Manifesto por vilãs que não sejam loucas

Manifesto por vilãs que não sejam loucas

Particularmente, sempre achei problemática a personagem da mulher vilã. Eu sentia um certo desconforto quando assistia filmes e séries em que havia o confronto de um herói homem e uma vilã mulher. Há uma série de problemas em colocar mulheres como opositoras de figuras masculinas, principalmente quando o desfecho deste conflito se resume a estereótipos que tentamos desconstruir. Entre eles, é notável a frequência com que mulheres vilãs possuem o estereótipo de loucas e há algumas lições que podem ser aprendidas com isso.

Aviso: O texto a seguir contém spoilers do final de “Game of Thrones”, “Thor: Ragnarok” e “Hunger Games”

A cabeça da Medusa

O desfecho de “Game of Thrones” dividiu opiniões ao transformar Daenerys (Emilia Clarke) em vilã de um episódio para outro em vez de desenvolver seu declínio ao longo de toda uma temporada. A discussão sobre se esse desenvolvimento foi bem construído ou não e de outros problemas de representatividade feminina em “Game of Thrones” não são o foco aqui. Para isso, sugiro os textos da Athena Bastos (aqui do Delirum) e da Clarice França (Nebula).

Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) em Game of Thrones
Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) (Foto: reprodução)

Porém, o caso de Daenerys é emblemático por ela ter sido durante toda a série um ícone de liderança e que se encerra tragicamente com sua transformação de vítima em vilã. E mais: Daenerys não usava sua feminilidade como arma para conseguir poder, como assistimos Cersei (Lena Headey) e Margaery Tyrell (Natalie Dormer) fazer, ou resistia em silencio à violência a era submetida, como Sansa (Sophie Turner).

Além de dragões e exércitos, Daenerys tinha ainda uma motivação palpável: a reivindicação do trono de Westeros, que ela acreditava ser seu por direito. Mesmo que ela herdasse a loucura hereditária dos Targaryen, sua queda na temporada final foi apressada e o risco disso é reforçar estereótipos associados a mulheres, como o da mulher que não sabe lidar com poder.

Em seu livro Mulheres e Poder: Um Manifesto“, a classicista inglesa Mary Beard fala do uso recorrente da figura mitológica da Medusa para deslegitimar o poder feminino na cultura Ocidental. No mito grego, Medusa era uma mulher extremamente bela e que é transformada em monstro após ser violentada por Poseidon (sim, Medusa é quem foi punida pela deusa Atena…). Ao ser transformada em monstro, Medusa passa de vítima a vilã, já que agora possui um poder destrutivo. Parece familiar demais, não?

Imagem: divulgação/acervo internet

Com essa transformação, Medusa passa a ser a personificação da fúria e essa precisa ser contida para que a ordem seja restabelecida. Segundo Beard, a decapitação de Medusa por Perseu restabelece a ordem de dominância do homem sobre o poder ilegítimo da mulher (inclusive não é só na ficção que essa analogia é feita, já que líderes mundiais, como Dilma Rousseff, Hillary Clinton, Angela Merkel e Theresa May foram grotescamente caricaturadas como Medusa). No caso de Daenerys, vemos mais uma vítima de um enredo milenar.

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O mito da Mulher Louca

Esse argumento da mulher que enlouquece em sua busca por poder reproduz um estereótipo que o feminismo luta para desconstruir na sociedade: o mito da mulher louca. A mulher louca é aquela que ousou subverter a ordem estabelecida e, portanto, está fora do padrão de normalidade. O padrão de normalidade em questão seria, claro, a mulher que aceita seu lugar, longe da esfera de poder. Quantas mulheres não foram chamadas de loucas por priorizar seu trabalho, deixando em segundo plano seus relacionamentos amorosos ou maternidade?

Miranda Priestly (Meryl Streep) em “O Diabo Veste Prada” (GIF: reprodução)

Em “O Diabo veste Prada“, Miranda Priestly (Meryl Streep), a chefe-vilã do filme, é bem-sucedida, mas a que custo? Ela não consegue manter seus casamentos e não possui amigos. O filme parece mostrar que esses aspectos da feminilidade precisam ser sacrificados para que as mulheres ascendam ao poder.

Pequenos progressos

Há, apesar de tudo, alguma boa vontade em inserir personagens vilãs mais complexas e menos estereotipadas em produções. O problema é que as produções cinematográficas são compostas majoritariamente por homens – e enquanto não houver diversidade dentro dos bastidores dessas mídias, haverá menos representatividade.

E há uma audiência interessada em boas vilãs, com motivações interessantes e que não sejam a personificação de algum estereótipo feminino (a madrasta má, a ex-maluca ou a mulher vingativa). Além disso, personagens com motivações que nos fazem questionar momentaneamente se estão de fato erradas são sempre interessantes. Vilãs como Hela (Cate Blanchett), de “Thor: Ragnarok“, e Alma Coin (Julianne Moore), de “Hunger Games” são bons exemplos.

Hela (Cate Blanchett) em “Thor: Ragnarok” (Foto: Marvel Studios/divulgação)

Hela era a Deusa da Morte e primogênita de Odin e quem o ajudou a conquistar os Nove Reinos de Asgard, mas quando sua ambição e seu poderio a tornaram uma ameaça para Odin e para a paz de Asgard, ele a exilou por milênios. Com a morte de Odin, o poder que a aprisionava acabou e Hela então retorna à Asgard para tomar o trono, já que seria a verdadeira herdeira. No filme, Hela é representada como uma excelente guerreira e de poder formidável, como vemos na cena em que ela destrói o Mjölnir. O filme também consegue mostrar com sucesso o conflito de Thor e Hela sem haver uma luta direta entre ambos. Essa escolha é interessante, tendo em vista os altos índices de violência doméstica e violência contra a mulher pelo mundo.

Alma Coin (Julianne Moore) em “Hunger Games: A Esperança – Parte 2” (Foto: Lionsgate/divulgação)

Na trilogia “Hunger Games“, escrito por Suzanne Collins, temos Alma Coin,  a presidente do Distrito 13, onde está a base da resistência contra o poder totalitário da Capital. Coin é inicialmente apresentada como uma líder que busca liberdade ao povo oprimido de Panem. Como espectadores, nós simpatizamos com Coin e sua busca por justiça, pois acompanhamos o sofrimento das pessoas em Panem pelos olhos de Katniss (Jennifer Lawrence). Porém, aos poucos Coin passa a usar Katniss para conquistar apoio e confiança dos cidadãos e conhecemos seus ideais deturpados de justiça e vingança, como quando ela propõe a realização de um Hunger Games simbólico com crianças da Capital.

No desfecho de “A Esperança”, a morte de Coin pelas mãos de Katniss é dramático, mas não problemático como em “Game of Thrones“; isto acontece justamente porque o equilíbrio de poder é restabelecido por uma outra mulher (Katniss) e quem assume como líder da nova Capital é também uma mulher (Paylor). Assim, aplicando a teoria de Beard no contexto de “Hunger Games“, o equilíbrio não é restabelecido por um homem para perpetuar a ordem patriarcal. Curiosamente, Suzanne Collins se inspirou em diversos mitos gregos para escrever “Hunger Games” – e sabidamente deixou as más influências de fora.


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

Bióloga, doutora em Imunologia. Entre um paper e outro, investe seu tempo em games, livros e filmes. Fã de Neil Gaiman, Legend of Zelda, filmes do Studio Ghibli e recomenda podcasts sem ser perguntada.
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