A adaptação de “Game of Thrones“, baseada nos livros homônimos de George R. R. Martin e produzida pela HBO, gerou diversos comentários ao longo de suas oito temporadas – e nem todos eles foram positivos, sobretudo no que concerne à representação feminina. Se por um lado a série produzida por David Benioff e D. B. Weiss foi reconhecida por trazer importantes e impactantes personagens femininas, por outro foi alvo de importantes críticas sobre uma representação misógina das personagens.
Cenas como a do estupro de Sansa levantaram, então, questionamentos sobre o uso da violência contra as mulheres como forma de entretenimento; desse modo, questionou-se em que medida o “empoderamento” utilizado como argumento era real. Afinal, a que e a quem serve o poder colocado nas personagens femininas da série? Mas não apenas isto. É preciso ver também a responsabilidade da série enquanto entretenimento.
Já não é aceitável o uso do argumento da ficção pela ficção, tampouco é aceitável que a indústria do entretenimento ignore os seus impactos na promoção de condutas. Não se pode banalizar a violência e a misoginia sob argumentos rasos de falsos poderes e nem se deve mascarar um discurso padrão de machismo com falsos discursos de “empoderamento” – migalhas ilusórias de histórias que atendem não aos anseios de direitos, poder e voz das mulheres, mas à conservação de uma cultura misógina adaptada às pautas da modernidade. Enfim, por essa razão, faz-se uma análise das principais personagens femininas de “Game of Thrones”.
Arya Stark e o problema do reconhecimento feminino em Game of Thrones
Arya Stark (Maisie Williams) talvez seja uma das melhores personagens femininas de “Game of Thrones”. Isto não significa, contudo, que a série deva ser exaltada pela “representatividade feminina”. Afinal, como se verá, existem graves problemas nessa representatividade. Apesar disso, é preciso reconhecer que o desenvolvimento de Arya é no sentido do reconhecimento de seu poder e capacidade.
Desde os primeiros episódios, a jovem Stark conquista o público. Recusava-se a comportar-se como uma lady – o que num primeiro momento foi motivo para uma rivalidade entre ela e sua irmã Sansa (Sophie Turner), superada posteriormente – e queria ser educada como seus irmãos, Jon Snow (Kit Harrington), Robb (Richard Madden) e Bran (Isaac Hempstead-Wright). Sua rebeldia, então, fez o público simpatizar com ela.
A personagem passou por duros períodos de amadurecimento e também por experiências fortes, como a separação de sua família e os árduos treinamentos a serviço do Deus da Morte. Tudo isto fez com que Arya endurecesse também. Quando matava, por exemplo, Arya parecia muito mais velha do que realmente era.
Arrogância ou reconhecimento: como o mérito feminino é retratado
As críticas à personagem são pequenas em comparação a outras da série e não lhe retiram o mérito. Isto porque a importância de Arya para o término dos conflitos merece e deve ser reconhecida. Suas habilidades foram o que levaram ao fim da batalha contra o Rei da Noite. No entanto, é um pouco decepcionante que a série tenha logo ofuscado isso com a falta de desejo de reconhecimento da personagem, isto porque ainda vivemos em uma cultura que desmerece os feitos femininos e vislumbra a exaltação como arrogância.
Ainda se propaga uma cultura de “humildade feminina”, que contribui, assim, para a diminuição do sucesso de uma mulher. E deve-se lembrar que houve um esforço histórico para apagar as conquistas das mulheres, enquanto se reconheciam as conquistas masculinas sob aspectos de nobreza. Portanto, reconhecer um feito não é arrogância. É, pelo contrário, mostrar que as mulheres podem, sim, se orgulhar daquilo que fizeram.
A polêmica da sexualidade feminina
Outro ponto polêmico envolvendo Arya diz respeito à sua sexualização. “Game of Thrones”, de um modo geral, é bastante questionável por esse aspecto, mas é interessante observar que um dos pontos que mais levantou discussões é sobre o amadurecimento sexual feminino. Ou seja, temas como estupro e nudez feminina para prazer masculino parecem gerar o mesmo desconforto que o desenvolvimento do amadurecimento sexual das mulheres, quando deveriam ser mais discutidos do que o último.
Claramente “Game of Thrones” possui problemas com passagens de tempo. Isto é um fato inegável. A série não soube trabalhar bem os tempos da ficção com o tempo real, então acabou ignorando alguns aspectos da história em face do crescimento dos atores. Afinal, não tinha como mantê-los crianças por oito anos. Contudo, em vez de estabelecer um tempo homogêneo, optou por desenvolver os tempos dos personagens de modos distintos. Desse modo, criou confusão ao deixar o bebê de Gilly (Hannah Murray) eternamente bebê, enquanto Arya chegava aos 18 anos.
