente. Na entrevista para o episódio extra, procurou se eximir de responsabilidade pela atuação da polícia. E, ainda na época do podcast, Diógenes Caetano exigiu direito de resposta pela forma como foi descrita sua participação na investigação.
Contudo, o foco de O Caso Evandro não está nem em Requião, nem em Diógenes, embora eles também sejam personagens importantes. O principal, para a série, é a forma como o caso afetou a vida dos acusados e a maneira irresponsável como foram conduzidas as investigações. Tanto a tortura quanto o conspiracionismo que guiou o trabalho da polícia são discutidos com atenção.
No fim, a série acaba sendo sobre muito mais do que o caso Evandro. O que vemos é um grande suco de Brasil, um retrato de uma sociedade com feridas que nunca foram tratadas.
As “bruxas de Guaratuba” e o pânico satânico
O pânico satânico é um tipo de pânico moral que varreu os Estados Unidos nos anos 1980. Somado à preocupação com a pedofilia surgida na época, o satanic panic levou a uma enxurrada de acusações de abuso sexual e assassinatos de crianças em rituais satânicos. O caso mais famoso aconteceu na cidade de West Memphis, em que três adolescentes foram presos injustamente pela morte de dois meninos em um suposto ritual satânico.
Porém, foi quando chegou no Brasil que o pânico satânico ganhou um contorno todo especial. A constante demonização de religiões de matriz africana fez com que praticantes da umbanda e do candomblé passassem a ser vistos como possíveis assassinos. E vice-versa: recentemente, na caçada ao assassino Lázaro, um terreiro foi invadido pela polícia do Distrito Federal. Os objetos do local foram filmados e divulgados como instrumentos usados por Lázaro em rituais satânicos.
No caso Evandro, o combo de pânico satânico e racismo religioso teve um papel primordial. A ligação entre Osvaldo, Beatriz e Vicente de Paula se devia aos trabalhos do pai de santo na região. Quando indagado por que havia matado o menino, Osvaldo foi instruído a dizer que tinha sido uma oferenda para Exu. O objetivo seria abrir os caminhos para os negócios da família Abagge.
A questão religiosa não é deixada de lado na série. Assim como ao falar da tortura, o documentário traz entrevistas com especialistas no assunto e procura desmistificar as acusações feitas contra Osvaldo. Também é discutida a fé da seita Lineamento Universal Superior (LUS), acusada pelo desaparecimento de Leandro Bossi.
Leia também >> Objetos Cortantes: mãe devastadora e filha perversa
Falar sobre pânico satânico é essencial para que não nos deixemos levar outra vez pela mesma correnteza, que pode ter consequências graves. Devido à prisão dos sete acusados, até hoje não se sabe quem matou Evandro. Também nunca foi investigado o paradeiro de Leandro. Da mesma forma, a acusação de satanismo quase fez passar batido o possível envolvimento de Lázaro com fazendeiros da região em que cometeu os crimes.
Nesse sentido, O Caso Evandro é parte de um importante debate sobre teorias da conspiração. E a lição que fica é que, ao contrário do que acreditam os conspiracionistas, essas teorias mais escondem do que revelam a verdade.
Edição e revisão por Isabelle Simões.