“Garota, mulher, outras” e a pluralidade do que é o ser mulher

“Garota, mulher, outras” e a pluralidade do que é o ser mulher

Houve uma certa ansiedade para que o mais novo livro de Bernardine Evaristo fosse traduzido para o Brasil. Além de no ano passado Garota, Mulher, Outras entrar na lista de livros favoritos de Barack Obama, o livro foi considerado pelo jornal britânico The Guardian o romance da década e, ainda no mesmo ano, a obra foi vencedora do Booker Prize, considerado o mais importante para a literatura de língua inglesa, tornando sua autora a primeira mulher negra a receber o prêmio.

A escritora britânica de origem nigeriana, além de seu primoroso e reconhecido trabalho de escrita, é dramaturga, professora de escrita criativa na Brunel University London e vice-presidente da Royal Society of Literature. O romance é seu oitavo livro, mas o primeiro a ser publicado no Brasil, através da tradução primorosa de Camila von Holdefer.

A história de “Garota, Mulher, Outras”

O livro é dividido em cinco grandes partes, em que as quatro primeiras contêm as narrativas de coletivos de personagens que protagonizam o romance e a quinta traz um evento em que todas elas se encontram, além de um epílogo. Garota, Mulher, Outras retrata as vivências e histórias de doze personagens, imigrantes ou descendentes de imigrantes de países africanos e caribenhos, no qual a fluidez é a principal marca da maneira em que a autora busca romper com o discurso colonial.

A obra busca dar voz à 11 mulheres e uma pessoa não binária. Yazz, a mais jovem, é uma estudante de 19 anos, dentro de uma universidade prestigiada na Inglaterra e atenta aos novos discursos e movimentos políticos que estão insurgindo nos últimos anos. Já Hattie, a mais velha, é uma fazendeira de 93 anos que procura sustentar o legado de sua família e dar todo suporte a seu bisnete Morgan, que se reconhece enquanto uma pessoa de gênero neutro.

Em Garota, Mulher, Outras, a autora busca, portanto, dar uma certa ênfase nos relacionamentos entre mães e filhas, ou as filhas e suas amigas, relacionamentos estes que são cheios de complexidades e bastante reativos, nos quais muitos dependem de um equilíbrio delicado, prestes a se romper.

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Bernardine Evaristo
A autora Bernardine Evaristo. Foto: reprodução

O livro tem a habilidade de conversar sobre diferentes gerações ou a respeito de pessoas que estão em uma mesma geração, mas vivenciam o gênero, a raça e a classe de maneiras completamente distintas, prezando muito por suas particularidades e individualidades. Dessa forma, o relacionamento dos personagens e a maneira como estes interagem: seus conflitos, o amor e o ódio que sentem uns pelos outros, suas concordâncias e discordâncias, e principalmente a diversidade de suas visões políticas, é o grande dom da escrita de Bernardine.

Além da relação bem distinta e marcada por altos e baixos entre os personagens, que são bastante plurais, há uma diversidade gigantesca entre os temas tratados ao longo dos capítulos, que vão desde representatividade artística, a subjetividade das mulheres árabes, imigração, a organização dos movimentos feministas, entre muitos outros.

Para representar essas camadas sociais a autora se vale não apenas de uma narrativa única e irreverente, mas de um estilo narrativo inovador. O texto interpõe-se em versos ao mesmo tempo que se trate, de fato, de uma prosa, e em seguida ainda brinca com textos em bloco. Não se sabe se considera-se uma prosa poética ou um livro que não se encaixa em nenhuma categorização.

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E apesar de não haver rimas ao longo do texto, há uma sonoridade forte e uma cadência extremamente sonora, que pode incluir ainda mais misturas na voz de cada personagem. A linguagem pode transitar entre o formal e o informal numa mesma frase ou parágrafo. Já a narração escorrega para o diálogo sem qualquer aviso ou marcador para frases. Inclusive, podemos ver o sotaque de certos personagens ao longo de suas divagações.

