Um Teto Todo Seu: circunstâncias sobre a produção literária das mulheres

Um Teto Todo Seu: circunstâncias sobre a produção literária das mulheres

1941. Uma mulher anda pela margem de um rio. Escolhe pedras. Pedras pontudas, pedras pesadas. Quase uma poesia concreta. Essa mulher coloca as pedras nos bolsos e se joga no rio. Tinha 59 anos, era escritora e se chamava Virginia Woolf. Ouvia vozes e era maníaca depressiva. Na carta que deixou ao marido, contava que as vozes voltaram. Vozes que a impediam de escrever.

1928. Aos 47 anos, a inglesa Virginia Woolf era uma escritora conhecida quando foi convidada a dar palestras sobre o tema “Mulheres e Ficção”, na Universidade de Cambridge. As duas falas foram reunidas num ensaio chamado Um Teto Todo Seu, lançado em 1929. Para a escritora, o tema poderia significar apenas mulheres e ficção, ou mulheres e a ficção escrita sobre elas, e ainda, mulheres e a ficção que escrevem. Resolveu trabalhar com a última opção.

Foi à beira de outro rio que Mary, a narradora do livro, uma versão romanceada (ou não) da própria Virginia, se sentou para pensar no conteúdo da palestra, e o que concluiu não foi nada bom. Segundo ela, as limitações de uma mulher que quer se tornar escritora são muito claras, pragmáticas, até.

A mulher precisa de um espaço para trabalhar e uma fonte de renda. Ser intelectualmente livre e não estar presa as tarefas domésticas. O silêncio da escrita feminina é contextualizado no ensaio pelas circunstâncias da vida da mulher, até então.

Historicamente, a produção feminina foi afetada pela condição da mulher na sociedade. O papel social da mulher não possibilitava a criação. Imaginem uma irmã de Shakespeare, propõe Virginia, nascida na mesma casa, tendo as mesmas experiências e capacidade intelectual.

Um Teto Todo Seu
Virginia Woolf (reprodução)

Ela não teria a mesma vivência, não seria mandada para escola, e seu potencial não poderia ser atingido. Sem direito ao trabalho, teria que se casar para garantir seu sustento. No casamento teria que cuidar de filhos e tarefas domésticas. Tarefas essas que já fazia desde criança.

O jovem William usufruía de seu tempo da maneira que quisesse, podia inventar histórias e aventuras enquanto sua irmã, mesmo sendo imaginária, ajudava a mãe desde criança não lhe sendo permitido desenvolver sua imaginação. Parece familiar?

Em fevereiro de 2016, o jornal O Globo divulgou uma pesquisa do IBGE que constatava que a jornada doméstica das mulheres é maior que a dos homens. Mulheres trabalham mais dentro de casa. Os dados ainda mostram que o casamento aumenta a carga de trabalho da mulher e diminui a do homem. Isso só no Brasil.

Muitas mulheres inspiram a literatura e ocupam o papel de musa. Por elas, heróis travam guerras e atravessam o mundo para recuperar uma esposa que partiu de livre e espontânea vontade, mas que seu marido julga sequestrada. Ilíada, um dos maiores exemplos de solidariedade masculina da literatura.

Dá uma pesquisada nisso. Vários reis e seus exércitos se juntaram para defender a honra do brother Menelau, marido de Helena, esposa que foi embora com Páris, o príncipe de Tróia. Helena não conduz a história, e esse é só um exemplo entre muitos. As mulheres eram passivas dentro e fora de um livro, na ficção e na vida real. É claro que há algumas exceções. Virginia não cita suas contemporâneas, mas são citadas: Mary Shelley, as irmãs Charlotte e Emily Brontë e Jane Austen.

A própria Virginia era uma escritora nascida no fim da era vitoriana. Segundo seus biógrafos, ela se ressentia de não ter estudado. Filha de um editor, casada com um crítico literário, Virginia esteve a vida toda cercada por livros. Seus irmãos estudaram em Cambridge, o que não lhe foi permitido.

Para compensar, se dedicou a leitura autodidata e tentou se educar como podia. Casada, teria o apoio e o incentivo do marido para escrever. Mas, e quem não tinha? Sem uma sala própria de trabalho, Jane Austen escrevia em pé numa mesa na sala de estar de casa. Não se casou e dedicou sua vida à escrita, mas mesmo assim escrevia escondido.

Tomava cuidado para que visitantes e criados não desconfiassem de suas atividades literárias, que só eram conhecidas por seus familiares. Sua crítica social se desenvolveu na sala de estar, foi no ambiente familiar que seu olhar se apurou. Como desenvolver uma escrita trancada numa sala bordando, sem ter acesso à educação e a experiência de vida?

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Por mais imaginação que uma escritora tenha, grande parte do repertório narrativo, do ato criador, vem da vivência do artista. A experiência (ou falta) influi diretamente na forma de ver a vida. Por isso o olhar de Jane Austen se destaca no século XIX, pois apesar das adversidades, a autora conseguiu produzir uma obra de extrema sensibilidade. Virginia Woolf também passou por dificuldades e conseguiu se destacar. Elas são uma exceção.

Quantas mulheres não tiveram ou não têm seu talento incentivado? Seus livros publicados ou até lidos? E mesmo na surdina, sem direito à privacidade, essas mulheres escreveram grandes obras. Onde chegariam se tivessem a mesma liberdade dos homens? Virginia diz: “uma mulher deve ter dinheiro e um teto todo seu, se ela quiser escrever ficção“. Uma conclusão simples, mas que revela muito sobre o contexto histórico da criação das mulheres através dos séculos.


Um Teto Todo Seu

Virginia Woolf

Editora: Tordesilhas

192 páginas

Onde comprar: Amazon

 

Escrito por:

8 Textos

Candida Sastre é roteirista de humor e pesquisadora. Escreve artigo e entende dos paranauê acadêmico. Suas inspirações na crítica são Clement Greenberg (amém), Arthur Danto e a rainha Aracy de Almeida. Carioca, mother of cats, diferentona, tinha um blog chamado Sylvia. Faz parte do Gloria Steinem Futebol Clube. Escreve humor porque tem facilidade, mas queria mesmo ser o Daniel MacIvor.
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