Vozes e Vultos: quando o sobrenatural não é o inimigo

Vozes e Vultos: quando o sobrenatural não é o inimigo

Vozes e Vultos é um filme que causou um certo burburinho. Os comentários iam de que ele não assusta, sendo um terror “fajuto”, até que seu roteiro é confuso. Às vezes, é difícil definir o que funciona ou não em um filme de terror. Ele precisa assustar? Não necessariamente. O terror mexe com os medos sociais e psicológicos. Cada época tem uma onda de obras do gênero com temática semelhante. Em certos anos, podemos notar diversos filmes de vampiros. Em outros, de bruxas. Mas um subgênero continua aparecendo mesmo quando outros estão populares: o gótico feminino.

O que é o gótico feminino?

Após a publicação de O Castelo de Otranto, obra de Horace Walpole que inaugura o gótico no século 18, várias escritoras, incluindo Clara Reeve, se dedicaram a escrever histórias dentro do gênero, mas com elementos que conversavam melhor com os horrores por que passavam. Nascia assim o gótico feminino.

Quando olhamos para o gótico feminino, nos deparamos com um conceito que data de séculos passados e que nos traz uma abordagem sensível e aterradora sobre o terror que vem de casa. Claro que mulheres podem – e o fazem – criar histórias sobre o terror que vem de fora, o inimigo que invade sua casa, mas existe algo de horrível em não ter escapatória, não ter refúgio.

Amanda Seyfried em "Vozes e Vultos"
Amanda Seyfried em “Vozes e Vultos” | Imagem: reprodução/Netflix

Os medos e a realidade das mulheres que não encontram um lugar de paz dentro de seus lares são refletidos em tramas do gênero. Podem haver monstros, espíritos, o elemento sobrenatural, contudo o cerne da trama perpassa traumas da protagonista e, geralmente, algum tipo de violência doméstica. É isso o que encontramos em Vozes e Vultos (2021), o novo terror da Netflix.

Atenção: este texto contém spoilers do filme Vozes e Vultos

Vozes e Vultos e o terror do casamento 

É preciso começar este texto dizendo que se você espera encontrar um filme de fantasmas que gele sua espinha, está no lugar errado. Vozes e Vultos não assusta no sentido tradicional da palavra, mas ele pode mexer com os seus nervos e lhe fazer questionar a noção de monstruosidade. O que é monstruoso na vida de uma mulher – uma assombração ou um casamento?

Baseado no livro de Elizabeth BrundageAll Things Cease to Appear (ainda sem tradução para o português), o filme conta a história de Catherine Clare (Amanda Seyfried), uma esposa estadunidense aparentemente típica do início da década de 1980. Ela vive com o marido, George (James Norton), e a filha pequena, Franny (Ana Sophia Heger).

Vozes e Vultos
Cena de “Vozes e Vultos” | Imagem: reprodução/Netflix

No início do longa, ficamos sabendo que George concluiu sua dissertação de mestrado e conseguiu uma posição como professor universitário numa cidadezinha de interior. Catherine, embora tenha uma carreira em vias de consolidação como restauradora de arte, decide apoiar o marido e muda-se com ele, largando seu emprego para tornar-se apenas esposa e mãe enquanto George leciona na universidade local.

A recepção é agradável. Os colegas de trabalho de George logo tentam inseri-lo no círculo social da cidade e Catherine, embora isolada em casa, consegue fazer algumas conexões no grupo de professores universitários. É através de um livro que o chefe de seu marido o presenteou – e que ele simplesmente deixou de lado, fazendo desfeita – que Catherine familiariza-se com o conceito de vida após a morte de Emanuel Swedenborg, um cientista, filósofo e místico que viveu entre os séculos 17 e 18.

Quando o entendimento sobrenatural sobressai as aflições da vida real

O livro, Heaven and its Wonders: The World of Spirits and Hell, agregou pessoas daquela comunidade que seguem os princípios de Swedenborg, crendo que a morte é apenas uma passagem, não algo a se temer, e que o mundo dos espíritos está próximo a nós, mas também não deve ser temido, já que só atraímos semelhantes. A doutrina indica que se formos bons, apenas os bons se chegarão a nós, pois as energias são correspondentes. É com essa ideia que o filme trabalha, já que existe, sim, uma (ou mais) assombração, mas ela não é o que se deve temer na narrativa.

Não demora para que Catherine tenha certeza de que a casa é assombrada – ou, melhor dizendo, coabitada pelo espírito de uma ou duas mulheres. As antigas moradoras da residência permaneceram ali e há vários vestígios delas pela casa, seja um anel ou memórias energéticas; as presenças daquelas mulheres manifestam-se diariamente. Contudo, elas não representam perigo.

