Kerry Washington e Reese Witherspoon. Uma delas no elenco, já é motivo suficiente para despertar a curiosidade e a vontade de assistir. “Little Fires Everywhere“, traz as duas como protagonistas, que encabeçam a produção executiva da série produzida pela HULU (The Handmaid’s Tale) e exibida na Amazon Prime Vídeo, que aliás, tem melhorado muito seu catálogo.
A série é uma adaptação do livro homônimo de Celeste Ng, a direção é de Liz Tigelaar e as atrizes estão bem acompanhadas por Joshua Jackson e Rosemarie DeWitt, além de excelente elenco adolescente.
Em oito episódios de cerca de sessenta minutos cada, vemos duas protagonistas que divergem em tudo. São mulheres com origens, histórias e classes diferentes, com um único ponto em comum: são mães de adolescentes. A medida em que a trama de “Little Fires Everywhere” se desenvolve, fica difícil não associá-la à indispensável obra de Angela Davis, Mulheres, Raça e Classe.
As mulheres em Little Fires Everywhere
Reese Witherspoon dá vida à personagem Elena Richardson, uma mulher branca, coberta de privilégios, casada, mãe de quatro filhos e obcecada por controle e perfeição. Oriunda de uma família rica, goza de respeitabilidade e boas relações na comunidade local e trabalha meio período como jornalista. Nos primeiros instantes, temos a impressão de que o papel é o mesmo daquele vivido na série da Big Little Lies (HBO), produzida por ela.
Aliás, nos últimos anos, ela tem se dedicado à Pacific Standard, produtora de filmes como Garota Exemplar (2014) e Livre (2014), e da plataforma Hello Sunshine, voltada ao conteúdo feito por mulheres e para contar histórias sobre mulheres.
A atriz e produtora segue uma tendência oriunda de antiga reivindicação das mulheres, que tem tomado cada vez mais corpo e culminado em grandes sucessos: quando os espaços da produção audiovisual (direção, roteiro, etc) são (finalmente) ocupados por mulheres, como em Fleabag e Boneca Russa (Netflix) e Killing Eve (Globoplay).
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Já a personagem de Kerry Washington (American Son), Mia Warren, é uma artista plástica, negra, que cria sozinha sua filha Pearl Warren (Lexi Underwood) e com ela viaja de cidade em cidade no carro onde moram. Mia trabalha nos empregos que encontra e nas demais horas dedica-se à fotografia e às suas instalações, um espetáculo à parte. Além de compor, a bonita fotografia é a forma que a personagem encontra (como uma “estrangeira”) de retratar a comunidade local.
Os fãs de Scandal poderão sentir certa decepção no início, na comparação inevitável com a superlativa Olivia Pope, outra protagonista incrível de Shonda Rhimes. Mas essa sensação evapora, pois a personagem rapidamente se revela uma mulher assertiva, livre, que despreza padrões e convenções e com uma história de vida (e segredos) que queremos logo desvendar.
Segredos são comuns às demais mulheres da trama, como a imigrante chinesa, Bebe Chow (Lu Huang), colega de trabalho de Mia, e as adolescentes Izzie (Megan Stott) e Lexie (Jade Pettyjohn), filhas de Elena.
A série vai permeando a vida de cada uma e embora se passe nos anos noventa, discute temas caros às mulheres até hoje, como maternidade e mercado de trabalho, maternidade brutal, puerpério, dificuldades de engravidar e gestar, adoção, abandono, aborto, barriga de aluguel, direitos reprodutivos, liberdade sexual, sexo na adolescência, lesbofobia, bullying e estereótipos de beleza. (Imperdível, não é?!) Aliás, como o roteiro é sua outra virtude, paremos por aqui para evitar spoilers.
Raça e classe em Little Fires Everywhere
Tal como na obra de Angela Davis, a série aborda as nuances das opressões e como elas estruturam a sociedade. Evidente que a discussão é complexa e a série não tem, nem poderia, num limitado espaço de oito episódios, a profundidade para tratá-la, mas a levanta e ilustra de forma a provocar uma interessante reflexão, através das vivências dessas duas mulheres e daqueles que as rodeiam.
