Fallout: narrativas antiguerra e o protagonismo feminino distópico

Fallout: narrativas antiguerra e o protagonismo feminino distópico

A jornada de uma heroína à la Rousseau, intocada pelo mundo e transformada após desbravá-lo, é uma narrativa frequentemente destacada. No caso de Fallout, essa abordagem foi escolhida para a protagonista.

Distribuída pela Amazon Prime Video no início de 2024, a série é uma adaptação da franquia de jogos de mesmo nome. Ela apresenta uma história inédita adaptada ao universo do RPG, dividida em oito capítulos em sua primeira temporada, com uma renovação já garantida.

Fallout: o começo do fim do mundo

Fallout: o começo do fim do mundo
Cena de Fallout | Imagem: reprodução

O primeiro título da saga foi lançado em 1997, inicialmente pelo estúdio Interplay, com suas continuações produzidas por outras desenvolvedoras e atualmente em posse da Bethesda Softworks.

O universo da obra se destaca por seu caráter retrofuturista, uma estética inspirada nos Estados Unidos da década de 50, mas com um toque do que seria o ideal de futuro para esse passado, com tecnologias altamente desenvolvidas como robôs e armaduras potentes. Principalmente, destaca-se pelo cenário pós-apocalíptico.

A produção do seriado ficou a cargo da Kilter Films, estúdio gerenciado por Lisa Joy e Jonathan Nolan, dupla conhecida por ser a mente por trás da série Westworld. Graham Wagner (Sillicon Valley) e Geneva Robertson-Dworet (Capitã Marvel) assinam o roteiro.

Em meio a um legado de sucesso nos jogos, vindo em sequência de um dos maiores triunfos da MAX em 2023, The Last of Us, a versão seriada de Fallout surge após várias tentativas com outros estúdios serem recusadas por Todd Howard, diretor e produtor de alguns dos jogos da franquia, por julgar não serem boas o suficiente.

A escolha de uma mulher para protagonizar uma história essencialmente voltada ao público masculino foi alvo de críticas e recepções negativas, mas trouxe profundidade a um universo já denso.

A bomba que pôs fim a todas as outras

Aviso: contém spoilers da obra

Na trama da adaptação, o ano é 2296 e o mundo luta para se manter de pé após um ataque de bomba nuclear que devastou a Terra 200 anos antes. Lucy McLean é a filha do supervisor do Refúgio 33, um dos 122 refúgios subterrâneos construídos em todo o território estadunidense.

Quando uma tragédia obriga a jovem a desbravar a superfície, território até então desconhecido, ela se vê imersa em um mundo caótico e ao lado de pessoas muito diferentes do que esperava.

Nem todo jogo pode ser categorizado como uma obra política, mas em Fallout, tal elemento é indispensável. Os habitantes dos refúgios, figuras para as quais o jogador é ensinado a se afeiçoar, são uma pequena porcentagem privilegiada que, pelo custo necessário, conseguiu se afastar dos horrores da radiação.

Cena de Fallout
Cena de Fallout | Imagem: reprodução

Conflito bélico e corporativismo 

Neste universo, o próprio fim do mundo é trazido pelo embate entre capitalismo (EUA) e comunismo (China). O horror bélico chega a tal ponto que se torna unânime para os cidadãos americanos a decisão de oferecer sua liberdade em troca de segurança.

Há elementos cruelmente satíricos em todos os detalhes da obra proporcionados pela Vault-Tec, corporação que, na história, não satisfeita em ser responsável pela criação das parafernálias à prova de bomba, também mantém seu empreendimento no pós-guerra.

Com o slogan “Prepare-se para o futuro” e um mascote caracterizado por um gesto associado ao conflito bélico, a companhia mantém, no mundo destruído, uma extensão do corporativismo – mesmo sem alguém para coordená-lo.

Tendo um desastre nuclear como seu principal motor narrativo, o grande trunfo de Fallout vem através de suas críticas ácidas e nada amenas ao belicismo e ao corporativismo, que permeiam todo o visual da obra: estão nos restos de civilização, nas vacas de duas cabeças, nas pessoas transformadas em monstros e no grandíssimo contraste de Lucy com o ambiente e os indivíduos que a cercam.

Lucy e a subversão da donzela em Fallout

Sendo possível traçar um paralelo entre Fallout e Oppenheimer (dados os contextos de guerra, armas nucleares e pequenos grupos ditando os rumos da humanidade), torna-se ainda mais fácil, de maneira inusitada, uma comparação entre Lucy e a protagonista de outro filme premiado do Oscar 2024: Bella Baxter, de Pobres Criaturas.

As duas mulheres têm linguajares engraçados, até mesmo não naturais, mas diferentemente da criatura com toques de Frankenstein, Lucy, aqui, conta com sua ingenuidade representando a “mulher americana ideal”: engajada com sua comunidade, proativa nos afazeres e idealista com o amor e o matrimônio.

Logo no primeiro capítulo, no entanto, a protagonista rompe com o esperado desse estereótipo e – novamente em paralelo com o longa de Yorgos Lanthimos – demonstra ser dotada de autonomia sexual ao exercê-lo durante sua lua-de-mel.

Lucy (Ella Purnell) em Fallout
Lucy (Ella Purnell) em Fallout | Imagem: reprodução

Assim como Bella, Lucy é privada do que seria a “vida real”: faz parte de uma sociedade harmônica, porém teatral, que não mede esforços para esconder sua fragilidade nem se preocupa em adotar um discurso que passe longe de ser higienista quando se refere aos habitantes da superfície. Novamente, como Bella, Lucy é podada por um pai talvez bem intencionado, mas que não permite à filha um real entendimento do mundo no qual está inserida.

Dessa forma, ambas as personagens passam pelo que se convencionou chamar de “perda da inocência”; Lucy sofre um abalo emocional ao perceber que o mundo que esperou encontrar clamando por sua ajuda na verdade sobrevive, mesmo que aos trancos e barrancos, sem seu povo. Passa, também, por um processo de degradação física ao ser submetida às mais diversas violências, incluindo até mesmo a perda de uma parte de seu corpo.

A integridade em um mundo corrompido

Os acontecimentos submetidos à protagonista de Fallout são prato cheio para outro tropo narrativo que sempre se mantém nas altas camadas da popularidade, sendo este o arco de corrupção.

É esperado, e até mesmo interessante, devido às suas camadas, que alguém para quem a humanidade é negada também a negue para si mesmo. Fallout, desde seu lançamento, nos mostra como alguém pode ser mudado pelo meio. Mas tal traço é reservado a outro personagem: para a habitante do subterrâneo, resta a crença em si mesma.

Cena da nova série do Prime Video
Cena de Fallout | Imagem: reprodução

A “regra de ouro” defendida fielmente por Lucy talvez seja seu traço mais determinante – a insistência em se manter blindada (ou em se manter inteira) diante de uma realidade não apenas oposta a tudo que conhecia antes, mas também tão combativa com o que ela foi ensinada a acreditar.

Um mundo que não espera por “verdadeiros americanos moradores do subterrâneo” para tentar buscar um horizonte. Assim como “a guerra nunca muda”, Lucy espera também não mudar, mas percebe que é possível carregar consigo seus ideais ao mesmo tempo em que almeja novos.

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Cientista Social e estudante de Jornalismo. Para sempre marcada pela existência do Tumblr e, por conta disso, com grande interesse no estudo da cibercultura e do impacto da ficção no mundo. Autoproclamada melhor jogadora de palavra cruzada.
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