A Esposa: uma reflexão sobre o papel da mulher na literatura

A Esposa: uma reflexão sobre o papel da mulher na literatura

O provérbio português “Atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher”, amplamente difundido na cultura patriarcal é uma ode ao papel subjugado da mulher através dos tempos. Essa reafirmação do protagonismo masculino perpassa diversas esferas da sociedade, mas tem um peso enorme na história da literatura. Recentemente, dois filmes tocaram nesse ponto: “A Esposa” e “Colette.

No longa “A Esposa” (2017), a história é ficcional, mas sua verossimilhança e universalidade em relação ao poder patriarcal é bem próximo da realidade de diversas mulheres na literatura (e também na arte, história e ciência). O filme, adaptado do romance homônimo de Meg Wolitzer por Jane Anderson e dirigido por Björn Runge, tem como principal foco o papel de Joan Castleman, brilhantemente interpretada por Glenn Close, como esposa do mais novo indicado ao Nobel de Literatura, Joe Castleman (Jonathan Pryce). A jornada burocrática e pomposa para o recebimento do prêmio traz à tona as verdades por trás da carreira prolífica de Joe.

Na primeira metade do longa, Joan é retratada como o anjo da casa: cuida da agenda atribulada do marido, com quem é casada há quarenta anos, estando sempre a seu lado em eventos literários lotados com a presença masculina, além de ser uma mãe atenciosa para dois filhos adultos. A dinâmica do casal juntamente ao filho David (Max Irons), um aspirante a escritor que procura aprovação do pai, se constrói em torno do personagem de Joe, e isso, de certa forma, se constitui como uma metáfora de que ambos se encontram a sombra do grande escritor da família.

Na segunda metade do filme, por meio de flashbacks, podemos ver o relacionamento extraconjugal Joan e Joe tomando forma, motivado por uma relação professor-pupila que se constrói a partir de uma imagem comumente difundida: problemas maritais que colocam a esposa como megera e a jovem aluna como a aventura excitante e cheia de potencial (esses arquétipos tradicionais reafirmam os padrões de feminilidade restritivos em relação à mulher e são amplamente difundidos na mídia).

A Esposa

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O filme não traz nada de novo no aspecto de sua narrativa e por muitas vezes constrói seu enredo de forma rasa, mas tanto a temática da autoria levantada quanto à atuação memorável de Glenn Close, que a consolidou como uma das favoritas na corrida pelo Oscar deste ano, abrilhantam um filme que poderia ser considerado mediano.

O grande mistério de “A Esposa” é a verdadeira autoria das obras atribuídas a Joe, pois todas elas são escritas por Joan. Joe leva o crédito de toda escrita da esposa, que se mantém, pelo menos no início, calada, sorridente e discreta a seu lado, o que, no desenvolvimento do filme (e da personagem), gera o estopim para a revolta em relação a sua sublimação. Na verdade, a relação do casal é quase simbiótica: ela escreve, ele cuida da casa e ganha todo o prestígio. Justo? Nem tanto… Porém, a justificativa para tal identidade ghostwriter é bastante sólida: mulheres não são lidas.

A culpa é da sociedade patriarcal que fez com que as mulheres se mantivessem restritas na esfera privada e doméstica, enquanto os homens se tornavam figuras públicas e proeminentes na área intelectual por terem a chance de cursar o ensino superior, enquanto elas focavam-se nos filhos e, quando muito ousadas, somente tinham a opção de seguir a carreira docente. Historicamente, a relação da mulher com a literatura é marcada pela opressão de gênero e pelo silenciamento.

A mulher e a escrita

A emancipação feminina por meio da arte, especificamente na literatura, se deu (e ainda se dá) aos trancos e barrancos, onde uma escritora mulher, muitas vezes, que lidar com a dupla jornada, o julgamento social por estar tomando um lugar dito como masculino e os produtos da desigualdade de gênero como um todo. Outrossim, um ponto importante da discussão acerca da escrita de mulheres é a desvalorização da obra literária somente por esta ser escrita por uma mulher.

Fazendo uma breve digressão histórica, lá no Século XIX, nomes como George Eliot, George Sand e os Irmãos Bell eram, na verdade, pseudônimos utilizados por escritoras (Mary Ann Evans, Amandine Dupin e As Irmãs Brontë— em início de carreira, respectivamente). O motivo? A escrita “feminina” era massacrada por críticas ao ser um sinônimo da transgressão da ordem social, exatamente por colocar (ou ao menos tentar colocar) a mulher no mesmo patamar intelectual do homem.