Por exemplo, já no primeiro episódio, enquanto uma opta por trabalhar em meio período, a outra trabalha nos empregos que encontra, alguns precarizados, e acaba tendo que aceitar um doméstico. A ativista marxista aponta em seu livro que mesmo após o fim do período de escravização, as mulheres negras “encontravam a porta trancada para novas oportunidades” além do trabalho no campo e nos serviços domésticos.
No terceiro episódio, 70 centavos, há um contraponto entre o drama vivido por Bebe Chow, imigrante da classe trabalhadora que vive na pobreza, com o de Izzie, norte-americana e estudante de classe alta. O episódio mostra o abismo que há entre elas demarcado por suas origens e o que esses centavos podem representar para cada uma. A propósito, caso você não tenha filhos, talvez o início do episódio não empolgue, porém a tensão só aumenta (junto com o interesse) e esse episódio é o grande disparador da série.
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Ainda sobre essa demarcação, embora a cidade da trama propagandeie ser “fundada nos princípios da harmonia e da ordem”, há uma linha divisória nos espaços que as protagonistas ocupam. A personagem de Reese tem livre acesso à polícia e à direção da escola dos filhos e consegue facilmente solucionar com sua influência os problemas que se apresentam. Porém, a mesma polícia observa e acompanha de perto a personagem de Kerry e sua filha.
Esse é apenas um dos vários momentos que “Little Fires Everywhere” aborda comportamentos racistas da sociedade. Muitos são pontuados pelas falas de Mia, com sua postura crítica e contundente, como um Cara Gente Branca (Netflix) sem qualquer traço de humor. Ela rebela-se a atitudes de Elena, utilizando o “mito do branco salvador” (white savior complex), criticado no cinema e nas redes sociais.
Outro personagem que desempenha brilhantemente esse papel é Stevonte Hardt, na pele do popular atleta da escola, Brian Harlins, adolescente e negro, que namora Lexie (segunda filha de Elena). Brian assinala as situações racistas e até aconselha sua nova colega Pearl (filha de Mia).
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A série cria, no mínimo, desconforto nos espectadores, senão revolta, que permeia todos os episódios e provoca ao debate sobre o papel dos brancos na luta antirracista; papel também objeto de análise histórica pela filósofa marxista Angela Davis, desde os movimentos antiescravagistas, passando pelos sufragistas, até a emancipação, educação e associativismo das mulheres.
Como numa ilustração da obra, os episódios mostram os desafios do feminismo e como é importante fazer recortes nas pautas e opressões, além de considerar a intersecção entre gênero, classe e raça.
A maternidade
Aqui elas se encontram. A tensão constante entre as protagonistas é permeada pelos desafios que ambas enfrentam na educação e criação dos filhos. Eles são tratados pelo ponto de vista de cada personagem, mas também pela perspectivas das adolescentes Pearl, Izzie e Lexie, tão interessantes quanto as mães.
Os dramas do núcleo tratam de afeto, amizade e aceitação, dificuldades de lidar com o choque de gerações e das expectativas dos pais com os desejos dos filhos, cada dia mais “indivíduos”.
Enfim, mesmo que o tema não seja sua praia, os dramas familiares tocam quem os assiste. A sensação constante é que eles falam conosco. Dessa maneira, vemos, sentimos e compreendemos os assuntos retratados. O embate entre as personagens de Bebe Chow e Linda McCullough (Rosemarie DeWitt) é um dos mais delicados.
O sexto episódio talvez seja o mais bonito: os filhos se distanciam cada vez mais das mães e finalmente aparecem os eventos marcantes que elas viveram, as escolhas que fizeram e como chegaram aonde estão. (Quem já não fez esse exercício?)
Na série “Little Fires Everywhere” nos encontramos, assim como as personagens se encontram e se desencontram. Não há dúvidas, é uma série que merece ser vista.