Pobres Criaturas: mais Bella do que Frankenstein

Pobres Criaturas: mais Bella do que Frankenstein

Pobres Criaturas, ou Poor Things no título original, é o mais recente longa do cineasta grego Yorgos Lanthimos. Conhecido por suas narrativas bizarras, que exploram as relações humanas em situações extremas, como em Dentes caninos (2009) e O lagosta (2015), por exemplo. Lanthimos estende o desconforto vivido por seus personagens até a tela, como fez em A Favorita (2018), por meio da fotografia e caracterização das personagens. 

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Pobres criaturas finalmente chegou aos cinemas

O filme é a terceira parceria do diretor e da atriz Emma Stone. Os dois já haviam trabalhado juntos em A Favorita, pelo qual Stone recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, e no curta-metragem Bleat, exibido no NYFF61, mas ainda sem data de estreia.

A quarta colaboração da dupla será no longa Kind of Kindness, também sem data de lançamento definida, mas sabe-se que o filme já foi gravado e deve ser lançado ainda em 2024. Emma Stone também é uma das produtoras do longa.

Yorgos Lanthimos e Emma Stone no set de Pobres Criaturas
Yorgos Lanthimos e Emma Stone no set de Pobres Criaturas | Imagem: Variety

A primeira exibição de Pobres Criaturas foi no Festival de Veneza, em setembro de 2023, onde venceu o Leão de Ouro, o prêmio mais importante do festival. Após Veneza, o filme continuou a circular por festivais, incluindo o Festival do Rio, em outubro. Sua estreia no circuito estadunidense foi em 8 de dezembro de 2023. Já no Brasil, a estreia ficou para 01 de fevereiro.

O longo período entre a estreia em Veneza e outros festivais e a chegada do filme aos cinemas criou uma expectativa quase mística, que se combina bem com a produção. E a curiosidade para finalmente descobrir sobre o que trata Pobres Criaturas tem levado o longa a salas lotadas nos cinemas.

Pobres criaturas: das páginas a tela

O filme é inspirado no livro de mesmo nome do escritor escocês Alasdair Gray, lançado em 1992. A história gira em torno de Bella Baxter (Emma Stone), uma jovem que, a princípio, age como uma criança, inclusive aprendendo a andar e falar.

Bella é tutelada pelo cientista Godwin “God” Baxter (Willem Dafoe). God convida um jovem estudante de medicina para ajudá-lo a acompanhar o progresso de Bella, Max McCandless (Ramy Youssef). McCandless descobre que, na verdade, Bella é o resultado de um experimento de God, que teria transplantado o cérebro de um feto para a cabeça da moça.

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Ramy Youssef, Yorgos Lanthimos e Emma Stone no set de Poor Things
Ramy Youssef, Yorgos Lanthimos e Emma Stone no set de Pobres Criaturas | Imagem: Reprodução

Enquanto Max fica fascinado pelo simples fato de Bella existir, ele se apaixona por ela, mas ela não corresponde da mesma forma. Ela então conhece o advogado e bon-vivant Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), que a convence a fugir com ele.

Bella usa Duncan para escapar do zelo excessivo de God e explorar o mundo conforme seu desejo. Seu estranho apetite sexual impulsiona sua curiosidade sobre o mundo, levando Bella a tentar entendê-lo, começando pelo sexo.

Com aspectos que remetem ao romantismo gótico de Frankenstein, ou o Prometeu moderno (1818), de Mary Shelley, e à caracterização das personagens, somos transportadas à Europa da Era Vitoriana. No entanto, essa temporalidade é uma sugestão, já que há uma atmosfera de fantasia traduzida no design de produção do filme, que parece destacar o mundo de Bella do mundo real.

A jornada de Bella Baxter

Ainda assim, a ideia da história ocorrer no século XIX faz sentido dentro da tradição literária e da cultura da época.

Marcado como o pior dos séculos, especialmente durante a Era Vitoriana, o século XIX é uma referência ao puritanismo e à perseguição às mulheres consideradas “histéricas”.

Em Orlando, Virginia Woolf relaciona a chegada do século XIX com a grossa neblina que pairou sobre a Inglaterra naquela época, em comparação com os céus claros do século XVIII.

“Mas a mudança não se limitou às coisas externas. A umidade atacou internamente. As pessoas sentiram o frio em seu coração, a umidade em seu cérebro. No esforço desesperado de aquecer seus sentimentos, tentou-se um subterfúgio atrás do outro.

Amor, nascimento e morte foram cuidadosamente envoltos numa variedade de belas frases. Os sexos se distanciam mais e mais (…)

A vida normal da mulher passou a ser uma sucessão de partos. Ela se casava aos dezenove anos e tinha quinze ou dezoito filhos ao chegar aos trinta (…) Assim se criou o Império Britânico…” (p. 209 – 210)

Dentro deste contexto, a personagem de Bella Baxter deixa de ser apenas a caricatura dos desejos masculinos que Duncan acredita que ela seja quando se conhecem, para assumir um lugar de resistência às normas sociais da época. Ela rejeita a ideia de ser propriedade de alguém além dela mesma, nem de God, Max ou Duncan.

Sobre os aspectos técnicos, destaca-se o design de produção, como já mencionado. Com sets construídos para reforçar os temas fantásticos e a visão de mundo de Bella, como alguém que ainda está o conhecendo pela primeira vez. A produção também fez uso de sets virtuais, dando preferência para a parede de LED que tem se popularizado no cinema.