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Enfim, independentemente do erro na linha do tempo, fato é que o amadurecimento sexual é algo normal aos seres humanos. A sexualização precoce das mulheres é, sim, um problema verificado diante da cultura do estupro, que, concomitantemente, infantiliza as mulheres, mas também as amadurece antes da hora para atender aos interesses sexuais masculinos. Não foi este, contudo, o caso da Arya, do modo como foi retratado. O que se verifica, na verdade, é um problema do público em reconhecer o erro da linha do tempo e aceitar que a personagem cresceu também na série e passou a ter uma vida sexual.
Sansa Stark e o estupro em Game of Thrones
Apesar do que foi visto acerca da sexualidade de Arya, isto não torna “Game of Thrones” um exemplo de entretenimento. Não, a série, na verdade, errou em muitos momentos e talvez o maior expoente disso seja Sansa Stark. A personagem, inicialmente, era apresentada como bela e fútil. A rivalidade feminina era incentivada no contraste com Arya. Enquanto criticava a irmã, Sansa era adepta de se tornar tudo aquilo que se espera de uma mulher – bela, mãe responsável e dedicada ao lar, atenciosa com um homem ao seu lado em uma romantização forçada das relações conjugais, tudo aquilo que sua mãe Catelyn (Michelle Fairley) era. Enfim, repetia o discurso de ser uma “lady”. Ao mesmo tempo, era duramente criticada por Arya como se fosse fútil, sem uma compreensão de ambas as partes das condições externas que atuavam sobre elas.
Apesar da conciliação entre as irmãs Stark, a série não foi muito além na quebra dos paradigmas e pareceu desenvolver em Sansa uma aceitação apenas porque colocou a personagem em duras situações. Sansa foi, assim, retratada como a bela mulher que se torna um perfeito alvo para a violência masculina. Primeiro com os ataques de Joffrey (Jack Gleeson), também com ameaças de Sandor Clegane (Rory McCann), depois foi obrigada se casar com Tyrion (Peter Dinklage) e foi alvo de investidas de Mindinho (Aidan Gillen), em uma sexualização muito mais forçada que a de Arya, mas que não levantou tanta polêmica, porque se tratava de uma personagem sexualizada desde o início, embora ainda fosse bastante nova.
Estupro como fonte de desenvolvimento feminino
O ápice do retrato de Sansa como a mulher violentada foi nas mãos do sádico Ramsay Snow/Bolton (Iwan Rheon). Obrigada a se casar com ele, sob a justificativa de conseguir Winterfell novamente, Sansa foi estuprada em uma cena difícil de ser vista – e poderia se pensar que “Game of Thrones” traria o tema como uma crítica delicada. Afinal, é preciso tratar o assunto com cuidado, pois desperta gatilhos; além disso, se retratado de forma inadequado, pode banalizar o assunto e transmitir, assim, a ideia de que o estupro não é algo condenável.
Infelizmente, o tema foi utilizado como mero entretenimento e banalizado através de justificativas, como a da própria personagem, de que se ela não tivesse sofrido o que sofreu, teria continuado um “passarinho”. Ou seja, como se o estupro fosse a razão do amadurecimento e fonte de poder de uma mulher. O estupro não pode ser retratado dessa forma leviana. Nenhuma mulher deseja ser estuprada para ficar mais forte. Essa justificativa pode até ser a forma como muitas passam a encarar o estupro para superar a dor injustificada pela qual passaram, mas não pode ser utilizada por qualquer série, ainda mais uma do alcance de “Game of Thrones”, como se fosse algo necessário e positivo para o desenvolvimento de uma personagem.
Não importa que Sansa teve ilusões românticas antes e não importa que quiseram desconstruir as ideias romantizadas dela com situações de violência real. Foi irresponsabilidade de roteiristas, diretores e produtores colocar primeiro o estupro como entretenimento (reforçando uma cultura do estupro) e depois justificá-lo, nas palavras da própria Sansa, em “The Last of The Starks“, como algo pelo que ela devia ter passado.
Cersei e a anulação das mulheres em Game of Thrones
Cersei Lannister (Lena Headey) era a primogênita, a mais ambiciosa dos três irmãos e a mais interessada em jogos políticos, mas era mulher e isto era suficiente para que o seu poder e a sua capacidade fossem ignorados pelo pai Twyn Lannister (Charles Dance). Afinal, o papel de uma mulher não é lidar diretamente com o poder. No máximo, ela pode fazer isto por trás das cortinas, por trás de um marido ou através de manipulações discretas – e é como “Game of Thrones” faz isto, reforçando o estereótipo da mulher calculista, da mulher traiçoeira, das mulheres exemplares em seus papéis sociais, mas grandes manipuladoras – e pobre dos homens que são arrastados em seus jogos discretos de poder.
