Você com certeza já viu alguma obra com uma personagem Nascida Sexy Ontem. Em muitos filmes, principalmente de ficção científica, é comum encontrar uma personagem feminina com características muito peculiares: altamente hábil em algumas atividades, geralmente no combate físico e na operação de sistemas, mas com a ingenuidade e comportamento de uma criança, apesar de possuir um corpo adulto. Essa mulher pode ser um alien, uma criatura mística (como sereias e fadas), ou um robô projetado para cumprir alguma missão.
Por ser um “outro”, alheia ao mundo dos humanos, a personagem desconhece normas sociais e acaba andando pelada por aí ou se despindo na frente dos outros sem nenhum pudor, pois desconhece os tabus da sociedade. Ela também se mete em enrascadas ou faz trapalhadas por onde passa. Isso, porém, é apresentado na história como uma característica encantadora, que faz dessa mulher uma pessoa sexy, altamente desejável para o protagonista: um homem comum que a encontra pelo caminho.
Esse homem terá o papel de guiá-la e ensiná-la sobre como o mundo funciona, dando a oportunidade para que ele faça o que os homens mais gostam: “homexplicar” tudo a uma mulher (esta é uma tradução livre do termo em inglês: mansplaining). Por ser um dos poucos ou o único homem que essa mulher tem a chance de conhecer, ela acaba achando que ele é o máximo, apesar de muitas vezes o cara ser tremendamente ordinário. Invariavelmente, ela acaba se tornando seu interesse romântico.
Podemos encontrar exemplos de personagens dessas em muitos filmes de ficção científica, animes japoneses, alguns contos de fadas, e de vez em quando em alguns outros gêneros. Jonathan McIntosh (que trabalha com a crítica Anita Sarkeesian, do Feminist Frequency) criou o termo “Nascida Sexy Ontem” (tradução do inglês: Born Sexy Yesterday) para se referir a esse tipo de personagem. Em seu canal do YouTube, ele analisa em profundidade esse tropo e aponta os problemas e consequências da prevalência dele nos filmes de ficção científica.
Jonathan aponta a relação entre a fantasia masculina de controle e a inserção dessas personagens inocentes e infantis nas narrativas. Por não ter experiência nem conhecimento sobre o mundo, a mulher depende totalmente do homem para guiá-la, criando uma relação assimétrica de poder. Sendo assim, ela não irá contestá-lo, compará-lo a outros, ou saber que existe coisa melhor lá fora. Uma pessoa inocente e ingênua é facilmente manipulável e controlável, mantendo o inseguro homem em sua zona de conforto. É a fantasia da mulher ideal: uma que o idolatre e o ame sem fazer os questionamentos e exigências que uma mulher experiente faria.
Não é surpreendente que o inverso deste tropo seja raro de encontrar. Filmes que mostram homens adultos com atitudes infantis geralmente usam essa característica como fonte de humor. As parceiras românticas desses homens costumam se apaixonar por eles apesar da infantilidade, e não por causa dela. Kevin, interpretado por Chris Hemsworth em “Caça-Fantasmas“, é um homem atraente, mas burro. Suas trapalhadas funcionam como piada no filme, e as protagonistas se sentem atraídas apesar de toda a inaptidão intelectual que ele demonstra, e não por causa dela.
De fato, um homem adulto do qual a mulher tem que cuidar parece algo totalmente não-atraente, sendo uma extensão do papel de mãe. Um dos poucos filmes que fogem a isso e mostram um homem inocente como objeto sexual é “George – O Rei da Floresta”, com Brendan Fraser andando quase sempre de tanguinha e mostrando o corpo por ser ingênuo.
Já os homens, que em sua maioria não assumem essa responsabilidade paternal no mundo real, veem numa pessoa inexperiente alguém fácil de seduzir e controlar. Não é por acaso que temos em nosso mundo ainda patriarcal um número muito maior de casais onde o homem é mais velho que a mulher, e pouco do contrário. Não é à toa que a preferência por “novinhas” é tão cantada e celebrada na cultura popular. Não é coincidência que as atrizes de Hollywood só consigam papeis até completarem 30 e poucos anos, e depois caiam no esquecimento. E, claro, não é por acaso que os congressos, gerências e todo tipo de posto de comando são ocupados na imensa maioria das vezes por homens mais velhos.
A inserção de mulheres Nascidas Sexy Ontem nas narrativas exerce o propósito de servir ao homem protagonista: sexualmente, emocionalmente, e às vezes em tarefas práticas, como as robôs especialmente criadas para determinadas funções.
No mundo real, assistentes eletrônicas são criadas com vozes femininas especialmente para emular o papel esperado do gênero feminino: o de servidão e assistência. Assim como mulheres e meninas fazem a maior parte do trabalho emocional e doméstico no mundo, na maioria das vezes não-remunerado, as assistentes virtuais como Siri, Cortana, Alexa, e várias outras, são programadas para se assemelhar a uma assistente mulher.
