Orlando (1928) é um livro escrito por Virginia Woolf, considerada atualmente como um dos grandes nomes da literatura ocidental do século XX. Na sua obra encontramos romances notáveis como Mrs. Dalloway (1925) – que é um marco para o romance moderno, em razão de sua realização estética – e Ao Farol (1927). Ambos são famosos pelo emprego do fluxo de consciência, uma técnica que nos permite um grande aprofundamento na psique das personagens.
Além de sua obra ficcional, Virginia Woolf foi uma ensaísta profícua, escrevendo, com uma lucidez aguda, sobre literatura e sobre a sua época. Dessa sua produção ensaística, destacamos e recomendamos muito a leitura de Um teto todo seu (1938), livro no qual a autora discorre sobre os numerosos empecilhos para que mulheres pudessem se tornar escritoras. Felizmente, as editoras brasileiras têm publicado cada vez a produção dessa autora: em 2015, a finada Cosac Naify publicou o volume de ensaios O Valor do Riso e Outros Ensaios (2014), a Autêntica lançou O Sol e o Peixe (2015), também de ensaios, e A arte da brevidade (2017), de contos.
Voltando a Orlando: o livro é classificado como romance, recebendo também a caracterização (merecida, se não levarmos de uma forma necessariamente negativa) de fantasia histórica. A edição da Cia. das Letras (se quiser ler um trecho, clique aqui), que saiu pelo selo da Penguin, conta com um aparato crítico essencial para melhor compreensão da obra, constituído pelo prefácio de Sandra M. Gilbert, um artigo, que funciona quase como uma espécie de posfácio, de Paulo Mendes Campos, e as fundamentais notas (sem as quais perderíamos uma série de relações que enriquecerem a leitura ou passaríamos muito tempo na Wikipedia, tentando estabelecer uma fração dessas relações). Para quem se interessar pelo livro, não deixe de ler esse material antes do romance.
No prefácio ficamos sabendo, com uma riqueza de detalhes, mais a respeito da homenagem que Virginia Woolf presta a Vita Sackville-West, a quem dedica o livro. Vita, que parece ter sido uma dessas figuras impossíveis de descrever, foi uma escritora e aristocrata, amiga íntima de Woolf, com quem teve uma relação amorosa durante bastante tempo e cuja amizade foi mais forte que o rompimento.
Segundo o filho de Vita, Nigel Nicolson, Orlando seria “a mais longa e mais encantadora carta de amor de toda a literatura”. Para Virginia Woolf, esse livro era, além de tudo, uma espécie de “férias de uma autora” pois, além de parodiar a escrita biográfica – afinal o subtítulo do romance é “Uma biografia” –, a autora consegue colocar de pé uma narrativa quase vertiginosa por conta de sua vivacidade.
Mas sobre o que é o livro?
Orlando é a história de um jovem aristocrata, nascido no século XVI, mas atravessando os anos até o século XX, e que se vê, em um dado momento, misteriosamente “transformado em mulher” (p. 142), em Lady Orlando. No início, o jovem Orlando é descrito de uma maneira ora brilhante, ora ingênua, por uma voz narrativa que está preocupada em reconstituir a sua existência através da escrita de uma biografia. Este jovem não poderia ser mais principesco:
“Ao abrir a janela, sua mão, pousada no peitoril, se coloriu instantaneamente de vermelho, azul e amarelo, como uma asa de borboleta. Assim, aqueles que gostam de símbolos e têm uma queda para decifrá-los podem observar que, embora as pernas bem-feitas, o corpo elegante e os ombros fortes estivessem todos decorados com tons variados da luz heráldica, o rosto de Orlando, ao abrir de par em par a janela, era iluminado apenas pelo sol. Impossível encontrar um rosto mais cândido e taciturno.”
Orlando e sua aparência vivaz, jovial, inacreditavelmente fresca. Um jovem de dezessete anos, que escreve, em segredo, tragédias em verso, cultiva o amor pela natureza e pela solidão e é, graciosamente, desastrado. Segundo a rainha, que o visita logo nas primeiras páginas da narrativa e que logo procura apadrinhá-lo, chamando-o à vida na corte britânica, trata-se de alguém que tem “um par das mais belas pernas que já sustentaram um jovem nobre; e olhos cor de violeta; e um coração de ouro; e lealdade e encanto viril”, além de possuir todas as qualidades possíveis: força, graça, romantismo, loucura, poesia, juventude e, principalmente, inocência.
Nas cem primeiras páginas acompanhamos todo o tipo de peripécias de Orlando: as suas elucubrações sobre literatura, as idealizações em torno das figuras dos poetas, a sua chegada na corte, as aventuras românticas e sexuais, ora com nobres, ora com plebeias, e, finalmente, a paixão avassaladora por Sasha, uma jovem aristocrata russa, e, logo mais, o coração partido.
