Jane Eyre e o feminismo nos livros clássicos

Jane Eyre e o feminismo nos livros clássicos

Com 16 adaptações para o cinema e 10 para televisão, é fácil afirmar que Jane Eyre é um fenômeno. O romance publicado em 1847 segue relevante mesmo séculos depois de seu lançamento. A jornada de Jane da infância ao amadurecimento encanta os leitores, ainda que não tenhamos mais tantos pontos em comum com a vida levada pela personagem. 

Sua autora, Charlotte Brontë, assim como Jane, demonstrava pensamentos considerados feministas. Tendo vivido entre 1816 e 1855, Charlotte se tornou uma famosa escritora junto de suas outras duas irmãs, Emily e Anne, e seus romances colocavam as narrativas de mulheres no centro da história. 

Jane Eyre foi primeiramente publicado sob o pseudônimo de Currer Bell, já que Charlotte temia que seus escritos sofressem com o fato dela ser uma mulher. É possível perceber o quanto Brontë via as barreiras que precisaria enfrentar por conta do gênero, mas ainda assim não pretendia deixar que elas a impedissem. 

Adaptação de Jane Eyr (1943), dirigida por Robert Stevenson, com roteiro de Aldous Huxley, Stevenson e John Houseman.
Adaptação de Jane Eyr (1943), dirigida por Robert Stevenson, com roteiro de Aldous Huxley, Stevenson e John Houseman| reprodução
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Ao escrever Jane Eyre, Charlotte construiu quase uma autobiografia. Muito do que ocorre com a personagem tem relação direta com fatos da vida da autora e é possível afirmar que a escritora e Jane possuem visões de mundo bastante parecidas, sendo assim mulheres transgressoras dos padrões da época. 

Jane Eyre é um exemplo de romance onde a personagem feminina é colocada como principal catalisadora de sua narrativa e ainda tem muito a ensinar sobre como construir personagens femininas reais. 

A composição de Jane Eyre

Desde o início do romance, é possível perceber que a personagem terá muitas barreiras a enfrentar. Órfã, vivendo com a tia e primos, Jane já era maltratada por ser considerada uma intrusa. Sua tia não queria cuidar da sobrinha postiça, mas acabou presa como tutora da criança. É nesse momento que a jornada de Jane começa e ela é mandada para um internato, onde fica por vários anos até chegar a casa do Sr. Rochester para ser a nova governanta. 

Entretanto, desde pequena Jane mostrou resiliência e até ousadia frente às dificuldades que enfrentou. Da casa da tia, até o colégio Lowood e na casa do Sr. Rochester, Jane combateu todos os entraves e resistiu a eles, dedicada a ser dona do seu destino.

A principal característica da personagem é não deixar que outras pessoas decidam em seu lugar. Charlotte molda uma história onde Jane é a força motriz da sua sina. Não o romance ou as convenções sociais, mas, sim, Jane é o motivo para que toda a narrativa se desenrole. 

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Adaptação de Jane Eyre (1996), dirigida por Franco Zeffirelli, com roteiro de Hugh Whitemore e Zeffirelli.
Adaptação de Jane Eyre (1996), dirigida por Franco Zeffirelli, com roteiro de Hugh Whitemore e Zeffirelli | reprodução

Até mesmo o romance com Sr. Rochester, trama central da história, é atravessado pela determinação de Jane. Mesmo apaixonada, ela não se deixa levar apenas pelo o que sente por seu patrão. Jane consegue medir todas as diferenças que existem entre eles, principalmente sociais e de gênero. Não são raras as conversas entre Jane e Rochester onde ela resiste a revelar o romance dos dois, por medo de sua situação de desvantagem em relação a ele, por ser mulher e pobre. 

Ao não se conformar, ao resistir contra o que é esperado dela, Jane Eyre se coloca como uma mulher forte e determinada e ajuda a estabelecer novas formas de se fazer mulheres na ficção. Ela é o ponto central da narrativa em um momento em que mulheres possuíam ainda menos liberdade que hoje, quando não havia a possibilidade de decidir os rumos da própria vida, que ser mulher significava se portar educadamente e encontrar um bom marido. 

Jane demonstra ansiar pela possibilidade de ser livre diversas vezes durante a história e move suas ações em busca de tal liberdade. Ela não se conforma com o que lhe é imposto, usando sempre de seu julgamento e opiniões para decidir que caminho seguir. 

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Minissérie Jane Eyre (2006), da BBC, dirigida por Susanna White, com roteiro de Sandy Welch
Minissérie Jane Eyre (2006), da BBC, dirigida por Susanna White, com roteiro de Sandy Welch | reprodução

É possível dizer que Charlotte Brontë construiu uma personagem feminista, que busca a igualdade de gênero e não ser julgada ou limitada apenas pela fato de ser uma mulher. Nesse ponto, os ideais da autora e personagem se cruzam, resultando em uma história extremamente potente. 

Quanto custa ser uma escritora?

Apesar de todo o talento, ser uma mulher escritora não é fácil. E Charlotte Brontë sabia disso. 

Provavelmente, publicar seu livro com um pseudônimo masculino foi somente uma das muitas dificuldades que Charlotte precisou enfrentar para que Jane Eyre existisse e fosse lido hoje. Até que atingisse o reconhecimento, é possível que a autora tenha enfrentado tantas barreiras quanto Jane ao longo de sua jornada na escrita.

