Maio é o mês das mães e, por acaso, é também o mês em que os fãs celebram o Star Wars Day, no dia 4. Não passa de coincidência, é claro, mas é uma coincidência muito da curiosa. Afinal, se tem um tópico que merecia um tratamento mais cuidadoso na saga Star Wars é a maternidade. Principalmente considerando a importância que linhagens familiares têm para a trama.
Da concepção imaculada à mulher que tem sua família destroçada pela partida do filho, quase todos os tipos de maternidade estão presentes nos filmes do universo. Porém, raramente essas relações são exploradas a fundo, sejam elas saudáveis ou conturbadas.
Neste artigo, vamos falar um pouco sobre as mães do universo cinematográfico de Star Wars: Shmi, Padmé, Beru, Leia e todas as mulheres sem nome que dedicaram suas vidas a alguns de nossos personagens preferidos. O objetivo é pensar um pouco mais a fundo em um dos maiores pontos cegos da saga da família Skywalker. E, no fim, tentar entender para onde podemos ir a partir daqui.
Shmi Skywalker e a concepção imaculada em Star Wars
Quando Star Wars – Episódio I: A Ameaça Fantasma foi lançado, em 1999, muitos fãs ficaram incomodados com a adição de alguns elemento ao universo da saga. Um deles foram os midichlorians, partículas sanguíneas que indicam a conexão de indivíduos com a Força. A interpretação geral foi de que os midichlorians tiraram parte do misticismo da saga: a Força teria deixado de ser uma energia universal que existe em todos nós para ser uma taxa que pode ser medida em exames de sangue.
Porém, ao mesmo tempo em que os midichlorians acenavam para o cientificismo, Shmi Skywalker (Pernilla August) estava lá para devolver o misticismo à saga. Mais especificamente, o misticismo cristão. Assim como Maria, mãe de Jesus, a mãe de Anakin Skywalker (Jake Lloyd) engravidou sem ter relações sexuais. Foi a própria Força a responsável pela gravidez. Shmi foi a escolhida para dar à luz ao messias que restauraria o equilíbrio da Força.
A gravidez de Shmi Skywalker levanta questões de consentimento que não aparecem na história de Maria. Afinal, segundo a Bíblia, Deus enviou um anjo à casa da futura mãe de Jesus para explicar o que aconteceria. Uma vez que a Força, inspirada em religiões como o budismo, não possui manifestações materiais como anjos, Shmi apenas acordou um dia grávida de um “escolhido”.
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Todavia, trazer Anakin ao mundo é uma das principais funções de Shmi na trama. As outras são permitir que ele seja levado por Qui-Gonn Jinn (Liam Neeson) para ser apresentado ao Conselho Jedi e ser assassinada para causar a dor de que Anakin precisava para se entregar ao lado sombrio da Força.
Embora Shmi não seja uma estranha para o público como outras mães da saga, a personagem é ainda bem pouco explorada. Mesmo sua relação com Anakin não é tão trabalhada. Sim, vemos que ela está disposta a deixar que o filho seja levado por estranhos para salvá-lo da escravidão. Mas, fora isso, Shmi só aparece ou como um corpo vivo para gerar uma criança, ou como um corpo morto para gerar conflito emocional.
A morte de Padmé Amidala
Outra personagem mãe de extrema importância nas prequels é Padmé Amidala, interpretada por Natalie Portman. A ex-rainha de Naboo e senadora da República é também a mãe de Luke Skywalker (Mark Hammil) e Leia Organa (Carrie Fisher), protagonistas da trilogia original, iniciada em 1977.
Porém, ao contrário de Shmi, a função de Padmé na história vai muito além da relação com os filhos e um Anakin já crescido (Hayden Christensen), seu interesse romântico. A senadora é uma figura central na trama política da saga, uma força de oposição às ações de Palpatine (Ian McDiarmid), que culminam na fundação do Império. A personagem, é desenvolvida como uma mulher de convicções fortes, que não tem medo de questionar as estruturas de poder.
Portanto, é ainda mais frustrante quando, no fim de A Vingança dos Sith, Padmé morre no parto. Mais incômodo ainda é que a morte não se deve a nenhuma complicação da gestação: Padmé simplesmente perde a vontade de viver. Abalada pelas escolhas de Anakin, que está prestes a se tornar Darth Vader, ela morre por causa de um coração partido.