Inclusive, é o mesmo caminho pelo qual a jovem Sansa Stark alcança o poder. E se não for assim, a mulher poderosa é louca, instável, despreparada para o poder. Cersei, então, oscila entre esses dois aspectos. No início da série, ela é a rainha manipuladora por trás de Robert Baratheon (Mark Addy), um rei que iniciou uma guerra por orgulho ferido, pois foi rejeitado por Lyanna Stark (Aisling Franciosi) e é o verdadeiro estereótipo dos homens que não conseguem se controlar sexualmente, rejeitando e humilhando suas esposas. Não admira que Cersei o odiasse. Depois de sua morte, ela ganha cada vez mais poder, embora assuma o trono apenas depois da morte de Tommen (Dean-Charles Chapman).
Uma mãe que faria tudo por seus filhos
Outro ponto importante da trajetória de Cersei é o destaque que se concede à maternidade. Não apenas em um momento, mas em vários é dito que Cersei faria tudo por seus filhos e que até mesmo sua sede por poder seria decorrente da vontade de protegê-los – lembrando que todos os filhos dela são frutos de sua relação com seu irmão Jaime (Nikolaj Coster Waldau). Este é também um dos motivos que a colocam em embate com Catelyn Stark. Afinal, eram duas mãe diferentes lutando pela sobrevivência de sua prole – e não se pode esquecer que “Game of Thrones” adora rivalidades femininas, mães ou não (Cersei x Catelyn, Arya x Sansa inicialmente, Daenerys x Sansa, Cersei x Margeary etc).
Fato é que Cersei daria a vida pelos filhos, mas nem sempre fez as escolhas certas. Por vezes, absorvida por esse dever de zelar por eles, constrangeu-os e aprisionou-se uma maternidade viciada pela toxicidade, algo que também se verifica na realidade diante dos padrões impostos, isto porque ainda hoje é colocado que as mães devem quase se anular como mulheres e indivíduos no cuidado com os filhos, algo que não é saudável nem para elas e nem para eles.
Uma rainha instável
Durante bastante tempo em “Game of Thrones”, Cersei também foi vista como louca. Era como se sua ambição a cegasse, afastando até mesmo seu irmão Jaime. E por um breve tempo, Cersei foi comparada ao Rei Louco, o rei Targaryen que escondeu fogo vivo pelas ruas de Porto Real. No entanto, a imagem logo foi esquecida quando outra personagem se sobressaiu em poder político a ela, e de instável, cruel e egoísta rainha, Cersei voltou a ser a mulher manipuladora em proteção à família, desejando apenas salvar seu filho – que é como ela termina no último episódio de “Game of Thrones”.
Então, percebe-se que o problema de “Game of Thrones” está, de modo geral, nas personagens poderosas. De certo modo, a série parece sempre precisar de uma mulher poderosa instável, oscilando entre a defesa de sua família (um apelo à maternidade compulsória) e a instabilidade (um apelo à ideia de que a mulher é incapaz ao exercício do poder).
Daenerys: a rainha louca
E para fechar, então, tratando de loucura, o foco volta-se à Daenerys (Emilia Clarke). Daenerys era uma personagem que cativava dentro e fora da série. Nascida da tormenta, foi levada de Porto Real durante a revolução de Robert Baratheon, cresceu ofuscada pela ambição do irmão, sob o discurso de que um dia ele seria rei dos Sete Reinos, e foi vendida a um homem que passou a amar, mas não sem antes haver uma cena de estupro em “Game of Thrones”. Aos fãs do casal Daenerys e Khal Drogo, se não foi consentido nos moldes em que se deu a cena, foi estupro.
Os indícios da tão famosa loucura passada pelos Targaryen já surgem quando ela manda que coroem seu irmão com metal derretido. Mas nessa época, Daenerys ainda era a justiceira que todos queriam, e quando seus três dragões nasceram – e outro ponto importante seria um possível ressentimento pela impossibilidade de gerar, novamente, outro filho, adotando os três dragões, mas sem esquecer do único filho que ela teve – e ela começou a queimar escravagistas, homens e mulheres que representassem algum mal social, todos vibraram com suas conquistas. Mas é claro que o medo de que o poder utilizado para combater a opressão um dia se volta contra os oprimidos foi retratado em “Game of Thrones”.
Por um lado, constituía uma crítica aos próprios movimentos sociais em sua idolatria; ressaltaram mais os aspectos negativos dessa promessa de libertação que advém com uma promessa de nova prisão. É como se a libertação fosse concedida pacificamente pelo poder vigente – uma ironia depois da cena sarcástica com que se rechaçou a democracia em “Game of Thrones”. Por outro, vem novamente com a ideia de que as mulheres não sabem lidar com o poder.