Catherine torna-se fascinada pelos espíritos e conta com a ajuda de um grupo de apoio, estudiosos e seguidores de Swedenborg para tentar contato e conhecer melhor aquelas que vieram antes dela. Essa linha sucessória não é novidade em narrativas do gótico feminino, mas é interessante ver como a protagonista é aberta a tais manifestações.

Filme de terror da Netflix
Cena de “Vozes e Vultos” | Imagem: reprodução/Netflix

Vozes e Vultos lida bem com o gótico ao nos mostrar diversas facetas de crimes. A casa onde os Clare agora moram possui um passado e o início do filme é destinado a nos mostrar como Catherine o enxerga em detalhes, seja pelo espírito de uma mulher que aparece no quarto de Franny, causando terrores noturnos, ou por cheiros, barulhos e sonhos de Catherine. A narrativa passa até mesmo por objetos encontrados ao acaso, mas que descobrimos possuírem significado. O passado é vivo naquela propriedade e repete-se.

Ciclos de abuso

Uma das características do gótico é justamente a repetição: a história dentro da história dentro de outra história. O convite para o mundo de Catherine não nos leva apenas à ela, sua filha e seu marido, mas a séculos de violência contra mulheres. A princípio pequenas, até que os eventos desdobram-se para algo horroroso. As mulheres são diferentes e as épocas também, mas a história é a mesma. Os espíritos, atraídos pela repetição da tragédia, tentam ajudar, mas cabe aos vivos tomar decisões que levem a outro destino. Infelizmente, não é isso o que acontece em Vozes e Vultos.

Em 1994 estreou O Mistério de Seacliff Inn, um filme feito diretamente para a TV dirigido por Walter Klenhard que também nos traz uma história de gótico feminino. Nela, Susan (Ally Sheedy) e Mark (William R. Moses) se mudam para uma casa longe de tudo, mas perto do mar. A ideia é recomeçar, reconstruir o casamento e tornar o local uma pousada, mas o passado da casa começa a se tornar presente conforme eles vão se instalando.

O enredo nos faz sentir todo o isolamento de Susan e é interessante observar como, da mesma forma que acontece em Vozes e Vultos, esses espíritos que retornam para retomarem seus ciclos de abuso, dor e morte são estimulados pelas tensões entre os moradores presentes na casa, cujo casamento está por um fio. É a repetição que torna o gótico tão fascinante – tudo é cíclico.

Minimização da mulher no terror de Vozes e Vultos

Porém, é muito incômodo perceber que entra século, sai século, e as mulheres ainda são mais atormentadas por seus maridos do que pelo sobrenatural. É a marca dessa violência que ecoa dentro de casa.

Cena de Vozes e Vultos
Cena de “Vozes e Vultos” | Imagem: reprodução/Netflix

É chocante chegar ao final da história e presenciar a cena do assassinato de Catherine. Seu marido, George, portando um machado e dilacerando o corpo da esposa ao meio certamente não é algo agradável, tampouco algo por que esperávamos. Creio que não é preciso dizer que estamos cansadas de ver mulheres morrendo apenas para que um homem seja punido.

Pouco antes da cena da assassinato, Catherine descobre que George vem destruindo e matando todos que se colocam como empecilho para seus objetivos, roubando vidas e identidades, falsificando e aniquilando sem escrúpulos. Matar a esposa é apenas se livrar de um disfarce da vida perfeita que havia construído. Por ela, ele não tem sentimento algum. Talvez não os tenha por ninguém. Mas ela precisava morrer para que ele fosse finalmente descoberto?

Ao final do filme, pouco importa a assombração ou os ensinamentos de Swedenborg. Sim, existe uma lição ali, algo que soa como um “cautionary tale”; George, atraindo para si o que há de pior no mundo dos espíritos, é punido – por eles, mas a justiça o aguarda caso ele consiga se safar. Seu destino final fica em aberto, porém podemos ter a certeza de sua punição. Mas Catherine continua morta, então de que adianta?

Talvez Vozes e Vultos não agrade por misturar diversas abordagens para a mesma história e matar sua protagonista no intuito de punir um homem. Contudo, a narrativa é fiel ao que se propõe: um espírito não vai lhe causar tanto mal quanto um homem vivo.


Revisão por Gabriela Prado.

Escrito por:

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Jornalista e pessoa da internet há uma década. Analista literária, quando não está lendo, escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre, onde está há vinte e poucos anos ajudando na entropia do universo.
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