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Assim como Shmi, a morte de Padmé também serve de combustível para a angústia de Anakin, o futuro vilão da saga. Nem mesmo a ideia presente em nossa sociedade de que uma mãe deve sempre fazer de tudo pelos filhos é capaz de salvar Padmé. Afinal, a morte da personagem também é essencial para dar o pontapé inicial na história de Luke e Leia.
Talvez Padmé não precisasse morrer, mas era importante que ela não fosse presente na vida dos filhos. Do contrário, a trilogia original precisaria ser totalmente alterada. Porém, morrer de um coração partido não faz jus à trajetória da personagem. Padmé poderia ter morrido em combate como tantos outros personagens, ou ao menos ter sido morta pelos Jedi ou por Palpatine, como sugerem várias teorias de fãs.
Beru Lars: em Star Wars, mãe também é quem cuida
Assim como a maternidade em Star Wars, expressões populares como “mãe só tem uma” e “mãe é quem cuida” merecem uma crítica profunda. Afinal, não podemos negar a maternidade a mulheres que não puderam cuidar de seus filhos. E, mesmo no mais heteronormativo dos mundos, muitas pessoas têm bem mais do que apenas uma figura materna. Mãe não é só quem cuida, mas também é quem cuida. Logo, Beru Lars (Shelagh Fraser) deve ser considerada tão mãe de Luke Skywalker quanto Padmé Amidala.
Beru e seu marido Owen Lars (Phil Brown), enteado de Shmi Skywalker, são os responsáveis por criar Luke no intervalo de tempo entre A Vingança dos Sith e Uma Nova Esperança. Embora chame o casal de tia e tio, Luke é, na prática, um filho para os Lars. A morte do casal serve de gatilho para o início da jornada de Luke, cortando os laços do herói com o planeta em que vive.
Beru é a única figura materna com nome e rosto na trilogia original. E, mais uma vez, sua principal função na trama é morrer. Pouco sabemos de sua personalidade ou de seu relacionamento com Luke.
Mas, pelo menos, é mais do que sabemos sobre a mãe adotiva de Leia, que só os fãs mais dedicados acabam descobrindo que se chama Breha Organa em romances do Universo Expandido ou na Wookiepedia. Ou até mesmo sobre Padmé, que mal é mencionada por seus filhos e seu ex-companheiro.
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O tratamento dispensado às mães biológicas ou adotivas contrasta com a importância que a figura do pai tem para a trilogia original. Principalmente a figura do pai em sua relação com o filho. Não à toa, a cena mais memorável da saga é o momento em que Darth Vader (David Prowse, James Earl Jones) revela a Luke Skywalker que é seu pai.
Tão filha de Vader quanto Luke, Leia não tem nenhum momento de revelação ou de reconciliação com sua origem. Darth Vader morre sendo apenas um assassino sem rosto para a própria filha.
Leia Organa e a mãe que poderia ter sido
Leia também não teve o espaço de tela necessário para desenvolver uma relação com seu filho, Ben Solo, ou Kylo Ren (Adam Driver). Porém, em defesa dos roteiristas e diretores da nova trilogia, iniciada em 2015, muitos dos planos para o último filme da saga tiveram que ser alterados após a morte inesperada de Carrie Fisher, em 2016.
Ao que tudo indica, o plano era encerrar a trajetória de um protagonista da trilogia original por filme: Han Solo (Harrison Ford) morre em O Despertar da Força e Luke, em Os Últimos Jedi, após longas cenas passando o bastão para os novos protagonistas. Provavelmente, o projeto original previa que a história de Leia fosse desenvolvida mais a fundo em A Ascensão Skywalker. Porém, com a mudança de percurso, os fãs foram mais uma vez deixados com uma relação entre mãe e filho quase inexistente.
Sim, vemos o sofrimento de Leia por Ben ter se entregado ao lado sombrio da Força e, apesar do impacto que isso teve na personagem, vemos também que ela não abandonou os outros aspectos de sua vida por causa do filho. Assim como Padmé, Leia é uma personagem de convicções fortes, dedicada à política e ao combate ao autoritarismo.
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Todavia, o laço entre Leia e Ben não se compara à relação entre o vilão dos dois primeiros filmes da trilogia e seu pai, Han Solo. É da influência do pai que Ben deve se afastar – por meio da morte, se necessário – para se tornar Kylo Ren. Em uma cena de Os Último Jedi, Ren tem a oportunidade de matar sua mãe em um ataque aéreo, mas não consegue. É um belo relance da relação entre os dois, mas muito pouco perto das longas conversas entre o personagem e seu pai.
