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No final do mês de maio, foi ao ar o último episódio da terceira temporada de Killing Eve. A série, que já se consagrou como uma das preferidas do público no gênero de espionagem, continua inovando mesmo nos detalhes. As personagens queridas e a representatividade feminina forte são aspectos marcantes aprofundados a cada nova temporada.
Além da presença feminina dentro das telas, por trás das câmeras a série, criada por Phoebe Waller-Bridge, já contou com três showrunners diferentes, todas mulheres. A terceira temporada foi assumida por Suzanne Heathcote.
AVISO: Spoilers a seguir
Com novos personagens e um enredo centrado em mistérios, a terceira temporada expande um pouco o universo da série. Embora Eve Polastri (Sandra Oh) e Villanelle (Jodie Comer) ainda sejam o arco mais interessante da história, a espectadora se vê envolvida em uma trama complexa, onde a perseguição de gato e rato tão marcante agora parece uma constante na vida da maioria dos personagens.
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Jodie Comer em Killing Eve. (Créditos: Laura Radford/BBCAmerica/Sid Gentle)
No centro dos conflitos da terceira temporada estão Carolyn Martens (Fiona Shaw) e Konstantin Vasiliev (Kim Bodnia). Ambos utilizando seus recursos e atuando de forma misteriosa, de modo que o público nunca tem certeza sobre quem está ganhando o jogo. Há sempre uma parte obscura da trama, que impulsiona tanto a espectadora quanto as personagens a irem mais fundo nos acontecimentos da história.
Entre os rostos novos estão Geraldine (Gemma Whelan), a filha de Carolyn, e Dasha (Harriet Walter), a mentora de Villanelle. A dinâmica entre Dasha e Villanelle foi particularmente interessante, as duas assassinas funcionaram muito bem juntas.
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Harriet Walter em Killing Eve (Créditos: Laura Radford/BBCAmerica/Sid Gentle)
A filha de Konstantin, Irina (Yuli Lagodinsky), retorna para mais aparições na temporada. A menina, que é extremamente inteligente, acaba revelando que seguiu alguns conselhos de Villanelle ao atropelar o padrasto.
A terceira temporada busca focar em outros personagens além de Villanelle e Eve. Embora essa expansão do universo seja bem vinda, ela ocorre com certa dificuldade. Por vezes a trama da história parece um pouco confusa, e o final da temporada deixa uma grande incógnita para o futuro tanto da série quanto das protagonistas.
Entretanto, nada disso afeta a qualidade da experiência. O subtexto é uma parte muito importante de Killing Eve, e a interpretação das entrelinhas do relacionamento entre Villanelle e Eve pode muito bem ficar aberta para a decisão da espectadora.
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Apesar de abordar um pouco mais os segredos envolvendo The Twelve, a temporada termina novamente com mais perguntas do que respostas. Se no começo da série a organização parecia um mistério que Eve iria gradativamente revelar, após três temporadas fica claro que ainda existe muito mais a ser descoberto do que o público sabe. A própria Villanelle parece saber tão pouco quanto a espectadora, visto que foi dispensada por Carolyn na ‘’entrevista de emprego’’ por não possuir nenhuma informação relevante.
Se as incógnitas da série deixam no ar uma tensão e uma pergunta se tudo está sob controle, o texto sagaz, a direção de arte, figurino, atuações impecáveis e todos os demais elementos que compõe Killing Eve e a tornam uma série magistral podem tranquilizar o público ー a série não decai em qualidade, pelo contrário, só progride.
Desmistificação das mulheres assassinas
‘’Normalmente, mulheres são vistas como seres unicamente capazes de cometer homicídios reativos ー homicídios em autodefesa, uma explosão de amor, um desequilíbrio de hormônios, um momento de histeria ー, e não homicídios instrumentais, que podem ser maturados, calculados e executados a sangue frio.’’
– Tori Telfer
Na introdução do livro “Lady Killers“, a autora Tori Telfer aborda desumanização da agressão feminina através da sexualização ou da ridicularização, numa tentativa de fazer com que as mulheres assassinas pareçam menos mulheres e mais mitos.
O desconforto da sociedade em desvencilhar a imagem feminina dos estereótipos de gentileza, doçura e amabilidade fez com que as executoras de terríveis atos ficassem na sombra de um arquétipo ー elas são vampiras sensuais, bruxas nojentas, mas nunca seres humanos, cuja brutalidade carrega inerentes características humanas.
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Assim, as assassinas e vilãs da ficção quase nunca escapam de uma representação condicionada aos estereótipos. Ao analisar a forma como as personagens são construídas em Killing Eve, é possível perceber que esse padrão é rompido. Desde o começo da série, Villanelle foi apresentada como uma mulher inteligente, irônica e habilidosa em seus homicídios, mas sempre uma mulher, nunca uma fábula de outro mundo.
A terceira temporada da série aprofunda essa humanização de forma positiva e até inesperada. Se antes Villanelle parecia estar afundando no mais absoluto tédio, matando pessoas para matar o tempo, agora os acontecimentos impactam de alguma forma o seu emocional. No fundo do personagem que Villanelle é, a verdadeira Oksana estremece. Mais que um codinome, a terceira temporada deixa claro que ‘’Villanelle’’ foi uma barreira criada para enfrentar o passado sombrio da personagem.
‘’(…) Ela era Oksana, ela tornou a si própria em Villanelle, e ela realmente precisa que Oksana seja destruída, de alguma forma, para se certificar de que está no controle dela mesma.’’
– Suzanne Heathcote sobre Villanelle

