O Estranho que Nós Amamos: quanta diferença faz uma diretora mulher para uma história?

O Estranho que Nós Amamos: quanta diferença faz uma diretora mulher para uma história?

Acaba de ser lançado em cinemas brasileiros o novo filme da cineasta Sofia Coppola, O Estranho que Nós Amamos (no original, The Beguiled). Em maio deste ano, a diretora americana venceu com seu filme o prêmio de melhor direção no Festival de Cinema de Cannes, tornando-se a segunda mulher na história do festival a ganhar nessa categoria.

Porém, O Estranho que Nós Amamos, de Coppola, não é uma história inédita, mas sim uma readaptação (ou melhor, uma reinterpretação) do filme epônimo de Don Siegel, produzido em 1971 (que em si foi uma adaptação de um livro por Thomas Cullinan).

E isso nos leva à pergunta: Quanta diferença faz uma diretora mulher para uma história? (spoiler: faz toda a diferença!)

A história de O Estranho que Nós Amamos 

O Estranho que Nós Amamos se passa no final da Guerra Civil Americana e conta a história de um grupo de mulheres em um internato feminino confederado que acolhem um soldado inimigo gravemente ferido.

A chegada do novo hóspede nessa casa de mulheres isoladas do mundo externo e do conflito que as rodeia, inspira a curiosidade das anfitriãs por esta nova presença masculina em suas vidas, criando tensões e rivalidades dentro do internato, junto ao medo constante de serem perseguidas pela traição de ter acolhido um combatente inimigo.

O Estranho que Nós Amamos

Usufruindo-se da suas afeições, o soldado encanta e seduz as mulheres ao seu redor para garantir sua estadia e sua proteção do exército confederado (estar “Beguiled” em inglês, na verdade até significa estar encantada ou iludida com a farsa de alguém sem perceber). Porém, a história atinge uma virada inesperada, tomando um tom sinistro, quando as expectativas e as intenções dos personagens entram em conflito.

O olhar feminino de Sofia Coppola

A diferença entre a perspectiva masculina e feminina nas artes é uma questão que tem sido debatida desde os anos 70, quando historiadores das artes começaram a analisar o modo em que pintores homens frequentemente representavam mulheres como objetos passivos e sexuais – musas para serem olhadas e exploradas por sua doçura, beleza e formas curvadas – e em que pintoras mulheres, como Mary Cassatt, representavam mulheres em suas obras como sujeitos ativos na sociedade.

O cinema, que pode ser dito uma evolução da cultura estética e visual das artes plásticas, também gradualmente estabeleceu um padrão representativo particularmente parcial à visão masculina. Em 1975, a acadêmica Laura Mulvey apresentou a ideia de que os filmes clássicos hollywoodianos estimulam o(a) espectador(a) a se identificar com o sujeito masculino ativo, e a admirar e desejar a figura passiva e sexualizada da mulher. Ela nomeou o fenômeno o “olhar masculino”.

No filme original de Siegel, a história é contada completamente através dos olhos do soldado ferido. Em sua versão, as mulheres são representadas principalmente como pessoas sexualmente frustradas, repletas de ciúmes e sentimentos de vingança.

Após ter visto essa interpretação da história, Coppola decidiu mostrá-la através o olhar das mulheres na pensão, dando aos seus personagens mais profundidade e transformando a atmosfera original de “histeria feminina” em um retrato pleno de sutilezas. Desta maneira, Coppola aborda em seu filme temas da condição feminina, o desejo da mulher, e interações e jogos de poder entre homens e mulheres, assim como entre mulheres e mulheres.

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Antes de proceder com a análise, é necessário clarificar que a perspectiva do “olhar” na arte não é determinada pelo sexo do autor, mas sim uma escolha estética. Em outras palavras, não é porque uma diretora é mulher que ela necessariamente irá ou terá que contar uma história com o olhar feminino.

O “olhar feminino” não é uma característica sinônimo com a “execução feminina”, mas é o conjunto de escolhas técnicas e narrativas para enfatizar a perspectiva da personagem feminina. Ou seja, uma mulher pode também narrar filmes através do olhar masculino, assim como até um diretor homem poderia teoricamente usar o “olhar feminino”. Porém, claro que uma mulher terá mais facilidade e sensibilidade para fazer escolhas que retratem essa perspectiva narrativa.

As escolhas técnicas nos dizem muito sobre o olhar e a perspectiva de um filme. Siegel exemplifica muito bem através de suas escolhas artísticas a perspectiva masculina da história. Na versão de 1971, o corpo das mulheres são sensualizados e explorados através os olhos do hóspede.

O Estranho que Nós Amamos (1976), Don Siegel.

Nos enquadramentos, mesmo que o soldado estivesse ferido e deitado na cama e tenha uma mulher de pé ao seu lado cuidando dele, os planos foram filmados de um modo em que a mulher e o homem aparecessem quase no mesmo nível.