A Esposa
As autoras Charlotte Brontë e Anne Brontë usaram os pseudônimos Currer Bell e Acton Bell para publicar as obras “O Morro dos Ventos Uivantes” e “Agnes Grey”, dois clássicos da literatura inglesa e mundial. Foto: reprodução

Além disso, ao se cunhar o termo “literatura feminina” pode-se gerar o reforço do status quo dos papéis de gênero e da performática da feminilidade. O estigma de que a mulher na literatura se apropriará de temas do universo dito feminino faz com que paire uma expectativa de se encontrar domesticidade, superficialidade e romantismo exacerbado nas possíveis obras “femininas”. Mulheres já escreveram (e ainda escrevem) sobre casamentovida domésticareligiãomaternidade amor romântico, mas nunca se restringiram a isso, indo além dentro desses temas, tecendo críticas, descrições e reflexões acerca da realidade em que viviam ou da ficção que estavam construindo. Mulheres também escreveram sobre subjetividades complexasefemeridade da existência e perpassaram por diversas vanguardas que romperam com o instituído (um exemplo seria a importância de Gertrude Stein para o modernismo americano).

A Esposa

A ideia de que a escrita das mulheres se acorrenta ao círculo que é dito como “habitat feminino” restringe e sufoca e tem seus resultados no mercado editorial, que privilegia a escrita de homens, além, é claro, da pequena presença feminina nos aclamados prêmios literários. E é por isso que o diálogo entre a jovem Joan e a escritora, interpretada por Elizabeth McGovern, que diz que mulheres não são lidas e, mesmo que publiquem, seus livros estarão restritos às estantes, é poderoso.

A identidade de Joan

A submersão da identidade de Joan como a verdadeira escritora dos livros trata-se de um pragmatismo relacionado ao mercado editorial, que privilegia os homens pela atribuição de valores à tradição da escrita masculina como superior à feminina. Da mesma forma que mulheres escolheram se esconder sob um nome masculino para terem seus trabalhos publicados e valorizados, a personagem do filme “A Esposa” se esconde sob a manta da imagem de seu marido, mas, o longa (principalmente em seu final), deixa a espectadora com a sensação de que as motivações da autora iam além do interesse mercadológico e eram também passionais, mas que demonstram a estrutura patriarcal. A escolha de Joan em se silenciar em relação à autoria real das obras, mesmo após a morte de seu marido, é um produto de anos de uma relação conjugal opressora.

A Esposa

Fechada no círculo doméstico, focada em um trabalho desgastante que não seria reconhecida por fazê-lo, a protagonista vivencia uma relação desgastante e abusiva com o marido, que repetidamente trai sua confiança, apesar de repetidamente afirmar que Joan é seu “grande amor”. O marido demonstra uma “inveja intelectual” de sua esposa em diversos momentos do longa, e muitas vezes mantém esse relacionamento por meio de chantagens emocionais, simplesmente pela utilidade de seu talento. O título do filme é algo a se refletir: Joan é a personagem principal do enredo, mas é reconhecidamente a esposa, um predicativo baseado no protagonismo masculino.

Joan é, sem dúvida, a mulher por trás de um grande homem, só que ela é uma grande mulher que escolhe estar por trás, mas que deveria estar a frente de sua própria obra. Porém, como dito por Michael Schulman em seu artigo para o The New Yorker, ela possui “poder da escolha em ser visível ou invisível” até que não seja mais o suficiente para ela só se manter invisível e decorativa, até que o conforto de uma relação estável de simbiose se torna parasitária.

P.S.: Se você se interessou pelo tema e gostaria de conhecer mais sobre a mulher na literatura, sugirimos a leitura de um ensaio escrito por Virginia Woolf, “Um teto todo seu“.

Autora convidada: Julia Fraga é estudante de Letras e mineira. Tenta fazer um pouquinho de tudo, desde cozinhar a enfrentar o patriarcado com suas palavras. Apaixonada por cinema e literatura, sempre mistura seus amores enquanto toma café. Não se prende a dualidade de ou amar cães ou gatos, ama os dois.

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