Taylor Swift surpreendeu a todos nós quando, numa manhã de sexta-feira, anunciou um álbum novo que estaria disponível à noite. A sensação foi de estupefação, pois mal vivemos a era Lover. O show no Brasil, que deveria ter acontecido no fim-de-semana anterior e foi indefinidamente adiado em função da pandemia, parece agora mais distante. Poderemos nos vestir de rosa, fazer um coração com glitter no rosto e cantar “you’re my my my my lover”? Mas talvez essa pergunta nem importe já que, dado tudo o que está acontecendo, os tons amenos e introspectivos de Folklore, seu oitavo disco, sejam mais adequados.
Ouvir o álbum na madrugada de sexta-feira foi catártico, especialmente porque foi um evento onde todos estávamos juntos, cada um em sua casa, imersos nas canções tristes de Folklore e falando sobre sentimentos no Twitter. Foi uma espécie de show na quarentena, onde nos afundamos em sensações profundas, que nos arrancaram lágrimas coletivas.
Leia também >> Miss Americana: feminismo e amadurecimento na jornada de Taylor Swift
No minuto em que ele saiu, dei o play, mas demorei para ouvi-lo novamente, pois ele é difícil de digerir. Embora construído de maneira perfeita, suas músicas tocam em pontos sensíveis de tal forma a levar quem o ouve aos prantos. Embora seja possível apreender algum sentido nas músicas durante uma ou duas sessões com o álbum, Folklore pede por uma parada. Ele é feito para ser apreciado com calma, com tranquilidade.
Se aconchegue na sua cama, ouça a chuva lá fora e pense em Taylor cantando que tudo o que ela faz é tentar, enquanto um suave piano e um violoncelo acompanham sua voz, que aqui está mais grave do que em qualquer outro trabalho anterior.
Folklore é um álbum melancólico e reflexivo
Em Folklore, Taylor reflete sobre transformações. A única música que foge da tristeza é invisible string e, mesmo assim, ela possui um tom melancólico, o tom de quem recorda de algo que possui e de que gosta, mas que é resultado de todos os percalços por que passou. E esses percalços, esses caminhos, são coisas que ela não parece estar disposta a esquecer.
Seja pela solidão da pandemia, seja pelo momento em que todos olhamos conjuntamente para a fragilidade da vida, esse rememorar o passado faz parte. Ainda que não se lamente o presente, o caminho que nos trouxe até aqui pode ter sido doloroso e tortuoso. Porém, ao invés de esconder-se em uma concha metafórica para escapar de tais sensações avassaladoras, Taylor as abraça, as convida para entrar, tomar um chá, observar o céu. É um tempo sem tempo, mas há lugar para a reflexão.
De certa forma, Folklore soa como uma Taylor desistindo de interpretar um papel com contornos definidos na indústria musical. Sua transição do country para o pop lhe garantiu um lugar privilegiado aos holofotes, mas o que isso lhe custou?
E essa transição, essa desistência da imagem bem trabalhada para vender, começou a ser modificada em reputation. No entanto, a raiva deu lugar a Lover, um álbum que não é perfeitamente pop, mas mistura diversos ritmos para formar uma Taylor plural, uma mulher que finalmente estava aberta a fazer o que quisesse, musicalmente e individualmente. E agora, com Folklore, composto inteiramente durante a quarentena, temos uma nova faceta de Taylor: desarmada, sensível e tranquila.
Leia também >> Phoebe Bridgers: melancolia e letras confessionais
Todos estamos melancólicos e ela não está incólume ao que está acontecendo. Mas, sendo a artista que é – e a artista que passou por um longo processo de mudanças, musicais e pessoais -, ela dá vazão aos sentimentos através da arte, como é bem mostrado no videoclipe de cardigan, o único da era Folklore que temos até agora. Portanto, a música é sua tábua de salvação, e ouvi-la expressando suas memórias, desejos e composições artísticas é catártico.