Jodie Comer em Killing Eve. (Créditos: Des Willie)
O episódio 5, “Are You from Pinner?”, é decisivo para mudar a forma como o público vê a personagem. A relação de Villanelle com sua mãe, o abandono que ela sofreu e a discussão que a leva para o assassinato a abalaram como nunca antes. A construção de Villanelle é muito mais complexa e profunda do que apenas uma assassina fria e insensível.
Paralelamente, Eve explora mais do prazer que encontra na violência. Após ter encarado esse extremo no fim da segunda temporada, a personagem volta a matar, dessa vez, não por falta de escolha, mas por vingança.
Não há dúvidas, entretanto, da capacidade de Eve de sentir, amar ou sofrer. A personagem não trilha um caminho em direção à frieza e a apatia, mas ao caos. E Villanelle é concretização desse caos. Se na temporada anterior ela manipulava Eve para levá-la ao assassinato, ela agora aparece como o final inevitável do caminho que a própria Eve escolheu seguir.
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Sandra Oh e Jodie Comer em Killing Eve. (Imagem: Reprodução)
Partindo de Villanelle a Eve, de Dasha a Irina, a série mostra como a violência feminina não tem um estereótipo, um padrão, não está condicionada à idade ou aparência física. As assassinas de Killing Eve podem ser meticulosas ou impulsivas, criativas ou pragmáticas. Não necessariamente agentes secretas, mas uma mulher com um instinto voraz e sombrio pode estar bem à vista, no banco da escola, no vestiário de um ginásio ou em um casamento difícil.
A representação da maternidade em Killing Eve
Outro aspecto da representação feminina desconstruído em Killing Eve é a maternidade, tema recorrente na terceira temporada da série. As relações entre mães e filhos são muito importantes no desenrolar da história, e acontecem de maneiras inesperadas.
Se o público está acostumado a ver mães amorosas, cuidadosas e carinhosas, Carolyn não tem nada a ver com isso. Sua relação com sua filha é bastante distante, e não por responsabilidade da jovem. Pelo contrário, Geraldine é extremamente empática, sentimental e afetuosa, características que não combinam nem um pouco com sua mãe.

Fiona Shaw e Gemma Whelan em Killing Eve. (Créditos: Sid Gentle Films/BBC America)
Após a morte de seu filho Kenny (Sean Delaney), Carolyn parece surpreendentemente insensível. Entretanto, em sua solidão ela sofre muito. Ela ama seus filhos, mas não sabe e nem tem tempo para se preocupar em demonstrar isso. Fazendo o que pode para proteger Geraldine (tanto das consequências de seu trabalho, quanto da convivência complicada), ela mostra amor à sua maneira.
Carolyn não quer conversar sobre sentimentos, não que abraçar e nem ser compreendida por sua filha. Ela lida com suas dores sozinha, de forma nem um pouco saudável, e a melhor forma de proteger Geraldine desse sofrimento é mantendo-a afastada.
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Se Carolyn é puramente distante, mas ainda ama seus filhos, Villanelle enfrenta uma situação totalmente diferente com sua mãe. Tão cruel quanto a filha, Tatiana (Evgenia Dodina), esconde-se atrás da imagem de uma mãe amorosa. Entretanto, quando ninguém está olhando, ela revela uma crueldade inesperada.

Evgenia Dodina e Jodie Comer na terceira temporada de Killing Eve. (Imagem: BBC America)
Nenhum personagem parece duvidar da bondade de Tatiana, ou ao menos não parecem se importar. Somente Villanelle consegue ver a maldade por trás de suas atitudes. Ela foi profundamente abalada por essa relação conturbada com sua mãe, e seu meio-irmão mais novo, Boris (Temirlan Blaev), está em uma situação bem pior.
Villanelle simpatiza com o menino, que é bastante gentil e sensível. Ela vê o futuro terrível que ele pode enfrentar por conta dessa infância complicada. Sendo culpabilizado pela mãe por coisas pequenas, ouvindo comentários muito cruéis, ele se machuca por não conseguir lidar com a situação.
Quando sozinhas, Tatiana mostra sua verdadeira face à filha, mandando que ela vá embora. Ela não reconhece verbalmente sua maldade, mas também não se importa com as angústias de Villanelle. A rejeição culmina no assassinato da própria mãe, e em uma cadeia de aflições para a personagem.
Villanelle parte do lar de onde foi rejeitada, com a nostalgia sendo transformada em melancolia, após revelar uma camada mais profunda de si própria.
Villanelle e Eve: da rivalidade ao apego
Embora na terceira temporada da série, Villanelle e Eve não apareçam juntas por tanto tempo como na temporada anterior, os momentos que têm são muito importantes para o desenvolvimento de sua relação.
O primeiro encontro das duas na temporada é um embate cujo desenrolar é bastante típico das personagens. O antagonismo entre elas não é uma rivalidade feminina comum, uma competição entre mulheres, é apenas um impulso quase natural, fruto da dualidade substancial de sua relação. A briga no ônibus que leva a um beijo em meio aos golpes é executada de forma singular. Como a própria Eve afirma, é um romantismo que apenas as duas entendem.
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Jodie Comer e Sandra Oh em Killing Eve. (Imagem: reprodução)
Posteriormente, elas se reencontram na temporada, em um episódio que mostra que confiam mais uma na outra. A sua forma, a relação entre as personagens parece ter amadurecido. Como uma dança que ambas conduzem, elas estão prontas para consumirem uma a outra.
Se no fim da segunda temporada, Villanelle atira em Eve em um ato que parece dizer ‘’seja minha ou morra’’, agora ela está pronta para deixar ir. Ela dá a opção, ambas podem ir embora e não olharem mais para trás. Eve não é uma marionete cujas cordas são seguradas por Villanelle, ela é uma mulher livre, e que encontra cada vez mais sua própria emancipação. Ela escolhe olhar para trás, e viver o futuro que há para as duas ー seja ele qual for.