“A Favorita” ou como Yorgos Lanthimos venceu em Hollywood

“A Favorita” ou como Yorgos Lanthimos venceu em Hollywood

Uma corte trágica. Uma rainha que não nasceu para ser rainha, engravidou 17 vezes e perdeu todos os 17 filhos. Agora ela está adoecendo e envelhecendo, e com isso ela é constantemente subestimada, infantilizada e manipulada. Mas ser subestimada tem seus benefícios, entre eles, exigir os maiores absurdos e tê-los atendidos, além de ignorar as obrigações e se deleitar num surto de pequenos êxtases – todos frívolos e superficiais – mas, acima de tudo, manter cativo aqueles que te usam em favor de seus próprios joguetes de poder, tornando deles pequenos escravos pelo seu amor, seja ele físico ou político. Essa é a premissa real de “A Favorita“, mais recente filme do diretor grego Yorgos Lanthimos, que conta a história da Rainha Anne da Grã Bretanha e seu desmoronamento físico e mental, além das idas e vindas de suas parcerias políticas e amorosas.

Lanthimos há tempos já migrou de sua pequena, mas promissora carreira na Grécia através do aclamado “Dentes Caninos” (2009), para filmes falados em inglês e grandes nomes do cinema atual, como “O Lagosta” (2015) ou “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017). No entanto, essa é sua primeira produção verdadeiramente hollywoodiana. Não só pelo tamanho e orçamento, mas pelas concessões que vemos o diretor fazer ao, por exemplo, não co-escrever o roteiro, como havia feito em todos os seus filmes até então.

Dentes Caninos (2009)

Para quem conhece sua carreira há uma sensação nítida de que “A Favorita” não é um filme 100% autoral. É um Lanthimos light, meio aguado, um filme para melhor agradar o paladar das premiações americanas, ainda muito limpinhas para lidar com o característico humor seco, sarcástico e imperdoável do diretor, sempre acompanhado por um elemento de bizarro, semi-grotesco e até mesmo violento – violência essa que nem sempre é obvia, mas que vem pulsante como uma subcorrente em suas narrativas.

Isso não quer dizer, no entanto, que o diretor não traga a sua marca para a história, pelo contrário, ele faz do que seria um filme de corte clichê, se tornar tão ridiculamente trágico e excêntrico que só nos resta rir, em choque, pelo que acabamos de ver. Mesmo que aguado, o efeito Lanthimos permanece e pode ser sentido pela obra; seja na maneira como ele filma os palácios, usando lentes angulares tão grandes que chegam a distorcer os espaços físicos, deixando tudo meio torto; seja pela ironia que ele instaura em cada aspecto da corte, de suas perucas ao seu entretenimento com a corrida de patos e lagostas.

A Favorita

O diretor faz da Rainha Anne, lindamente interpretada por Olivia Colman, uma montanha russa de emoções, que vão desde a dor sensível de uma mulher quebrada pela vida, aos abusos de alguém absolutamente infantilizada por todos à sua volta, mas que sabe perfeitamente bem quem detém o verdadeiro poder ali. É dessa linda ambiguidade sobre o estado mental da rainha (ela está ou não está louca? ela tem ou não ciência das escolhas que faz e suas ramificações? ela sabe ou não que está sendo manipulada? ela está sendo de fato manipulada?) que surge o conflito principal de “A Favorita”.

Anne foi, historicamente, sempre muito próxima de Lady Sarah, Duquesa de Marlborough, interpretada por Rachel Weisz no longa. Tão próxima, mas tão próxima, que as duas eram amantes. Ainda que esse seja um daqueles grandes segredos históricos que não é segredo para ninguém, é refrescante ver como o filme não mede meias palavras em alegar que, sim, a comunidade LGBTQ sempre existiu em nossa história e não é fenômeno exclusivo do século XX.

A Favorita

Lady Sarah constantemente usa seu afeto para influenciar a Rainha – sempre isolada e carente – de modo a favorecer os Wigs no parlamento, apesar da Rainha naturalmente tender em favor dos Torys. Sarah é dura, firme e intransponível, e guarda seu afeto como arma, não só para manipular Anne, mas também para se proteger. Ela é uma figura poderosa e queer e que tem dom nato para a liderança, mas, por ser mulher, é constantemente subjugada. Sarah guarda seu afeto, porque é ele quem lhe dá passagem para ser quem ela verdadeiramente é e ter o poder e espaço que pertencem à alguém com sua mente. Seu afeto, seu sexo e seu corpo são a sua maior proteção e segurança.

Enquanto isso, Colman apresenta uma Anne frágil, solitária, confusa e doente, que se dá perfeita liberdade de ser – mesmo que entre quatro paredes e não aos olhos de toda a corte – vulnerável, pois ela sabe perfeitamente bem que, no estalar de seus dedos, ela pode ter a cabeça de todos ali. As duas começam a brigar após a chegada de Abigail, prima de Lady Sarah e futura Baronesa de Masham, interpretada por Emma Stone.

A Favorita

Mesmo que todos os críticos tenham amado fervorosamente a atuação de Emma Stone, ela ainda se apaga quando comparada a Weisz e Colman. Enquanto as duas exalam fisicalidade e a essência de suas personagens, Emma não consegue manter a fachada de boa moça por muito tempo. Abigail é aquela personagem que vai chegando de mansinho, se fazendo essencial, se instaurando nas boas graças da Rainha e conquistando o coração de todos, até dar o seu coup de etát (golpe de estado). No entanto, Stone não consegue nos fazer acreditar nela nem por um segundo, deixando a revelação de que, na verdade, sua personagem é uma oportunista – disposta aos maiores extremos para chegar ao poder – um pouco sem sentido. O que deveria ser um ponto de virada importante no filme, acaba se tornando meio achatado e não causa reação alguma na espectadora.

Apesar dos pesares, o filme encanta em suas atuações e fisicalidade. Dos movimentos da dança mais excêntrica – da qual nem a louquíssima corte de Louis XV seria capaz – até a brutalidade de ver um corpo arrastado em quilômetros por cavalos. A partir da putridão das feridas abertas e da constante lama em todos os lados, o filme traz o corpo para o centro. São os corpos quem mais se expressam no filme. É no corpo que se sente a rigidez de Sarah, no corpo de Colman. Ficando cada vez mais assimétrico, quase derretido, que sentimos a lenta queda de Anne. É no corpo altivo e depois curvado de Abigail, reduzida ao sexo mais nojento já visto em tela, que vemos o quanto o seu sonho de poder vem à duras custas. É no corpo também que a espectadora sente o impacto do filme, diretamente no âmago, no plexo solar, na perda de equilíbrio ao levantar da cadeira sem saber direito se o que se viu é real ou de outro mundo.

A Favorita

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A Favorita” poderia facilmente ser um filme esquecível nas mãos de outro diretor, mas não é. Isso porque Yorgos Lanthimos soube transformar o trágico em algo vivo e elétrico (e também um pouco bizarro, na melhor das maneiras). No final das contas, Lanthimos light ainda é melhor do que muita gente, pois ele mostrou como é possível estar num sistema grandioso como Hollywood sem perder sua voz.

Autora convidada: Anna Lívia Marques já trabalhou em cinema e TV, mas hoje em dia se dedica aos podcasts, à escrita e, especialmente à apertar muito seus gatos. Mora em São Paulo e sofre no trânsito todos os dias.

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