Elizabeth Gaskell: o poder da liberdade de pensar

Elizabeth Gaskell: o poder da liberdade de pensar

Oh! Como é duro trabalhar/ Durante o dia inteiro/ Enquanto todos em volta/ Vão se divertir”. Esses versos fazem parte da epígrafe que abre o romance de estreia de Elizabeth Gaskell. De autoria desconhecida, apesar de acreditar-se que foram escritos pelo marido de Elizabeth, William Gaskell, o trecho demonstra bem o tipo de temática narrada pela autora.

Nascida na Londres de 1810, ela era inegavelmente a frente de seu tempo. Muito amiga de Charlotte Brontë e parceira de trabalho de Charles Dickens, Gaskell viu a primeira Revolução Industrial acontecer em Manchester e decidiu tratar sobre o assunto em suas histórias.

Elizabeth começou a escrever por incentivo de seu marido, após a morte do filho, também chamado William. O esposo da autora acreditava que a escrita poderia ser uma boa distração do luto e estava certo. Gaskell passa, então, a escrever sobre o que observava ao seu redor. Porém, diferente de outras autoras da época, Gaskell não queria tratar sobre o passado, mas sim sobre o presente. As interações entre ricos e pobres, sobretudo nas relações de trabalho nas fábricas, eram o que mais chamava a atenção de Elizabeth.

Elizabeth Gaskell
Elizabeth Gaskell | Imagem: reprodução

Seu primeiro livro, Mary Barton, foi publicado em 1848, anonimamente. É um dos primeiros romances com autoria de pessoas de classe alta que trata sobre a vida de indivíduos pobres. Essa tendência segue no trabalho de Elizabeth, culminando em seu livro mais famoso, Norte e Sul.

Mesmo tratando sobre assuntos relevantes para a época e ainda importantes hoje, onde se discute sobre precarização do trabalho, as histórias de Elizabeth Gaskell são pouco consumidas pelo público brasileiro. Apesar disso, a autora foi uma influência importante não somente por retratar personagens das classes populares, mas por abrir caminhos para que mulheres pudessem escrever sobre o que quisessem.

O contexto nas obras de Elizabeth Gaskell

A revolução industrial teve a Inglaterra como palco de sua primeira fase. Iniciada em 1760, ela marcou a transição do feudalismo para o capitalismo e transformou as relações de trabalho. Ao consolidar dois importantes grupos econômicos, a burguesia e o proletariado, a revolução foi responsável por mudanças sociais profundas, além de fundar diferentes correntes políticas e de pensamento.

Por viver em Manchester, Gaskell viu boa parte dessas transformações acontecerem em seu dia a dia. Queria trabalhar em suas histórias os medos, vontades e características da classe trabalhadora que por muitas vezes era explorada no novo sistema que nascia.

Ilustração de um grupo de operários de moinhos em Manchester (22 de novembro de 1862, Londres) | Fonte: British Newspaper Archive

Mary Barton, portanto, foi lançado 2 anos antes do fim da primeira revolução industrial, que ocorreu em 1850. O livro é um retrato desses anos de mudança intensa.

Interessada no que acontecia no país naquele período, as obras de Elizabeth Gaskell integram o grupo da literatura de condição da Inglaterra, junto de outros autores como Charles Dickens. Além disso, a autora é vista como uma referência central do romance industrial.

Mary Barton

Publicado com o pseudônimo de Cotton Mather Mills, o livro de estreia de Elizabeth Gaskell traz a personagem do título como protagonista. Mary é filha de um operário, mas trabalha como costureira já que seu pai não quer que ela viva as mesmas explorações que ele. O sonho de Mary, porém, é dar uma vida melhor para seu pai e isso pode se realizar quando o filho de um dono da fábrica passa a demonstrar interesse nela. Essa situação acaba se tornando um triângulo amoroso, já que Mary percebe que também está apaixonada pelo jovem pobre que era seu amigo de infância.

Com muito drama e cheio de reviravoltas, Gaskell impõe sua voz ao construir uma personagem agente em seu destino. É possível perceber, entretanto, que Elizabeth não estava somente preocupada com a condição das classes populares, mas também como as mulheres eram representadas nesse contexto.

Mary Barton

Dessa forma, a autora construiu Mary como uma personagem capaz de seguir suas próprias vontades, mas também extremamente sensível às condições ao seu redor e capaz de perceber que o mundo poderia ser bem diferente do que a dura realidade apresentava. Alguns críticos literários acreditam que muitos dos pensamentos de Mary eram os mesmo de Elizabeth, como se a personagem dissesse o que a autora não podia dizer.

No prefácio, Gaskell afirma que se inspirou para criar a história ao imaginar como seria o romance na vida dos trabalhadores e de que forma essas pessoas equilibravam suas vontades com o trabalho.

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Contudo, apesar de ser visto hoje como uma obra fundamental sobre as condições da época, Mary Barton não foi bem recebido no lançamento, especialmente pelos conhecidos de Elizabeth Gaskell. Isso faz bastante sentido, já que ela expunha muito da exploração sofrida pelos trabalhadores e o círculo de pessoas com que convivia eram burgueses, provavelmente os donos de fábrica criticados.

