O Olho de Lilith: um olhar erótico na poesia feminista nordestina

O Olho de Lilith: um olhar erótico na poesia feminista nordestina

Em tempos em que o preconceito regional do Brasil recentemente ganhou, novamente, a mídia, nada mais importante do que ressaltar as obras nordestinas e sua qualidade com uma resenha do livro “O Olho de Lilith“, fruto do projeto Escritoras Cearenses (Escritoras CE) e publicado pelo selo Ferina. É interessante que na contracapa dessa antologia poética, a poeta e organizadora Mika Andrade escreva: “caço poetas sentada no chão das livrarias, encontrando, com muita dificuldade, os nomes das mulheres que resistem entre os vários homens publicados. No entanto, o que raramente encontro são poetas nordestinas”.

Ela, portanto, levanta não apenas o preconceito de gênero que ainda marca a literatura poética. Ainda que haja grandes nomes femininos no meio, a discrepância de publicações ainda é considerável – algo que levaria Hilda Hilst, por exemplo, a explorar novos campos de escrita. E dos nomes que se sobressaem, também as marcas de uma padronização caucasiana e de origem ou estrangeira ou sulista mostram-se presentes.

Em “O Olho de Lilith“, então, o erótico torna-se palavra. A voz das não ouvidas é transformada em grito através da escrita ritmada, embora nem sempre rimada. É a luta em palavras para que o direito à autonomia sobre o próprio corpo possa ser exercido e tornado fato ao invés de apenas palavras em um discurso vazio. O grito ecoa, como o prazer de uma mulher que se liberta. E escancara assim os (des) pudores de indivíduos que tiveram essa parte de si ocultada também de si.

Sexualidade feminina usualmente conectada à violência

Eu escrevo esta apresentação como quem tenta matar vários fantasmas e digo a vocês, leitoras e leitores: não é fácil. Não é fácil, porque a cada onze minutos uma mulher é estuprada e, quando a vítima faz a denúncia, a culpa do crime se volta contra ela”. Assim escreve a curadora Jarid Arraes. E não é fácil ler que a sexualidade feminina tão usualmente é conectada à violência. Não pouco se fala sobre o recurso das mulheres na geladeira no entretenimento. E não raro é ver que as mortes ou outras dores femininas como recurso de roteiro também estão atreladas a crimes sexuais. E isto é apenas um reflexo da sociedade.

A sexualidade feminina é vislumbrada como objeto de desejo masculino, não como parte de uma mulher enquanto ser humano. Se não serve como tentação, serve como sofrimento. A mulher, contudo, é geralmente vista como coadjuvante de sua própria sexualidade. Nunca é, portanto, a agente viva que a experimenta. E quando a experimenta, é vilã. É a bruxa das histórias, que tenta os homens em seus instintos animalescos, os quais não sobrevivem ao velho canto das sereias. E é tão triste que às sereias não seja permitido cantar para si e por si.

Então, ao ler “O Olho de Lilith“, vem esse misto de sentimentos. É a dor de saber que enquanto algumas já possuem uma liberdade de falar de sua sexualidade ou de ler sobre isso, outras tantas ainda morrem. E são culpadas, são queimadas por apenas serem. Isto, contudo, não retira o dever de falar sobre. Afinal, as mulheres também são seres dotados de desejos, cujos prazeres e cujo corpo ainda são pouco explorados, como se vê, por exemplo, no livro “Viva a Vagina“.

O Olho de Lilith
Edição de “O Olho de Lilith”. Foto: Delirium Nerd
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A linguagem feminina não pode ser crua como em “O Olho de Lilith”?

Certa vez, no livro “Cenas Londrinas de Virginia Woolf, havia uma frase introdutória, de algum tradutor ou editor masculino desacostumado com a escrita crua, pura, sem rodeios de Virginia – algo a que chamou de uma escrita masculina da autora. No entanto, desde então, atormenta a pergunta: o que seria uma escrita masculina? Ou ainda melhor, o que diferencia uma escrita masculina de uma escrita feminina? E é engraçado que na visão popular, a mulher ora seja vista como a dama dos floreios e ora seja vista como a carrasca matriarca. Não há meio termo. Mas o que tampouco há é o espaço para a que a escrita, crua, sincera, pura de desejo e carregada de sexualidade abra caminhos em meio às mulheres.