Na interpretação de Coppola, por outro lado, os planos geralmente mostravam uma distância entre o personagem masculino e feminino, mostrando uma relação de poder onde o soldado esta completamente sob os cuidados das mulheres e sujeito às escolhas delas.

Coppola também usa muito o close-up para mostrar com intimidade as expressões e emoções de suas personagens, focando muito em seus olhares entre elas. Talvez esse seja o ponto mais impressionante da obra, o medo em que Coppola utiliza a comunicação das mulheres através de olhares, gestos e sutilezas no tom da voz, mostrando um estilo de comunicação distintivamente feminino.

O corpo masculino também é explorado de uma forma inédita pela câmera. Suas formas são isoladas e sensualizadas, da maneira em qual o corpo feminino geralmente é explorado no cinema. Coppola transmite dessa maneira o desejo feminino, pelos olhos dessas mulheres que vivem isoladas de interações com pessoas do sexo oposto. E também, desperta a curiosidade e admiração pelo corpo masculino, de uma forma nova.

O Estranho que Nós Amamos
O Estranho que Nós Amamos (2017), Sofia Coppola

O corpo do homem é geralmente representado em sua força e virilidade, porém em The Beguiled, temos o corpo de um homem enfraquecido por suas feridas e completamente a mercê das mulheres que o rodeiam, e então o corpo do homem é explorado em sua vulnerabilidade e sensualidade.

Tratando o tema desta forma sutil, Sofia Coppola consegue também transformar a imagem refletida na primeira versão de que as mulheres são loucas e manipulativas. Ela mostra os desejos delas como uma coisa natural e humana.

Um homem no mundo das mulheres, não só mulheres no mundo dos homens

Uma diferença interessante entre as duas versões dessa mesma história em O Estranho que Nós Amamos é a inversão do contexto. Na versão de Don Siegel, as mulheres existem dentro de um contexto carregado de masculinidade, interagindo com mais frequência com os soldados que rodeiam o internato. Existe também uma grande tensão predatória, com muitas alusões à agressividade sexual e o perigo de assédio e estupro.

Porém, na versão de Coppola, a diretora cria o mundo distintivamente feminino e de certa forma completamente a parte do conflito externo e os homens ao redor. Em uma entrevista para o site Bustle, Sofia Coppola disse que sua intenção era mostrar o ambiente feminino e o modo em que a “intrusão” deste soldado no mundo delas afeta a dinâmica deste ambiente. De certa forma também, Coppola muda o tom da obra do medo do “outro”, a uma curiosidade intrigante pelo “outro”.

O Estranho que Nós Amamos (2017), Sofia Coppola

Coppola também mostra através as três personagens principais, interpretadas muito bem por Nicole Kidman, Kristen Dunst e Elle Fanning, três gerações de mulheres: uma mais velha, a matriarca, forte e reservada; uma jovem adulta, que sonha de algo além do confinamento do internato; e uma adolescente, que representa a emancipação sexual feminina.

Desenvolvendo essas três personagens, a cineasta cria retratos femininos mais complexos e consegue projetar as carências de cada mulher sob o personagem do homem, porque ela nunca revela a perspectiva dele e suas verdadeiras intenções com cada mulher.

No filme de Siegel, por outro lado, a intenção e a história do soldado são mostradas explicitamente através de flashbacks, o que dá um poder manipulativo mais forte ao personagem masculino. Siegel também cria personagens femininos quase estáticas, com somente dois estados emocionais: desejo sexual, e raiva ciumenta.

O foco feminino de Coppola, porém, nos traz um leque emotivo mais colorido, aonde presenciamos emoções diversas vivenciadas pelas protagonistas, como a curiosidade, provocação, entusiasmo, frustração, decepção, solidão, e encanto.

O Estranho que Nós Amamos
O Estranho que Nós Amamos (2017), Sofia Coppola

Um remake que vale a pena

Hollywood está com uma mania nos últimos anos de não investir em histórias originais e somente optar por “remakes” (regravações de filmes que já existem). Porém, é interessante de ver este caso, onde a história foi refeita para explorar uma mesma situação por uma lente feminina, e quanto pode ser acrescentado à personagens mulheres através das decisões artísticas feitas pela diretora.

Mesmo assim, muito ainda pode ser feito para melhorar a representatividade no cinema. Mesmo a obra de Coppola foi criticada por apagar as mulheres negras, na época escravas, da história. A subversão do olhar masculino com o feminino já é um passo à frente muito interessante, mas é importante que a visão não seja somente construída para a representação da experiência da mulher branca.

Não só queremos o “olhar feminino”, mas queremos também os “olhares” femininos de todas as cores e classes sociais, com todas as suas diversidades e pontos de vista!

Fontes:

  • Mulvey, Laura. (1991). “Prazer visual e cinema narrativo (1975)”. In: XAVIER, I. (org.).

Escrito por:

Cineasta aspirante, feminista e cidadã do mundo. Julia é Formada em Mídia e Comunicação na Goldsmiths University em Londres e mestranda em Gerenciamento de Mídias na Universidade de Lugano, Suíça.
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