[DOCUMENTÁRIO] We Were There: Vozes femininas dentro de uma prisão masculina na Irlanda do Norte

[DOCUMENTÁRIO] We Were There: Vozes femininas dentro de uma prisão masculina na Irlanda do Norte

Nos dias 22 a 25 de agosto, a Abei (Associação Brasileira de Estudos Irlandeses) promoveu o 12º Simpósio de Estudos Irlandeses na América do Sul, juntamente com o evento Rethinking Cultural Trauma From Transnational Perspectives (Repensando o Trauma Cultural a Partir de Perspectivas Transnacionais) na USP. Dentre as atividades oferecidas, o Cinema da USP Paulo Emílio (CINUSP) em parceria com o Irish Film Institute, a Cátedra de Estudos Irlandeses da USP e a Abei organizou a mostra Trauma Cultural na Irlanda e no Brasil, com uma seleção de dez filmes (sete irlandeses e três brasileiros) que apresentam momentos de conflitos e opressão política vividos nos dois países.

No dia 23 de agosto foi exibido o documentário We Were There (Nós Estivemos Lá, 2014), dirigido por Cahal McLaughlin e Laura Aguiar, que traz depoimentos de mulheres que frequentaram as prisões masculinas de Maze e Long Kesh. São mães, esposas, irmãs, funcionárias da prisão, vozes femininas que tiveram envolvimento nos processos prisionais e conflituosos da Irlanda do Norte, mas que – como de costume – acabam esquecidas. Após a sessão aconteceu um debate com Cahal McLaughlin e o diretor explicou sobre o projeto no qual o documentário faz parte, o Prisons Memory Archive, que reúne 175 gravações filmadas entre 2006 e 2007 com pessoas que tiveram contato com as prisões Armagh Gaol (feminina) e Maze e Long Kesh (masculina) durante o conflito na Irlanda do Norte.

É também importante ressaltar o caráter ético dos documentaristas responsáveis pela obra e pelo projeto, segundo McLaughlin toda captação e distribuição do material (incluindo o documentário We Were There) seguiram alguns protocolos, tais como: de co-ownership, onde os direitos autorais do que for produzido pelo e através do projeto é dividido entre todos os participantes, desde a equipe técnica até os atores sociais que prestaram os depoimentos; e life-storytelling, que consiste na proposta de não fazer perguntas aos participantes que estão sendo gravados, deixando-os livres para se articular da maneira que sentirem mais à vontade. Por ser um processo doloroso, essa retomada aos locais e a exploração de traumas, o projeto ofereceu a cada participante uma sessão com psicólogo após os depoimentos, mas nenhuma das 175 pessoas fizeram a terapia. Hoje o Prisons Memory Archive está sendo disponibilizado online, pouco a pouco, e logo será possível acessar todas as gravações no site e os usuários poderão usá-los para suas próprias produções.

Para melhor compreensão da obra é necessário antes refletir a respeito do contexto histórico da Irlanda do Norte. De forma resumida, os conflitos entre a Irlanda e o Reino Unido, como é sabido, é antigo e se desenrolou até bem recentemente. A Irlanda lutou por sua autonomia e reconhecimento desde 1800, um conflito que envolve não só aspectos políticos, econômicos e sociais, mas também religiosos (católicos vs. protestantes). Durante a dinastia Tudor foi estimulada a propagação da cultura religiosa ao norte da Irlanda (região de Ulster), colonizada por ingleses, logo protestantes. Os irlandeses, de origem católica, já insatisfeitos – há muito tempo, diga-se de passagem – com a interferência inglesa no país, conseguiram em 1921, após uma série de rebeliões, o acordo que reconheceria a Irlanda como Estado Livre Irlandês, com exceção da Irlanda do Norte, que continuaria sob total domínio inglês. Já em 1937, é declarada a nova Constituição que dava o fim ao domínio inglês na Irlanda, e em 1948 se tornou oficialmente uma república. Pulando um pouco na linha do tempo, entre 1960 e 1990 aconteceram os chamados The Troubles, mais uma sucessão de conflitos políticos, onde os irlandeses foram presos e torturados arbitrariamente pelos britânicos, o que resultou na morte de 3.500 pessoas e mais de 40.000 feridas. As prisões de Maze e Long Kesh detiveram milhares de prisioneiros políticos desde 1971 até 2000, quando foi fechada.