Dessa forma, a narrativa de Jane Eyre reforça o histórico de lutas feministas na sociedade, e seu sucesso até hoje mostra o quanto a personagem ainda é uma inspiração para muitas mulheres.

Com as demandas de melhores representações cada vez mais presentes não só no meio literário mas também no audiovisual, o romance de Brontë mostra que os avanços históricos não são lineares. Não somente Charlotte, mas também suas irmãs e diversas outras escritoras, já tentavam construir personagens femininas complexas e com opinião no século XIX e as moldavam em torno de ideais feministas.

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Infelizmente, isso não fez com que as dificuldades que outras escritoras enfrentam acabassem ou que a forma com que se escrevesse sobre mulheres mudasse completamente. Ainda encontramos personagens femininas estereotipadas, submissas e que seguem somente os interesses masculinos. Entretanto, Brontë continua abrindo caminho para novas escritoras que se inspiram nela – e novas leitoras que se inspiram em Jane – a desbravar outros caminhos e alcançar objetivos que a sociedade nega às mulheres.

No livro Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf, a autora afirma que toda obra-prima é fruto de um pensamento coletivo que já estava sendo construído há anos, condensando uma experiência de massa em uma única voz. Neste livro, Virginia fala principalmente sobre as condições necessárias para que as mulheres escrevam, utilizando Jane Eyre como um dos exemplos de seus argumentos. 

Um Teto todo seu, Virginia Woolf
Edição de Um Teto Todo Seu, da Virginia Woolf | Foto: Tordesilhas

A partir de Woolf é possível ver que Jane Eyre é fruto dos pensamentos de diversas mulheres do século XIX que ansiavam por uma vida diferentes. Mulheres que já construíam uma luta feminista. E o livro segue alimentando o pensamento de muitas outras ainda hoje. 

Dessa forma, diversas escritoras puderam chegar onde estão porque um dia Charlotte teve coragem de colocar suas palavras no papel e ajudou a adubar um pensamento social que permitisse que as mulheres fossem livres. 

Jane Eyre e as outras mulheres 

Um livro que leva o nome de sua protagonista faz isso por um motivo. Jane Eyre é o ponto central da narrativa. Mas isso pode gerar uma pergunta: onde estão as outras mulheres da história? 

Apesar de não haver um aprofundamento sobre a vivência da maioria delas, existem outras mulheres por todos os lados. A tia de Jane que a maltratava; Helen Burns, sua primeira amiga no internato; e Adele, a pequena adotada por Sr. Rochester e pupila de Jane. Entretanto, apesar de Jane demonstrar ideais do feminismo, as outras personagens mulheres não fazem o mesmo, o que leva a alguns estudiosos da literatura a contestarem se de fato a obra pode ser considerada como totalmente feminista. 

Uma personagem bem específica que é o ponto central da reviravolta mais importante da história (que você só vai descobrir quem é se ler) acabou virando protagonista do livro Vasto Mar de Sargaços, de Jean Rhys. A autora acreditava que essa mulher poderia ter sido melhor explorada e que mais detalhes sobre sua vida deveriam ter sido revelados. Decidiu, então, escrever seu próprio livro. 

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Vasto Mar de Sargaços, filme de 1993 | Imagem: reprodução

Todavia, o fato das outras mulheres não terem as mesmas ambições que Jane pode representar o meio em que Charlotte Brontë vivia, onde as mulheres não podiam expressar de forma clara suas reais ambições. Mas, também, pode ter sido uma forma de manter Jane destacada, sendo uma personagem única. Entretanto, tal aspecto não diminui a força que ela representa. 

Por que Jane Eyre continua a encantar o público tantos anos depois? Essa é uma pergunta com múltiplas respostas, mas é inegável que a força de Jane como personagem e como mulher é um dos motivos. 

Charlotte Brontë foi capaz de construir uma personagem inspiradora e que mantém essa característica através dos séculos. A autora colocou a mulher no centro em tempos que somente era permitido que fossem coadjuvantes. 

Jane Eyre continua sendo um exemplo de personagem determinada, inteligente e complexa. Alguém que quebrou barreiras e não se deixou limitar por outras pessoas. Uma história poderosa que construiu todo um universo de outros livros e adaptações diversas em volta de si. 

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Adaptação de Jane Eyre (2011), dirigida por Cary Joji Fukunaga, com roteiro de Moira Buffini
Adaptação de Jane Eyre (2011), dirigida por Cary Joji Fukunaga, com roteiro de Moira Buffini

Em um mundo onde o machismo segue firme e muitos tentam fazer as mulheres permanecerem sendo vistas como inferiores, é importante que cada vez mais pessoas vejam Jane como uma inspiração na vida e na ficção.

A história de Jane segue mostrando uma mulher que apesar de tudo foi transgressora e seguiu seu destino sob suas próprias regras, ainda que muitas vezes fosse difícil fazê-lo. Ter suas opiniões não a impediu de encontrar o amor ou de ser feliz, mas o sofrimento também esteve com ela em muitos momentos. 

Que cada vez mais meninas se encontrem com Jane Eyre e tenham seus sonhos e ambições alimentados. 


Revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Bacharel em Estudos de Mídia e mestranda em Comunicação, ama falar sobre livros, filmes e música. Acredita que escrever pode ajudar a construir uma revolução na sociedade e quer fazer parte disso.
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