O alívio cômico (comic relief) é um componente de roteiro que aparece em filmes, peças, livros, animes, seriados e artes derivadas, visando abordar cenas de comédia e humor para amenizar a dramaticidade da trama e prender a atenção do espectador com a quebra de ritmo de uma determinada história – considerando que o fluxo constante de um mesmo clima poderia tornar uma obra desinteressante com o passar dos diálogos.
Esse artifício é interessante ao se observar a sua definição, mas na prática encontramos uma situação diferente ao encarar uma indústria que continua dominada por homens: isto é, o alívio cômico é introduzido no roteiro de acordo com o que os escritores homens consideram humor. E o que poderia ser mais engraçado na ótica masculinista do que propor situações degradantes e humilhantes para as mulheres?
No universo dos animes, o alívio cômico é constantemente utilizado como artifício de roteiro na forma de assédio sexual; tratando o ato de tocar mulheres sem consentimento não só como algo normatizado para homens, como também “engraçado”, principalmente em obras voltadas intencionalmente para o público masculino jovem, os shounens. Um dos maiores ícones de assédio sexual sendo interpretado como piada foi o famoso Mestre Kame, de “Dragon Ball”. O mesmo já molestou a personagem Android 18 enquanto ela segurava a filha no colo.
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O assédio é considerado apenas parte da personalidade desses homens, sendo levado nas obras como perfeitamente comum um personagem masculino atacar mulheres, que na maioria das vezes deixam evidente seu desconforto e angústia ao serem tocadas sem consentimento. Entretanto, o sentimento delas enquanto vítimas de assédio não é aprofundado, afinal, a cena nada mais é que humor, e o personagem homem apenas se encaminha para vítimas futuras quando o roteiro precisar de mais comédia.
Segundo a mesma caracterização de homens de meia idade que assediam mulheres, o Jiraiya de “Naruto” também é conhecido não só por tocá-las sem consentimento, mas também espioná-las em momentos íntimos, como o banho, alegando que faz parte da pesquisa para a sua série de livros pornográficos.
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Yu Yu Hakusho, um dos grandes sucessos dos anos 90, traz o assédio como alívio cômico através do protagonista Yusuke Urameshi, que constantemente aparecia em cenas de abuso com seu interesse romântico, Keiko. O que nos traz não somente a normatização do assédio, como também a romantização. Embora Keiko se sentisse desconfortável e irritada em ser tocada, a situação trazia o assédio como reflexo dos sentimentos de Yusuke – que na segunda metade da obra também aparece assediando uma mulher trans.
Mesmo Inuyasha sendo escrito por uma autora mulher, certamente o seu foco no público masculino e a reprodução dessa prática em alívio cômico influenciaram para inserir um personagem assediador na história, o Miroku, que toca inapropriadamente diversas personagens femininas da saga. E assim como aconteceu em Yu Yu Hakusho, Miroku se envolve romanticamente com uma das garotas que ele assediou.
O assédio contra mulheres como alívio cômico em animes não suavizou após os anos 1990 e o início dos anos 2000, ainda aparecendo em obras mais recentes e que estão ganhando um público cada vez maior, como My Hero Academia, um dos novos pilares da revista Shounen Jump. Na obra, o personagem Mineta está sempre envolvido nas cenas principais em situações de assédio contra as garotas da sua sala de aula.
Mesmo com as reclamações e desagrado das jovens meninas, as cenas se repetem sempre em contextos parecidos: Mineta querendo tocá-las sem consentimento quando estiverem distraídas. Além do personagem costumeiramente ter em seus diálogos comentários desnecessários sobre partes dos corpos das personagens femininas, objetificando-as.
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Araragi, o protagonista de Monogatari Series, estende o assédio para crianças, com a brincadeira de “tocá-las de surpresa nas partes íntimas”. O personagem é um adolescente que aparece em cenas de assédio com garotas na idade colegial, fazendo referência ao lolicon. Araragi também já surgiu assediando suas irmãs menores em uma das temporadas da série que é um grande sucesso no Japão.
Apesar das críticas japonesas que Dragon Ball Super recebeu este ano devido às cenas de assédio do Mestre Kame, utilizar desse componente como alívio cômico ainda aparece como algo frequente mesmo nos títulos mais recentes e de maior destaque na mídia.
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O Japanese Broadcasting Ethics and Program Improvement Organization pontuou as cenas do Mestre Kame como extremamente inapropriadas e irrelevantes para a história, mostrando o homem mais velho tocando uma garota mais jovem contra sua vontade.
Mesmo que as mudanças não ocorram imediatamente, é importante iniciar esse debate e mostrar o descontentamento com a normatização do assédio, principalmente quando ocorre com frequência em obras destinadas ao público infantil em horário de classificação livre.