Todavia, é possível que seus editores tenham pedido para Elizabeth reformular a história na segunda edição, focando mais no romance e menos nas questões políticas. Mesmo que isso tenha acontecido, o livro continua cheio de críticas sociais e demonstra a coragem de Gaskell. Ela foi capaz de defender seus ideais, mesmo que isso fosse contra ao o que a maioria das pessoas ao seu redor pensasse.

Norte e Sul

Apesar das críticas, Gaskell não abandonou seu objetivo de representar a vivência das fábricas e dos trabalhadores. Norte e Sul é um dos seus livros mais famosos, lançado primeiro em forma de folhetim na revista Household Words, editada por Charles Dickens. Foi inclusive Dickens quem deu a ideia do título da obra. Porém, a ideia inicial de Elizabeth era que o título fosse o nome da personagem principal, Margaret Hale, seguindo o exemplo de Mary Barton. Mas Dickens pensou que North and South representava melhor as temáticas do livro.

Em Norte e Sul, Elizabeth apresenta a história de Margaret Hale, forçada a mudar para a cidade de Milton (local fictício inspirado em Manchester) quando seu pai decide deixar de ser pastor. Lá ela se choca com a realidade da cidade industrializada e se compadece com a situação dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que começa a construir uma relação conturbada com John Thornton, um dono de fábrica. Com ares de Orgulho e Preconceito, o casal desenvolve uma relação cheia de conflitos que culmina em amor.

Cena da minissérie "Norte e Sul", adaptação da obra de Elizabeth Gaskell
Cena da minissérie “Norte e Sul” | Imagem: BBC

A diferença central entre Mary Barton e Norte e Sul é a mudança da classe do núcleo principal. Em Mary, quase todos os personagens são trabalhadores pobres, que vivem diariamente as explorações capitalistas. Já em Norte e Sul, Margaret é construída na figura da observadora, pois ela chega a fazer parte da burguesia como filha de um dono de fábrica, mas também não sente na pele a vivência do proletariado.

Apesar disso, Margaret também é uma personagem feminina independente, que bagunça o que era esperado de mulheres na época. Hale, contudo, questiona as condições sociais existentes na cidade, além de bater de frente com Thornton por conta das condições que seus trabalhadores vivem.

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Mais uma vez a personagem feminina representa os ideais de Gaskell, agora possuindo um ponto de conflito direto com seu par romântico, que representa os ideais capitalistas. Essa dualidade é trabalhada em toda a história e por isso o título Norte e Sul a representa tão bem.

Gaskell, dessa forma, trabalha as diferenças entre norte e sul, modernidade e tradição, trabalhadores e capitalistas. Através desse livro, ela se consolida como uma autora que retrata as condições da Inglaterra, colocando suas personagens femininas na trama central, além de uma mulher preocupada com as questões sociais de seu país.

Mulheres e a liberdade de pensar 

Com temáticas que seriam polêmicas até hoje, em um momento em que o neoliberalismo segue a todo vapor, não é de se surpreender que Elizabeth Gaskell tenha sofrido duras críticas em sua carreira.

Alguns dos comentários feitos por estudiosos da época envolvem a incapacidade dela de superar as “deficiências naturais” enquanto mulher, mesmo que se esforçasse muito, e a falta de possibilidade das mulheres no entendimento dos problemas sociais. Tais comentários mostram o motivo de tantas autoras usarem pseudônimos. As críticas voltadas aos trabalhos femininos dificilmente se focam apenas no trabalho apresentado, mas quase sempre tratam de questões de gênero.

Norte e Sul, Elizabeth Gaskell
Ilustração do livro “Norte e Sul” | Imagem: Graham Jepson/Writer Pictures

Gaskell, portanto, enfrentou um ambiente hostil às suas histórias, por ser uma mulher que não queria se limitar a escrever romances, mas também queria pensar criticamente sobre o mundo em que vivia.

Ela buscou sua liberdade de pensar ao eternizar não somente suas histórias, mas também a de outras autoras. Elizabeth foi a responsável por escrever a primeira biografia de Charlotte Brontë, Vida de Charlotte Brontë, passando ao status de biógrafa importante e abrindo o caminho para que o trabalho de outras mulheres fosse mais valorizado.

A influência de Elizabeth Gaskell como autora vitoriana é inegável. Suas histórias ajudam a entender as condições dos trabalhadores da Inglaterra, mas também possibilitaram que outras escritoras pudessem um dia dizer suas opiniões livremente em seus livros.

É importante pensar que mesmo sendo de classe alta, Elizabeth enfrentou barreiras ao colocar suas histórias no mundo e sua coragem foi imprescindível para abrir caminhos para diversas outras mulheres. A equidade de gênero ainda é um sonho distante, porém autoras como ela foram peças chave para criar oportunidades. Gaskell, portanto, não deve ser esquecida.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Bacharel em Estudos de Mídia e mestranda em Comunicação, ama falar sobre livros, filmes e música. Acredita que escrever pode ajudar a construir uma revolução na sociedade e quer fazer parte disso.
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