Nesse sentido, o fim da nova trilogia deixa um gostinho agridoce na boca dos fãs. Leia é uma personagem bem desenvolvida e que não morre para jogar lenha na fogueira emocional do filho ou de seu interesse romântico. Entretanto, ao mesmo tempo, a única coisa que nos resta é imaginar como poderia ter sido o seu relacionamento com Ben, pouco trabalhado menos por vontade dos roteiristas e mais pela ação do destino.
No confuso e polêmico final da saga Star Wars, Leia também acaba servindo como uma figura materna para Rey (Daisy Ridley). Todavia, as cenas entre Ridley e Fisher que aparecem em A Ascensão Skywalker tiveram que ser todas reaproveitadas de filmagens anteriores. Como consequência, o relacionamento entre Leia e Rey nas telas também deixa a desejar. O amor que elas sentem uma pela outra fica em grande parte subentendido.
Uma galáxia só de pais?
A linhagem de Rey é um dos maiores mistérios da última trilogia de Star Wars. E, ainda assim, a relação da personagem com sua mãe biológica é inexistente. Interpretada por Jodie Comer (Killing Eve), a mãe de Rey aparece por apenas alguns segundos na tela. A personagem sequer tem um nome, nem nenhuma função na trama além de ter dado à luz a nova protagonista. O que realmente importa, mais uma vez, é quem é o pai de Rey: um clone do Imperador Palpatine.
A importância da figura paterna e a ausência da figura materna se repetem na história de outros personagens da saga. O matador Boba Fett (Jeremy Bulloch, Daniel Logan) não tem muito desenvolvimento emocional nos filmes, mas, quando tem, é por causa da morte de seu pai, Jango (Temuera Morrison). E, como é um clone de seu pai, Boba sequer tem uma mãe biológica.
Em Rrogue-one, a protagonista Jyn Erso (Felicity Jones) perde a mãe ainda criança. Lyra Erso (Valene Kane) é quase uma desconhecida para o público. É o pai de Jyn, Galen Erso (Mads Mikkelsen), quem realmente importa para a história: o cientista é um dos principais nomes por trás construção da Estrela da Morte.
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Na sociedade patriarcal em que vivemos, entende-se que levamos adiante sempre o legado dos nossos pais. Não é à toa que é o sobrenome paterno que passamos adiante e que serve de designação para a família como um todo. Por séculos, os filhos foram considerados propriedades dos pais. Os homens ganhavam independência quando se tornavam adultos, ao passo que a propriedade das mulheres era apenas “transferidas” para os maridos.
Nesse cenário, a autonomia de pensamento das mulheres era deixada de lado. Elas eram entendidas ou como objetos de interesse romântico e sexual, ou como mães. Deixavam de ter importância como sujeitos a partir do momento em que traziam ao mundo um filho, de preferência homem, para dar continuidade à linhagem patriarcal.
É esse imaginário que Star Wars perpetua ao apagar suas personagens mães ou condená-las à morte apenas para movimentar a trama de seus filhos. A essa altura do campeonato, em pleno século XXI, já está mais do que na hora dos responsáveis pela franquia reverem essa estrutura.
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No seriado Rebels e em alguns romances do Universo Expandido, algumas figuras maternas já têm uma certa proeminência e são tratadas como personagens complexas. Contudo, grande parte do público de Star Wars é composta por fãs casuais, que consomem apenas os filmes. E, no que depender da Disney, esse público ainda terá muitos filmes para assistir nos próximos anos.
Jamais saberemos o que teria sido o relacionamento entre Leia e Ben se Carrie Fisher não tivesse morrido. E não nos cabe julgar o que não aconteceu. Porém, Shmi, Padmé, Beru e até mesmo a mãe sem nome de Rey poderiam ter tido destinos muito diferentes. Ou, pelo menos, um pouquinho mais de tempo de tela com seus filhos.
Resta esperar que as mães dos próximos filmes sejam tratadas com um pouco mais de carinho. Não com o carinho que se dispensa a uma pessoa amada. Afinal, nem todo mundo ama ou tem um bom relacionamento com a mãe, e isso também deve ser retratado na ficção. O carinho que as mães de Star Wars merecem é o que um(a) autor(a) deve dispensar aos seus personagens, desenvolvendo-os nos mais variados aspectos para que eles tenham vida própria.
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Revisão por Isabelle Simões.