Mas a mente foi para lugares sombrios durante a quarentena e isso parece ter sido inevitável até mesmo para ela. Musicalizar sentimentos pode ajudar, porém eles precisam ser postos para fora nesse processo, o que pode ser algo difícil. Não que isso seja um problema para ela, que é especialista em transformar experiências pessoais em arte.
Todavia, Folklore não é um álbum pessoal. Dificilmente, uma pessoa que escreve conseguirá dissociar-se completamente de si ao criar uma narrativa, mas, sejam quais forem os motivos que a levaram a escolher tal abordagem ao invés de outra, Taylor criou músicas sob diferentes pontos de vista, com histórias complexas e personagens que possuem nomes. Ela realmente se superou.
Leia também >> HAIM: heterogeneidade e pessoalidade em Women In Music Pt. III
Me pergunto se essa superação não vem justamente de uma libertação pessoal da questão imagética. Ela, agora aos trinta anos, com mais de uma década de carreira, passou por perrengues suficientes para uma vida inteira.
Se Lover nos mostrava alguém que só queria amar em paz, Folklore nos apresenta uma pessoa que está num relacionamento tranquilo e feliz o suficiente para concentrar-se em outros assuntos e deixar sua imaginação vagar sob os tons melancólicos da realidade mundial durante a pandemia.
É coerente, portanto, que Folklore tenha nascido justamente agora. Faz sentido tanto sob uma perspectiva pessoal quanto social. Somos ambos produtos e produtores de nosso tempo, afinal de contas.
As referências literárias e musicais do Folklore
Uma palavra que pode ser usada para descrever folklore é assombro. Todas as músicas parecem assombradas pelo fantasma do amor perdido, do amor não vivido, daquilo que escapa no ar e escorre em lágrimas. Existe um sentimento de luto muito forte nas faixas.
Os arranjos flertam não somente com o folk, que é a referência mais óbvia, mas também com o clássico congregacional. O álbum ainda possui notas de indie rock e de dois subgêneros do folk, o art e o goth. Porém, o destaque não está tanto nas melodias, mas nas letras. Os instrumentos musicais parecem fazer eco ao luto presente nas letras de Folklore.
Talvez Taylor nunca confirme, mas Folklore pode ser interpretado como um álbum repleto de referências literárias. É quase impossível ouvir exile, a quarta faixa do álbum, sem pensar no dueto entre Daisy e Billy, do livro Daisy Jones & The Six, escrito por Taylor Jenkins Reid. Os diálogos dolorosos, o final em aberto, a crueza das emoções… tudo está lá. É uma música de partir o coração e, portanto, perfeita.
Ela também parece ter passado um tempo lendo as irmãs Brontë durante a quarentena. Em Folklore, encontramos pelo menos duas músicas cujas letras fazem referências diretas a romances das Brontë: invisible string possui um verso retirado de Jane Eyre, de Charlotte Brontë, e my tears ricochet é completamente inspirada no lamento de Cathy, de O Morro dos Ventos Uivantes, o clássico gótico de Emily Brontë. A Billboard, por exemplo, chamou my tears ricochet de uma música gótica, e isso não é à toa.
Leia também >> Poly Styrene: feminismo, ativismo negro e resistência no punk
Não é novidade vê-la usando referências literárias quase diretas em suas músicas, mas Folklore é um álbum que nos dá espaço para respirar melhor entre uma frase e outra, o que talvez nos faça atentar mais para esses detalhes. Taylor nos presenteou com um álbum melancólico sobre mulheres tristes, e inseriu referências literárias para deixá-lo ainda mais perfeito. Dessa maneira, é difícil não gostar do álbum.
Taylor dá palavras a sentimentos que, muitas vezes, não sabemos nomear. Ou, como diz a faixa epiphany, “And some things you just can’t speak about” (“E você simplesmente não consegue falar sobre algumas coisas”, tradução livre). Mas se pode cantar sobre com elas nos fazem sentir. E ouvir Folklore é como sentir-se abraçado pela tristeza, pela saudade, pelo luto. É um álbum de uma mulher triste e talentosa para todas nós, também soturnas e nostálgicas neste momento.