We Were There
We Were There (Reprodução)

We Were There apresenta sua narrativa documental sob uma perspectiva singular, justamente ao retratar mulheres esquecidas e que tiveram participação ativa durante as prisões, seja como funcionárias da instituição, ou como mães, irmãs, esposas. Mulheres que passaram a viver uma rotina de idas e vindas até a prisão, levando mensagens e itens escondidos na boca ou na vagina para serem repassados aos prisioneiros. Ao problematizar o ponto de vista dentro de uma prisão masculina, o documentário oferece um protagonismo a personagens de uma história que, usualmente, não seria revelada. São histórias de dor, angústia, anos vivendo uma situação tão enclausurante quanto o de se estar literalmente aprisionado.

Algumas mulheres contam que passaram 17 anos nesta rotina, sendo submetidas a tratamentos rudes e desrespeitosos por parte dos oficiais da prisão, passando por revistas íntimas em determinadas visitas, tendo seus psicológicos esmagados e seus emocionais divididos entre cuidas da família e atender aos pedidos dos prisioneiros. Em contrapartida, o medo na fala de outras participantes que viveram o lado oposto, como funcionárias ou parentes de oficiais da prisão, o sentimento imanente de ter sua vida destruída, de ter que esconder armas em casa para os filhos não acharem ou não saber se no outro dia a casa estaria de pé, já que havia chance de acontecer ataques do grupo paramilitar irlandês a quem, de forma direta ou indireta, apoiava a opressão britânica no país.

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Há também a relação entre as memórias de We Were There e outras obras, documentais e ficcionais. Como mencionado por Cahal McLaughlin no debate após a sessão no CINUSP, é contrastante a dinâmica feminina experienciada no documentário We Were There e outra obra documental do mesmo diretor, e que também faz parte do projeto Prisons Memory Archive, Armagh Stories: Voices From The Gaol (2015), que explora da mesma maneira experiências de funcionárixs, prisioneirxs (alguns homens também ficaram em Armagh Gaol, apesar dela ser majoritariamente feminina), doutores, oficiais da prisão etc. Enquanto no documentário sobre a prisão feminina desvalava tensões entre as mulheres, em We Were There percebemos uma espécie de união entre elas, o ato de desocultar do passado e reconhecer na outra histórias similares, ver que não se estava sozinha, tudo isso contribuiu para uma percepção mais harmoniosa entre as mulheres nos depoimentos sobre Maze e Long Kesh.

Hunger (Reprodução)

Outro importante comparativo acontece entre este documentário e a obra de Steve McQueen, “Hunger” (2008), que retrata as condições internas dos presos de Maze. Focando no ano de 1981, ano que houveram greves de fome, o que ocasionou na morte do líder do protesto, Bobby Sands (Michael Fassbender), importante militante irlandês do Provisional Irish Republican Army (Provisional IRA). A relação entre o We Were There e “Hunger” se apresenta na fala de uma mãe que – ao estar em um corredor retratado em “Hunger”, onde soldados esperavam os prisioneiros com cacetes num estilo corredor polonês -, exprime a dor de imaginar seu filho passando por tal situação. Uma cena estática em plano médio, uma fala tremida e uma dor no peito do espectador, é a transformação do discurso em um sentimento de quem não viveu a coisa em si mas sente, também, as marcas violentas da opressão e do abuso até hoje.

O documentário traz os depoimentos intercalados com planos da prisão vazia e abandonada. A oposição entre as cenas das mulheres revelando suas dores e o vazio dos prédios, a natureza tomando conta das instalações, esse jogo de cenas se transforma em uma mensagem poderosa que demonstrar a vivacidade de existências que parecem ter sido silenciadas. O vazio e o silêncio, em uma narrativa carregada de história, por vezes expõe um lado que nenhuma palavra preencheria.

We Were There é um filme que explora uma perspectiva de representação feminina pouquíssimo explorada pela mídia, e apesar de parecer cinematograficamente simples (em termos de linguagem), é uma peça eficiente e inteligente ao se utilizar dessa simplicidade para evidenciar um trauma vivo na Irlanda do Norte.

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Publicitária, mestranda em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP, feminista, apaixonada por arte e vivendo um caso particular de amor com o cinema.
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