No filme “Ela“, Samantha é uma assistente eletrônica que faz tudo para seu “dono”, inclusive trabalhos emocionais e sexuais. O filme se preocupa menos com a discussão ética sobre a exploração das máquinas sentientes do que com a frustração romântica de seu protagonista.
Filmes sobre o medo das máquinas ganharem independência e se livrarem de seus criadores humanos são feitos desde o começo da história do cinema. E não é coincidência que, tanto na vida real quanto na ficção, essas máquinas sejam desenhadas para se assemelhar a mulheres. Parafraseando a escritora Laurie Penny, que falou sobre o assunto: os homens ainda não decidiram se mulheres são realmente conscientes, e se, assim como as máquinas, é justificável explorá-las ou não. Na dúvida, a exploração continua.
Em filmes como “Ela” e “Blade Runner“, máquinas que se assemelham a humanos ganham independência e buscam liberdade. Em vários dos filmes onde as mulheres Nascidas Sexy Ontem aparecem, entretanto, robôs são criadas para servir ao propósito de cumprir uma missão (por exemplo, derrotar um inimigo) e se tornar a namorada do protagonista. Mas essas mulheres, apesar de vir com a semelhança humana embutida, não vem com o desejo por autonomia. É como se fossem bonecas projetadas especialmente para suprir o desejo sexual e romântico do homem que encontram.
Os comentários que são feitos sobre elas em filmes como “O Quinto Elemento“ e “Tron – O Legado” são coisas como “perfeita”, “inocente e sábia”. Além da forma física, esses comentários também possivelmente se referem à personalidade dócil e não-contestadora, algo perfeito para os homens, que não serão desafiados.
Leia também:
>> Assédio sexual contra mulheres como alívio cômico
>> Mulheres na Geladeira: até quando a morte de mulheres será um mero recurso de roteiro?
>> Crepúsculo dos Deuses: visão genderizada da “loucura de amor”
SUBVERTENDO O TROPO
Um filme em especial trouxe um pouco de alívio ao modificar as expectativas relacionadas a esse tipo de personagem. Em “Mulher-Maravilha“, Diana é uma princesa amazona, que se junta ao soldado Steve Trevor para lutar na Primeira Guerra Mundial. Diana não conhece o mundo fora de sua ilha, onde só havia mulheres, mas leu muitos livros e sabe falar inúmeras línguas. Faz até pouco sentido quando ela chega a Londres e não sabe coisas básicas como o que significa duas pessoas andarem de mãos dadas.
Por causa de sua pouca experiência, Diana acaba ouvindo bastante homexplicação de Steve no começo do filme. Porém, à medida que o tempo passa, Diana aprende o que precisa para navegar aquele mundo, e começa a traçar seus próprios passos, muitas vezes discordando de Steve e fazendo o contrário do que ele lhe diz.
Há um detalhe importante de ser observado também, e que faz toda a diferença: Diana é a protagonista de “Mulher-Maravilha”, ao passo que as Nascidas Sexy Ontem são geralmente coadjuvantes nas histórias dos protagonistas homens. Por ter o papel principal, Diana tem um desenvolvimento e um arco narrativo que não é conferido a essas outras mulheres, fazendo dela uma personagem redonda e interessante.
Imaginem se os filmes realmente mostrassem o trabalho que dá cuidar de uma pessoa ingênua e infantil, tal qual um filho pequeno. Se esses homens tivessem que ensinar às mulheres Nascidas Sexy Ontem como escovar os dentes, se limpar no banheiro, como controlar as emoções, como se comportar em todas as nuances sociais, levar em consulta médica, levar para resolver burocracias…de repente essas personagens não iriam parecer tão sexy assim.
Porque o cuidado na vida real é muito mais do que ensinar duas ou três regras sociais, e impedir a pessoa de se despir em público, depois de dar uma conveniente olhadela. Inclusive, o fato de sexualizar comportamentos infantis torna o tropo da Nascida Sexy Ontem bastante problemático, só não caindo completamente na pedofilia por conferir um corpo adulto a essa mulher infantilizada. Toda a nossa cultura machista também incentiva essa infantilização das mulheres adultas, desde as pressões para remoção de pelos pubianos, até a pornografia com adolescentes, que é um dos termos mais procurados em sites do ramo.
Se (e quando) os homens aceitarem as mulheres como parceiras iguais, dignas dos mesmos direitos, verão que é bastante vantajoso e recompensador ter alguém ao lado por escolha, e não por relações assimétricas de poder, e talvez o tropo da Nascida Sexy Ontem desapareça de vez.