Dessa forma, trata-se de um livro extraordinário, não apenas inventivo em sua linguagem ou estilo narrativo, mas que preocupa-se em mostrar a sociedade como ela é: diversa, múltipla, cheia de contradições e marcada por movimentos sociais e políticos. Há aqui uma preocupação da autora em retratar a atual sociedade inglesa, mas também como se apresentou historicamente, marcada pela luta direta e por vezes silenciosa de milhares de mulheres, e pelas estruturas de gênero, raça e classe.

O abuso em relacionamentos românticos

Há em Garota, Mulher, Outras muitos momentos desconfortáveis e feitos para que a leitora reflita sobre a violência, a dominação e a exploração que permeia a vida das mulheres. Temos cenas brutais que envolvem estupro, abuso psicológico, dominação dentro do casamento, entre outros. Todavia, a autora não teme tocar em assuntos complexos e dolorosos, em que muitos são poucos explorados na literatura de uma forma geral, como o tema da não binariedade, a hiperssexualização de mulheres negras e a sexualidade de mulheres que já passaram da chamada “meia idade”.

Porém, em uma dessas histórias, logo nas primeiras cem páginas, acontece uma situação que pode nos deixar surpresas, que é o relacionamento abusivo que a personagem Dominique vivencia. Num capítulo claustrofóbico e sufocante, que vai crescendo em uma tensão até eclodir e deixar a leitora extremamente sensibilizada, Bernardine narra uma relação abusiva entre duas mulheres.

Garota, Mulher, Outras - Bernardine Evaristo
Capa da edição brasileira da Companhia das Letras.

Os leitores e leitoras acompanham o início e o desenvolvimento do relacionamento entre Dominique e Nzinga desde o encontro inicial, na estação Victoria em Londres, até o percebimento de Dominique de estar em um relacionamento abusivo e tóxico, no qual toda a sua liberdade estava submetida ao controle e a dominação de sua parceira.

Geralmente, quando discutimos a violência e o abuso dentro de relacionamentos amorosos, a relação heteroafetiva entre homens e mulheres são os principais alvos, isso porque a influência do patriarcado e do machismo interfere diretamente na hierarquização e na relação de poder que existe dentro daquele vínculo.

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Homens se aproveitam da fragilidade emocional que as mulheres criam a partir dos relacionamentos e procuram manter uma dependência emocional que envolve o controle total da individualidade e da liberdade das mulheres. Entretanto, é muito pouco falado, principalmente na literatura mundial, sobre o relacionamento abusivo dentro de casais homoafetivos, sejam entre homens ou entre mulheres.

Como o patriarcado é uma estrutura que permeia todas as relações e instituições dentro da nossa sociedade, principalmente no que diz respeito a relacionamentos amorosos e o casamento, dentro de relacionamentos homoafetivos, que já são marcados pela relação complexa de gênero e sexualidade, por vezes ainda existe essa influência direta dos papéis de gênero e da dominação.

Vemos, então, a paixão dilacerante e arrebatadora entre duas mulheres que sentem orgulho de exercerem plenamente suas sexualidades e que é apaixonante para as leitoras. Você se vê se apaixonanda pelas personagens, entretanto quando as coisas começam a se intensificar o relacionamento passa a demonstrar traços diretos de opressão. O afastamento das amizades de Dominique, a restrição de suas saídas de casa até a sua proibição, a repressão da criação de novas amizades, e por aí vai.

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Em seguida, vemos lentamente a relação que parecia um sonho tornar-se um pesadelo, onde há a total dependência emocional, financeira e até mesmo física, em sua liberdade de ir e vir. Conseguimos perceber como a identidade e a personalidade de Dominique aos poucos passa a ser controlada. A personagem se vê refém do abuso e da violência psicológica de Nzinga, o que é um ponto muito relevante.

Além de ser um tema atual, a medida em que o livro expõe as amarras do relacionamento entre elas, ele desnaturaliza essas relações ao mostrar como esse tipo de abuso é profundo e como aqueles que estão sendo vítima não percebem a natureza dessa relação.