O que aqueles que defendem essa padronização genérica se esquecem é de que o próprio meio editorial é seletivo. Em um momento em que a internet possibilita a publicação diversa e inclusiva, esquece-se que não apenas nem sempre foi assim, como o mercado editorial ainda continua seletivo. De fato, a publicação de mulheres tem melhorado. Hoje encontra-se autoras negras, trans, nordestinas, embora não se possa dizer ainda que não é sem dificuldades, luta e resistência delas.

Ao estabelecer uma definição com base em um histórico, contudo, é preciso analisar que nem sempre houve essa brecha. Muitos livros foram queimados – figurativamente ou literalmente. Muitas vozes foram silenciadas. Quantas outras autoras que não a europeia caucasiana Virgina Woolf não poderiam ter sido publicadas ou foram ignoradas, porque não possuíam a escrita da dita “feminilidade”?

O sensual é político em “O Olho de Lilith”

De modo algum quer-se desmerecer o trabalho de Virginia Woolf, uma mulher importante para as lutas feministas, sim. E “O Olho de Lilith” sequer chega a mencioná-la. Mas o que a coletânea brasileira faz repensar é tanto a linguagem utilizada quanto as escolhas políticas e sociais por trás dessa escolha. As autoras poderiam ter retratado o sexo de forma figurada, mas optaram por ir direto ao tema do prazer, sem rodeios. E ao escolherem dessa forma, também foram contra um padrão imposto socialmente.

A escrita de “O Olho de Lilith” varia por óbvio. São autoras distintas reunindo suas visões diversas. Mas, em geral, são diretas. Querem explorar o prazer em sua natureza, a voracidade do desejo. Para quem está acostumada a uma poesia muito figurativa, ao estilo da poesia de Rupi Kaur e Amanda Lovelace, talvez soe estranho. Está mais próxima da escrita de Hilda Hilst, mas possuem suas particularidades. E esse estranhamento é importante para que se rompa com uma norma invisível.

Minha carne é profana: perdoai. não: minha carne é profana. perdoai: já não importa. não importa: sinto o afago. e um sopro: arrastando tudo por dentro”. Escreve Sara Síntique em Afago. Diante do prazer, o que é o perdão? Talvez seja o momento do paraíso ser reconstruído como essa vivência dos desejos sem a castração metafórica e cultural. E como escreve Jesuana Sampaio em Profanidades: “Serei sua. Sem deixar de ser minha“.

o olho de lilith
Edição de “O Olho de Lilith”. Foto: Delirium Nerd

O olho de Lilith: a visão daquela que foi expulsa do paraíso

Lilith, conta o mito, foi a primeira mulher de Adão. Ao se recusar, contudo, a se submeter a ele, foi expulsa do paraíso. E durante eras, Lilith é tomada como um demônio, porque ousou acatar a vontade masculina. Lilith questionou a autoridade de quem lhe era igual e, por isso, padeceu. Não é por acaso o título de “O Olho de Lilith“.

As mulheres são expulsas de tantos campos. Basta olhar nas ruas ao amanhecer ou ao entardecer. O mundo é dos homens, porquanto as mulheres estão acorrentadas. Elas estão presas em prisões culturais, acometidas pelo peso da culpa de quando tentam se libertar. “Porque o mundo é perigoso”, toda mulher ouve um dia. Mas quem é o perigo, se ensinam a todas que a vivência de sua integralidade, o prazer de brincar com a língua, leva à dor?

O Olho de Lilith“, enfim, é um desses livros que dá prazer em ler. Transforma a raiva por uma sociedade em movimento. Desperta o desejo. Faz repensar a forma como o prazer feminino é visto e retratado, como é sentido. Porque a sexualidade é humana, mas nem todas são livres para vivenciá-la. E dá gosto ler algo brasileiro, algo que não se restringe à literatura do Sudeste e do Sul, para mostrar que a mulher brasileira escreve bem, a mulher brasileira não é apenas o estereótipo da sensualidade em prol do prazer masculino, e a literatura nordestina é vasta e deve ser lida com a seriedade que merece.

Anna K. Lima, Argentina Castro, Ayla Andrade, Bianca Ribeiro, Jesuana Sampaio, Mika Andrade, Nádia Camuça, Nina Rizzi, Sara Síntique, Suellen Lima, Vitória Régia. Todas mulheres que mostram, como nas palavras de Síntique em Xota, “que erudição se rende aos gemidos / liquefeita / rompe o silêncio do mundo“.


O Olho de LilithO Olho de Lilith [Antologia erótica de poetas cearenses]

Organização: Mika Andrade

Selo Ferina 

128 páginas

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Edição realizada por Isabelle Simões.

Escrito por:

136 Textos

Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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