Imagens dos bastidores de Pobres Criaturas
Imagens dos bastidores de Pobres Criaturas | Imagem: Reprodução

O cinema fora do comum de Yorgos Lanthimos

Enquanto Londres aparece cinza e fria, Lisboa tem um aspecto quase futurístico, com um céu de cores pastéis servindo de fundo para os primeiros momentos de independência de Bella. O uso de cores no filme parece seguir o estado de espírito da personagem; quanto mais mágico o mundo parece para Bella, mais colorido ele é.

O figurino e maquiagem completam a ambientação da obra, fazendo referência a vestimentas tradicionais, ao mesmo tempo que imprimem em cada personagem a sua própria personalidade, como as roupas de Bella e a forma como ela usa o cabelo solto, ao invés de preso à cabeça, como pediam as convenções da época.

A caracterização de God é um destaque que dá ao personagem ainda mais profundidade, já que ele próprio sofre rejeição pela sociedade devido às deformidades causadas por experimentos feitos por seu pai, que também era cientista.

Se compararmos Pobres criaturas com a obra de Mary Shelley, poderíamos pensar que God não se compara a Viktor Frankenstein, mas sim ao monstro criado por ele, que passa a vida em busca de companhia para sua solidão.

Cena de Pobres Criaturas (Poor Things) - O cinema fora do comum de Yorgos Lanthimos
Pobres Criaturas | Imagem: Reprodução

Já a trilha sonora de Jerskin Fendrix cria uma atmosfera que remete a um sentimento de inadequação, utilizando principalmente instrumentos de corda para elevar cada experiência da personagem. Além da música que acompanha as personagens, o filme apresenta um dos melhores momentos musicais de uma temporada repleta de musicais.

Quando Bella encontra uma cantora de fado pelas ruas de Lisboa, ouvimos “O Quarto”, interpretado pela cantora portuguesa Carminho. Lisboa também nos presenteia com a cena de dança entre Bella e Duncan, na qual a personagem tenta dançar livremente com a música, enquanto seu par tenta mantê-la dentro dos limites de passos de dança coerentes.

Emma Stone como Bella Baxter em Pobres Criaturas
Emma Stone como Bella Baxter em Pobres Criaturas | Imagem: Reprodução

Mais do que pobres criaturas

Um filme como Pobres criaturas, assim como o trabalho de Yorgos Lanthimos no geral, pode gerar muitas opiniões e reações conflitantes. O longa lida com temas delicados, como a sexualidade feminina e as ideias de inocência ligadas à figura da mulher. Contudo, reduzi-lo a essas questões seria julgar o longa a partir da sinopse.

Lanthimos, o roteirista Tony McNamara e Emma Stone, aqui não apenas como estrela do filme, mas também como produtora, criaram uma obra de realismo fantástico que retrata a libertação de uma mulher das normas e convenções da sociedade. Na realidade, não chega a ser uma libertação, já que Bella rejeita a todo momento as escolhas que ela mesma não tenha feito.

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Argumentos que apontam a exploração da sexualidade no filme, como parte do male gaze, não levam em consideração a agência de Stone como produtora do longa. Assim como tentativas de encaixá-lo como parte do trope born sex yesterday, que faz referência a personagens femininas em situações de ingenuidade e inexperiência, enquanto são colocadas em situações sensuais e sempre na presença de um mentor homem, que mais tarde pode se tornar o interesse amoroso.

O ótimo desempenho do elenco completa ainda mais a experiência do filme. Emma Stone se destaca com um trabalho corporal e vocal que a coloca como uma das maiores atrizes de sua geração.

Mark Ruffalo e Willem Dafoe também roubam a cena, sem deixar que a caracterização das personagens distraia o espectador da entrega de suas performances. Dos protagonistas ao elenco de apoio, todos entregam uma atuação que acredita nos absurdos de cada situação.

Viver é uma experiência

Neste filme, a protagonista usa a sexualidade conforme deseja e até quando deseja, inclusive tomando decisões que vão contra as vontades dos homens ao seu redor. Emma Stone e Bella parecem defender muito mais a normalização da sexualidade feminina do que explorá-la de forma sem sentido.

O personagem de Christopher Abbott (sem spoiler aqui) representa para Bella o controle que a sociedade impõe sobre os corpos femininos. Enquanto Duncan seria uma espécie de personificação do male gaze, transferindo para Bella as suas próprias expectativas sobre ela e sobre como ele gostaria que a relação deles fosse. Quando ela quebra essas expectativas e o recusa, ele busca vingança como homem rejeitado.

Retorno então a Orlando, de Virginia Woolf. Apesar das óbvias ligações com Frankenstein, Pobres criaturas pode remeter muito mais a esta obra de Woolf. A história de um homem que é transformado de forma mágica em uma mulher imortal.

Orlando, ao se ver obrigado a aceitar convenções sociais ligadas à experiência feminina, as rejeita, vivendo por anos como homem e mulher. Ele explora a própria sexualidade e os limites dos padrões sociais para as classes dominantes. Viaja, apaixona-se, perde o interesse, casa-se por convenções e termina retornando à casa onde nasceu, certo de suas vontades e do mundo ao seu redor.

Bella e Orlando têm tanta proximidade quanto God e o monstro de Frankenstein, vagando em busca de companhia em um mundo que os rejeita, seja por sua aparência ou por seus pensamentos. As pobres criaturas são aquelas inadequadas e rejeitadas pelas normas sociais, mas que, assim como no filme, promovem a própria sociedade por meio de encontros com seus iguais.

Talvez, no final de tudo, Bella, e o espectador, tenham concluído que a condição humana pode ser muitas coisas, menos solitária.

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Historiadora e mestranda em Cinema e Audiovisual, com pesquisas voltadas para as relações entre os lugares ocupados por mulheres no cinema brasileiro. Apaixonada por arte, cinema e educação.
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