Mito da feminilidade, feminismo branco e não há universalidade em ser mulher

Ao retratar a vivência de mulheres negras e brancas de maneira completamente distinta, a obra de Bernardine Evaristo é uma influência indispensável para a nova geração de escritores e leitores. A tendência que acompanha o feminismo liberal, atualmente, procura unificar mulheres em um bloco homogêneo e unificado, que vivenciam o machismo igualmente e que, por isso, temos pautas unas.

Ser mulher na nossa sociedade, através desse movimento de mulheres que apaga as identidades e diferentes vivências, é uma experiência comum: historicamente fomos negadas ao mercado de trabalho, controladas e punidas dentro de nossas casas/lares, onde a referência de mulher perfeita é a dona de casa.

Bernardine Evaristo com a edição de "Girl, Woman, Other".
Bernardine Evaristo com a edição de “Girl, Woman, Other”. Foto: reprodução

Entretanto, por mais que o discurso hegemônico ainda trabalhe em regra com o ideal da mulher enquanto esposa, mãe e filha, possuidora de uma feminilidade totalmente manipulável e controlada pelos padrões e expectativas de gênero, essa experiência se dá maneira diferente entre as mulheres brancas e negras, ou até mesmo entre mulheres brancas e entre mulheres negras. O livro, portanto, mostra como o feminismo branco historicamente apagou e invisibilizou as particularidades das mulheres negras. Por isso é imporante não reduzir as experiências femininas em pautas unificadas.

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Vemos no livro personagens negras e imigrantes que variam do espectro político conservador ao socialismo, que se distinguem diretamente das mulheres brancas liberais e que acreditam que o feminismo se perdeu por conta de pautas identitárias. Temos também mulheres negras fortes e politizadas aliadas a um discurso revolucionário, mas que tende a apagar a vivência de pessoas trans por preconceito histórico latente. Isto destoa diretamente de uma personagem que é uma mulher negra de 93 anos e que aceita seu bisneto enquanto pessoa não binária. Há um universo de infinidades de identidades e pautas. Ser mulher, na nossa sociedade, não é universal.

Nesse sentido, algumas personagens passam por situações específicas que demarcam bem esse trabalho histórico da autora. Uma delas é LaTisha. LaTisha KaNisha Jones é uma personagem que foi mencionada por algumas como uma mulher promíscua que estava destinada a ter milhares de filhos. Além de ser uma mulher negra e periférica, vinda de uma família violenta, a autora mostrou como a hiperssexualização pode ser nociva para mulheres negras.

Lélia Gonzalez, em sua extensa e magnífica obra, reflete sobre um ditado colonial que diz: “preta pra cozinhar, mulata pra fornicar e branca pra casar” e isso diz muito sobre as relações afetivas e sexuais que LaTisha constrói ao longo da vida. Ela é usada ao longo do livro apenas como um mero objeto sexual, utilizada como uma referência de beleza exuberante e uma mulher sensual, porém à medida que conseguiam algo com ela, era abandonada. A solidão é um traço marcante na personagem e algo que representa a pauta de muitas mulheres negras.

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O peso do casamento para as mulheres é dado diferentemente e vemos como essa instituição é múltipla. Para as mulheres negras que almejam o casamento na história, trata-se de um espaço de afeto e apoio, sobretudo por este não ser reconhecido como limitante de suas pretensões de carreira profissional, mesmo porque enquanto as mulheres brancas buscavam adentrar no mercado de trabalho, mulheres negras estavam dispostas historicamente dentro desses espaços.

As mulheres brancas, no entanto, assim que eram direcionadas para a instituição do casamento, toda a sua subjetividade e seus interesses profissionais eram apagados. Isso é presente no capítulo da personagem Penelope, que sonhava em ser professora, entretanto seu marido não concordava: “ele respondeu que não era muito prático ter dois patrões: um chefe no trabalho e um marido”.