Nas notas, ficamos sabendo que Sasha fora inspirada em Violet Trefusis, apresentada como “o grande amor de Vita”. Essa personagem desaparece logo, mas a sua presença continuará assombrando Orlando, mesmo quando já for Lady Orlando, mesmo quando já tiver passado muito tempo desde a última vez em que estiveram juntos. Além disso, é Sasha quem, de certa forma, faz com que Orlando se canse da vida e parta em direção à Istambul. É nessa cidade, pintada com um quê de exotismo, que Orlando aprende sua primeira lição de alteridade:
“O som das trombetas foi se desvanecendo enquanto Orlando permanecia de pé, nua em pelo. Nenhum ser humano, desde que o mundo é mundo, foi tão belo. Em sua figura se combinavam a força de um homem e a graça de uma mulher. […] Orlando se olhou de cima a baixo num longo espelho sem mostrar nenhum sinal de inquietação, e caminhou presumivelmente para o banho.
Podemos nos beneficiar desta pausa na narrativa para fazer alguns comentários. Orlando havia se transformado em mulher – isso é inegável. Mas, em todos os demais aspectos, continuava a ser precisamente como era antes. A mudança de sexo, embora viesse a alterar o futuro deles, nada fizera para lhes mudar a identidade. Seus rostos permaneceram, como provam os retratos, praticamente os mesmos. A memória dele – mas daqui em diante, para obedecer às convenções, devemos dizer “sua” e não “seu”, e “ela” e não “ele” –, ou seja, a memória dela percorria todos os eventos do passado sem encontrar o menor obstáculo. Talvez houvesse uma ligeira nebulosidade, como se algumas gotas negras tivessem caído no límpido poço da memória; certas coisas haviam ficado um pouco turvas, mas isso era tudo. A mudança parecia ter ocorrido de forma indolor e completa, não causando nenhuma surpresa a Orlando.”
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Certamente, as partes mais interessantes do romance são as passagens nas quais Orlando se interroga sobre tudo aquilo que havia se transformado agora que era Lady Orlando. No navio, de volta à Inglaterra, após uma temporada entre um povo nômade, ela procura se adequar às normas, comprando vestimentas que, embora belas, limitavam horrivelmente seus movimentos. Além disso, após um incidente em que mostrara alguns centímetros de seus tornozelos quase provocando a morte de um marinheiro (Pois é…), ela se questiona:
“Se a visão dos meus tornozelos significa a morte para um sujeito honesto, que sem dúvida tem uma esposa e família para sustentar, não posso deixar de mantê-los cobertos”, pensou Orlando. No entanto, as pernas eram um de seus maiores atrativos, e isso a fez pensar como era estranho que toda a beleza de uma mulher precisasse ser encoberta para evitar quem um marinheiro caísse do topo do mastro.”
A melhor reação possível vem da própria Orlando. Com mil demônios! Em certos momentos, a atualidade das discussões do romance de Virginia Woolf é bastante perturbadora, afinal é só abrirmos qualquer portal de notícia para ver chover artigos e comentários que ousam justificar toda uma série de agressões e violências à mulher em razão de suas roupas.
Aliás, ela logo percebe que não foi apenas o seu corpo que mudara, ao se transformar em mulher, tudo mudara: a forma como deveria se apresentar, se vestir, se comportar, a própria sexualidade (é quase com alívio que ela constata que poderia amar outra mulher), o imenso desequilíbrio entre os privilégios (receber um toldo para se proteger do sol, no navio) e as privações (não poder sair desacompanhada sem causar estranhamento, a liberdade bem mais estreita, o assédio, a obrigação de cumprir determinados papéis sociais, o impedimento em relação aos estudos e à escrita). Mais adiante na narrativa, a comparação entre dois retratos de Orlando revela muito sobre essas diferenças:
“Comparando os retratos de Orlando como homem e como mulher, veremos que, embora se trate sem dúvida da mesma pessoa, há algumas mudanças. O homem mantém a mão livre para empunhar a espada, a mulher precisa usar a sua a fim de evitar que o vestido de cetim escorregue dos ombros. O homem olha para o mundo de frente, como se ele tivesse sido feito para servi-lo e criado a seu gosto. A mulher o observa de soslaio, com um olhar prenhe de sutileza, até mesmo de suspeição.”
Além disso tudo, não falta aventura no livro, um panorama super interessante sobre as mudanças históricas, políticas, sociais e tecnológicas da Inglaterra. Finalmente, para quem se interessa por literatura, não faltam reflexões sobre a literatura da época, sobre o fazer poético e literário, sobre a questão da representação e do tempo, seja na ficção, seja na escrita biográfica. Orlando é uma obra exigente mas cuja leitura não deixará de repercutir, sem dúvida nenhuma, em uma série de discussões ainda atuais e relevantes.
Bônus!
Para quem gosta do diálogo entre literatura e cinema, há alguns filmes adaptados de livros de Virginia Woolf ou, digamos assim, mais livremente inspirados em sua obra: Orlando (que tem o péssimo subtítulo, em português, de “A mulher imortal”, de 1992, dirigido por Sally Potter e com Tilda Swinton no papel principal e As Horas (2001), de Stephen Daldry. Para 2018, há a promessa do lançamento de Vita and Virginia, baseado no relacionamento das duas escritoras, representadas, respectivamente, pelas atrizes Gemma Artenton e Eva Green.
Orlando
Autora: Virginia Woolf
Companhia das Letras / Penguin