Incompatível com a vida, vencedor do festival É tudo verdade (2023), é um daqueles filmes que demandam tempo para assimilar o que foi visto. Essa oportunidade é concedida apenas às espectadoras, pois o que falta para as mulheres neste documentário é tempo para compreender o que está acontecendo.
Eliza Capai, documentarista brasileira, dirige o filme que se inicia em meados de 2020 – o segundo ano do mandato de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil e o primeiro ano da pandemia de Covid-19, adicionando ainda mais desolação e perda ao cenário.
Eliza registra sua gravidez e, desde o início, avisa ao novo ser dentro dela que o clima não é dos melhores por aqui. Logo em seguida, o bebê é diagnosticado com uma má formação, tornando-o – conforme o título do filme sugere – incompatível com a vida.
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Incompatível com a vida: um filme que dói
Por inúmeras vezes, Eliza se lança em águas profundas, sozinha, fazendo pouca ou quase nenhuma diferença quando está de olhos abertos ou fechados. A densidade da água não lhe permite ver as coisas com definição. Nessas cenas breves, é possível converter substantivos como “maternidade” em imagens. Assim, o tornar-se mãe parece ser, de fato, um lançamento em coisa nenhuma.
Essa experiência, já explicada por estudiosas como Lucila Scavone (2001), ultrapassa todas as questões biológicas na qual um corpo se submete na gestação. Para além dos fatores biológicos, o filme deixa evidente o que já fora apontado por muitas correntes feministas ao longo da história: o de que o pessoal é político.
Ao acompanhar seis outras mulheres, a cineasta abre um mundo dolorido e familiar: gerar uma criança que não poderá viver. Aqui, as discussões sobre o aborto prosseguem em uma dança parecida com os mergulhos sem rumo de Eliza – dor física e emocional, burocracia. Tudo é inacreditável.
A moralidade é obcecada, perturbada e incompatível com a vida, principalmente quando falamos da vida de uma mulher.
Incompatível com a Vida e um fardo chamado maternidade
Por meio das mulheres que Eliza encontra, é possível desenhar um panorama triste, pouco surpreendente e ainda incompreendido sobre o aborto no Brasil, principalmente no que se refere a esse tipo de diagnóstico, no qual o bebê, muitas vezes, morre dentro da própria mãe ou nasce para viver por apenas alguns minutos ou horas.
Em entrevista concedida a Luísa Pécora (2023), Eliza conta sobre como fora o seu método para encontrar essas mulheres. A busca em maternidades e procuradorias públicas em diferentes regiões.
Os registros oficiais, assim como as histórias compartilhadas dessas mulheres e seus filhos não gerados, invocam verdades angustiantes de um país racista. As mulheres negras que, se quer chegam a receber tal diagnóstico, não foram encontradas.
Aqui, as discussões sobre o acesso à saúde da mulher – levando em conta questões de raça e classe, por exemplo, renderiam outra obra.
Ainda que o atravessamento da raça se coloque como limitante, é importante destacar a abordagem múltipla com a qual a diretora se preocupa. A violência hospitalar, estatal, psicológica e física são pontos em comum dessas mulheres, mas a sensibilidade de cada uma delas invocam vivências, crenças e experiências pessoais.
O filme atinge uma máxima assustadora: o fardo da maternidade parece ainda mais pesado às mulheres quando a função de mãe não é alcançada. Não ser mãe é mais violento, doloroso e incompatível com a vida do que sê-lo, ainda que o contrário também não seja verdade. Afinal, me pergunto: quando a mulher-mãe aqui é, de fato, considerada?
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Um falar sobre si para falar sobre a outra
Para além do filme como inteireza e peça acabada, também é preciso falar sobre o seu processo de feitura. Como conta Eliza, tudo começa com os registros a partir do momento em que ela recebe o diagnóstico. Ainda incerta sobre se isso poderia virar filme, a cineasta relembra as histórias contadas por amigas. São histórias, como comenta, que ela ainda não era capaz de sentir por falta de empatia.
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Em Incompatível com a Vida, Eliza se abre, se expõe e não apenas por fazê-lo, mas por entender que é importante que as pessoas conversem e discutam sobre o aborto, o luto e o direito a uma vida digna para as mulheres.
Uma das cenas mais impressionantes do filme, pouco antes da interrupção da gravidez, é quando Eliza vai até uma cachoeira para se despedir de seu bebê. Coberta pela queda d’água, ela chora a ponto de confundir suas lágrimas com a água doce. Suas mãos estão em sua barriga e ela balbucia palavras de despedida.
Incompatível com a Vida está disponível na MUBI.