Tive a impressão, durante todo o álbum, que Stevie Nicks apareceria a qualquer momento. Tanto nas fotos oficiais quanto na postura vocal, Taylor parece ter bebido da mesma fonte da Stevie de meados dos anos 1970 ao criar Folklore. Aliás, é possível perceber uma referência clara ao folk rock e ao rock psicodélico daquela década em quase todas as músicas do disco.
Leia também >> Stevie Nicks: revolução, memória e potência feminina
Embora o mais óbvio seja associar a melodia predominante a Aaron Dessner, da banda The National, seu parceiro musical em Folklore, é importante lembrarmos que Taylor não é uma mulher óbvia. Ela sempre planejou com cuidado suas composições e sua imagem e, apesar de Folklore não parecer arquitetado com tanto cuidado, é sua obra mais madura até agora, o que se dá não somente pelo talento ou pela estrutura do álbum, mas também pela coesão de referências presentes nas faixas, que misturam a sensação lisérgica de meados dos anos 60 e início dos 70 com as batidas suaves da cena indie atual.
mirrorball é um exemplo perfeito disso, já que possui uma sonoridade semelhante às músicas de rock alternativo dos anos 1960, assemelhando-se, por vezes, a Tommy James & The Shondells. seven também é uma balada ao estilo daquelas feitas naqueles tempos. Tudo está lá: a batida suave dos instrumentos, os vocais num estilo sussurrado, a letra triste e nostálgica. Já august, a faixa seguinte, segue o mesmo padrão, aproximando-se um pouco de Elliott Smith e seu álbum, “XO“. Toda essa inspiração no passado faz sentido, já que não é possível viver o presente. Só no passado temos refúgio agora.
A palavra folclore possui origem no inglês folk-lore, sendo folk povo e lore conhecimento. De forma geral, o folclore são as histórias que fazem parte de nós enquanto identidade cultural. Isso não deve ser levado levianamente no álbum de Taylor.
folklore é uma coletânea de histórias que possuem significado para ela, sejam aquelas tiradas de livros ou as mais pessoais. the last great american dynasty, por exemplo, é a representação perfeita disso, já que conta a história de Rebekah Harkness, uma mulher que possui uma vida conturbada, atravessada pela má fama, e que morou na casa que agora pertence a Taylor.
Leia também >> O espaço para autoaceitação na música pop
Todavia, talvez ela não tivesse se interessado em contar a história de Rebekah, homenageando-a em uma música, caso ela não estivesse imiscuída em seu folclore pessoal, de mulher louca. “There goes the maddest woman this town has ever seen. She had a marvelous time ruining everything.” (“Lá se vai a mulher mais louca que esta cidade já viu. Ela se divertiu bastante estragando tudo“, tradução livre)
Nem todas as histórias são baseadas nela ou em pessoas reais, entretanto, e talvez seja isso o que faz com que Folklore seja um álbum tão maduro. Taylor permitiu-se, pela primeira vez, escrever ficção em suas letras, o que certamente a elevou como compositora, já que ela não somente fez isso, como o fez perfeitamente, criando um folclore próprio dentro do álbum – de forma metalinguística.
Embora seja possível dizer que Taylor adotou um novo estilo musical, percebo mais a obra de uma artista sensível e sensibilizada pelos tempos pandêmicos e pelo isolamento, que deixou-se sentir e despir-se da imagem de diva do pop para abraçar um lado vulnerável de forma nunca feita antes. É como se Taylor estivesse tirando todas as máscaras que usou ao longo da carreira num momento em que somos obrigados a usá-las.
Leia também >> Delia Derbyshire: Doctor Who, música eletrônica e luta por igualdade
Existe um tom de insegurança e vulnerabilidade em Folklore, apesar de ela nunca ter soado tão segura. As letras, para além de melancólicas, também são como nervos expostos. Ainda na calmaria das melodias, há dores, tormentos e questionamentos que põem em xeque todas as certezas dos álbuns anteriores. Até mesmo as músicas mais felizes do álbum são tristes, mas não são assim as histórias de nossas vidas?