Isso não significa que as mulheres negras não vivenciam o machismo dentro de seus relacionamentos ou casamentos, como é demonstrado no capítulo de Winsome: “Winsome gosta de que Rachel seja suficientemente curiosa para saber quem a avó era antes de se tornar mãe, quando era uma pessoa que tomava conta de si mesma, como ela descreveu só que ela nunca tinha tomado, primeiro ela foi filha, depois esposa e mãe, e agora também avó e bisavó”.

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Bernardine Evaristo passeia através de gerações de mulheres em diferentes contextos, que estão interligadas por uma razão. A autora, dessa forma, retrata mulheres negras, imigrantes, fortes e politizadas, mostrando como a representatividade não é um mero detalhe, mas o centro da história. Suas personagens citam a todo instante nomes importantes na história do povo negro, assim como nomes da história do feminismo, entregando uma verdadeira aula de representação.

Dominique lia Audre Lorde de pé nas livrarias quando não tinha dinheiro para comprar os livros. Bummi leu Buchi Emecheta, As alegrias da maternidade, num período turbulento da relação com a filha. Já Winsome, que faz parte de um clube do livro, gosta muito de Olive Senior, Rosa Guy, Paule Marshall, Jamaica Kincaid, Marise Condé e Grace Nichols.

Decepcionada com as referências intelectuais do pai, que se restringem a autores homens e brancos, a jovem Yazz pergunta a ele se conhece bell hooks, Aimé Césaire, Angela Davis, Frantz Fanon, Gayatri Spivak, Gloria Steinem, V. Y. Mudimbe e Cornel West. Roxane Gay é citada em outro momento como uma das referências de Yazz. É significativo também que Penelope, que não se vê como uma mulher negra, tenha Betty Friedan e revistas femininas como referencial.

Não Binarismo e a linguagem neutra

Uma outra temática que se destaca na obra é a questão da não binariedade ou de pessoas agênero. No capítulo Megan/Morgan temos contato direto com uma pessoa que se percebe ao longo da vida como alguém que não se encaixa nos padrões de gênero, se identificando como não binária (pessoa sem gênero).

O assunto é tratado com muita responsabilidade por parte da autora, que não apenas atribui uma linguagem neutra em todo o capítulo, respeitando a identidade de Morgan, como também procura diferenciar a identidade de Morgan de outras identidades LGBTQI+, como de sua namorada Bibi, uma mulher trans.

A inclusão de uma linguagem neutra é um assunto muito presente nos dias de hoje, principalmente com a tentativa do Congresso Nacional de inviabilizar o uso dessa linguagem neutra. O livro procura viabilizar essas identidades em todos os âmbitos sociais, modificando a linguagem para a inclusão de pessoas que são notavelmente marginalizadas por não se encaixarem num padrão socialmente estabelecido; essas pessoas estão presentes em todos os espaços, portanto é válido que sejam incluídas também por meio da língua, sendo representadas e respeitadas por meio dela.

“A gente pode escolher entre ser esmagado pelo peso da história, e das atrocidades dos dias atuais, ou ir à luta”

Garota, Mulher, Outras é um livro envolvente do início ao fim. Com uma narrativa única, simples, direta e acessível você se pega torcendo para que as personagens tenham seus próprios capítulos para conhecê-las melhor. A obra se torna referência em como fazer livros políticos de maneira inventiva e que fogem da forma panfletária (em que não há nada de errado, porém é mais comum de se presenciar). É uma verdadeira inspiração para uma nova geração de escritoras e de leitores.


Garota, mulher, outras

Bernardine Evaristo

Tradutora: Camila Holdefer

Companhia das Letras

496 páginas

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Estudante de Direito, nordestina, pode falar sobre Studio Ghibli e feminismo por horas sem parar, amante de cinema e literatura (ainda mais se feito por mulheres), pesquisadora, acumuladora de livros e passa mais tempo criando listas inúteis do que gostaria.
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