Onde estão os homens que não souberam conduzir essa mulher?
É engraçado que no último episódio de “Game of Thrones” Tyrion fale de sua vaidade. Afinal, ele achava que seria capaz de guiar Daenerys mesmo diante dos indícios de uma instabilidade para o poder. Mas por que? Por que ele a guiaria? Em nenhum momento “Game of Thrones” traz à tona que Tyrion, assim como todos os homens em torno de Daenerys (que diziam amá-la), achava-se na condição de guiá-la por ver que ela seria incapaz e sozinha de alcançar tal feito; as série tampouco ressalta que eram homens, como vários outros, se colocando como mais aptos ao exercício do poder do que uma mulher que, todavia, era a rainha, porque inspirava amor nos demais. Claro, amor no primeiro momento, porque depois passa a representar um perigo.
Assim, “Game of Thrones” reforça um estereótipo de que as mulheres podem ser aceitas no poder na medida em que são consideradas dóceis. Podem estar ali se forem fantoches conduzidos por mãos masculinas e quando elas alcançam poder suficiente para agir por conta própria, contrariando as “sugestões” dos homens ao seu redor, tornam-se perigosas. Tudo lhes é retirado (filhos, amores, poder) para que elas surjam como verdadeiras bestas – ou dragões -, cujo poder em excesso conduz ao caos.
O poder de Daenerys era aceito na medida em que também representava poder para esses homens, mas quando Jon Snow surge como legítimo herdeiro do trono, a aceitação da mulher poderosa cai por terra. Ele, um homem dito mais sensato, forte, diplomático. O amor nutrido por todos torna-se receio, arrependimento. Por que todos apoiaram essa mulher? Porque faltava o líder legítimo a quem apoiar. Uma vez que ela não seja mais necessária, torna-se inimiga e precisa ser morta para que o povo seja salvo – e as estruturas mantidas.
A loucura é um mal de toda mulher poderosa?
Não se pode ignorar, por óbvio, que Daenerys sempre demonstrou tirania. Matava sem julgamento prévio, como se a força de sua lei bastasse, e desde sempre mesclava amor e medo. No entanto, não se pode ignorar também que as duas rainhas foram consideradas loucas durante a série quando convinha para a deslegitimação de seu poder.
Há quem possa dizer: mas Sansa tornou-se rainha. Sim, Sansa tornou-se rainha nos últimos minutos do último episódio. Mas como seu poder político cresceu? Por meio da manipulação, do poder indireto e dos jogos políticos por trás das cortinas – por meio do segredo que ela revelou a Tyrion, por exemplo. Afinal, foi esse o ápice da fragilização da relação com Daenerys.
Sansa não estava no campo de batalha, porque mulher poderosa não fica na linha da frente. Para “Game of Thrones”, mulher poderosa chega ao poder de forma silenciosa e aguenta a violência sob a justificativa de que isto a torna mais forte. Enfrentar a violência lutando é coisa de mulher instável, mulher perigosa. Enfim, por mais que o destino final de Sansa seja um dos poucos pontos positivos do final da série, quando analisado num contexto maior, reforça muitos estereótipos.
As mulheres de Game of Thrones
Como ressaltado antes, muitas foram as personagens femininas marcantes de “Game of Thrones”. Brienne, a primeira cavaleira, mas cuja vida sexual era vista como motivo para rir dela; Melisandre, a bruxa sensualizada que faz escolhas erradas na fé cega; Yara Greyjoy (Gemma Whelan) e Ellaria Sand (Indira Varma), cuja bissexualidade foi explorada, mas também considerada por um aspecto do estereótipo da promiscuidade; e Missandei (Nathalie Emmanuel), uma das poucas mulheres negras da série, que, na adaptação televisiva, era a fiel companheira da rainha branca. Então, muitas mulheres diversas, mas também muitos estereótipos foram representados.
Não adianta uma série ser repleta de mulheres se as coloca em papéis estigmatizados. Não adianta se esses papéis apenas reforçam a misoginia sem a pretensão de crítica. É preciso, sim, representar mais mulheres, mas mostrá-las de formas que rompam com os padrões. É preciso mostrar possíveis uniões não forçadas (como “Game of Thrones” até tentou com Daenerys, Yara, Ellaria e Olena, mas acabou falhando ao longo do caminho) e não reforçar a cultura do estupro e a misoginia. Já basta de achar que número é qualidade e já basta do argumento de que a ficção é livre, ignorando a responsabilidade para com a representatividade e a quebra com estigmas e padrões.
Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.