O Gambito da Rainha: a minissérie com nome estranho que o mundo todo assistiu

O Gambito da Rainha: a minissérie com nome estranho que o mundo todo assistiu

Ao descobrir a febre do xadrez online na quarentena é de se supor que o algoritmo da Netflix siga firme e forte depois do lançamento de O Gambito da Rainha. A minissérie, lançada em outubro pela plataforma, já é a mais assistida da história do streaming, ficando em primeiro lugar em mais de sessenta países. Assim como outros recentes sucessos, a obra é uma adaptação da novela, publicada em 1983, de Walter Tevis.

Estrelada pela atriz estadunidense Anya Taylor-Joy, a minissérie narra a ascensão da órfã Elisabeth Harmon ao Olimpo do xadrez mundial. Um fato curioso sobre Anya, de 24 anos, é que sua mãe tem ascendência africana, espanhola e inglesa, e o pai é argentino escocês. Os traços muito característicos da atriz chamaram a atenção de uma agência de modelos, fazendo com que este fosse seu primeiro trabalho ainda muito nova.

A profissão não durou por muito tempo, porque aos 16 Anya decide se mudar para Nova Iorque para estudar atuação. Não demorou para que a jovem atriz conquistasse um papel importante como Thomasin em A Bruxa (2015), do diretor Robert Eggers. Ela também pode ser vista em outra adaptação para o cinema, como Emma, uma das maiores personagens de Jane Austen.

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Anya Taylor-Joy como Thomasin em “A Bruxa” (2015). Imagem: reprodução

A história de “O Gambito da Rainha”

Em O Gambito da Rainha, sua personagem, Beth, tem o estigma da genialidade que vem acompanhado de uma tendência aos narcóticos. Ela, porém, é uma sobrevivente que perde a mãe em uma acidente de carro, no que é contemplado como um milagre.

Sem ninguém para cuidar dela, Beth se muda para um orfanato que tem como prática medicar crianças para que aceitem seu destino com mais tranquilidade. Portanto, ela aprende a guardar a pílula verde, uma espécie de Rivotril, e escolher as noites para tomar uma maior quantidade antes de dormir e expandir sua mente, o que se torna a tábua de salvação da criança.

Nas aulas, muito adiantada nas aulas de aritmética, Beth é enviada para o porão para limpar os apagadores de lousa. Em meio a fumaça branca causada pelo giz, ela observa o zelador Mr. Scheibel muito compenetrado em um jogo desconhecido. Isso faz com que a menina passe a se encantar pelas infinitas possibilidades daquela base quadriculada e cheia de peças curiosas. 

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Mr. Scheibel e Beth ainda criança, aprendendo a jogar xadrez. Imagem: Reprodução.

No orfanato e talvez na vida, Jolene (Moses Ingram) é sua melhor amiga, uma adolescente negra que nunca é escolhida pelos casais que visitam o lugar. O que acaba acontecendo com Beth, que é levada pelos Wheatley para o subúrbio de Lexington, Kentucky. O pai adotivo é ausente e não ficamos sabendo muito sobre ele. Porém, a mãe acaba se tornando sua melhor amiga e agente para os jogos de xadrez que Beth passa a participar enquanto cresce, derrotando um marmanjo por vez.

Jolene e Beth já adolescente, ainda no orfanato. Imagem: reprodução.

Comparação com o livro

No ótimo artigo de Sarah Miller para o New York Times The Fatal Flaw of “The Queen’s Gambit”, a autora se debruça sobre a escolha de casting da minissérie. Como leitora assídua do livro e grande admiradora da obra de Tevis, defende que para que a história da órfã prodígio do xadrez funcionasse, Beth Harmon nunca poderia ser bonita. Pelo menos não com essa beleza tão óbvia de Joy.

No artigo, Miller ainda prova com trechos do livro como toda a base da construção dessa personagem é a aceitação física, que claro, eventualmente vem em uma autoestima conquistada através do xadrez. Portanto, isso nos leva a pensar nesse recorrente intercâmbio entre literatura e agora televisão, em grande parte pela crise criativa. Ao confundimos livros com séries, o próprio exemplar do livro de Walter Tevis pode ser encontrado agora para venda com o rosto belo e as madeixas ruivas de Anya Taylor-Joy.

Mas apesar do importante alcance e a capacidade de introduzir fôlego ao mercado literário através desse tipo de produção, nos perguntamos para onde vai a magia da história escrita, antes generosa e nos permitindo desenhar nossos próprios personagens?

Pontos positivos da minissérie

Entretanto, gostamos muito da relação de Beth com sua mãe adotiva, Alma Wheatley (Marielle Heller), uma mulher que tem a chance de subverter a Mística Feminina através da filha adotiva. Elas têm uma relação muito companheira, apesar da inclinação de Alma em relação as bebidas alcoólicas, o que acaba despertando outro vício em Beth.

A mística feminina, termo criado por Beth Friedman no pós-Guerra, traz uma visão complexa sobre a construção dessa mulher ideal dos subúrbios e do sonho americano – todas fadadas a uma vida moldada e reclusa nas cozinhas esperando seu marido voltar do trabalho.

Interessante notar, todavia, como a realidade de Beth vem para estipular um paralelo intrigante em comparação as outras mulheres. Enquanto viaja pelo mundo e é bem sucedida, comprando roupas caras, as ex-colegas de Beth estão presas em suas casas com mais de um filho para criar. Uma trívia, Marielle Helle, além de atriz, é roteirista e diretora muito bem sucedida em festivais independentes como Sundance.

Além disso, a minissérie mostra alguns flashbacks com a mãe biológica de Beth e também o que seria seu pai, mas essas informações ficam muito nas entrelinhas, sem trazer algo realmente concreto para a história. Talvez para reforçar a confusão mental da enxadrista e sua busca pela autodestruição.

Alma Wheatley e Beth Harmon em cena de o Gambito da rainha. Imagem: Reprodução.
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No geral e em relação a crítica do New York Times, claro que a série é esteticamente impecável com seus looks dos anos 50. E de novo, temos uma ex-modelo como protagonista. Nos perguntamos apenas sobre os perigos de uma possível pasteurização dos dramas, principalmente os da Netflix. Na HBO, por exemplo, ainda podemos nos deparar com uma sujeira, tanto na estética quanto no roteiro e na construção dos personagens, o que faz com que eles nos pareçam mais reais.

Em O Gambito da Rainha, até mesmo uma protagonista alcoólatra, que pode ter passado semanas se embebedando e comendo besteiras requentadas, aparece toda glamourosa no torneio de Xadrez, talvez apenas com uma pequena olheira. Apesar disso, a minissérie foi aclamada pela crítica e pela audiência, com 99% de comentários dos críticos e 95% dos telespectadores pelo Rotten Tomatoes.  

Ainda no artigo de Sarah Miller, ela levanta a questão da falta de conflito, principalmente porque não existe uma questão de autoestima para a Beth Harmon da Netflix. Dessa forma, seria mais interessante abordar esse lado do fascínio apesar da beleza, e de acordo com as diretrizes do livro. Como já foi retratado em diversos personagens masculinos na história da televisão, poderia ter ficado ainda melhor em O Gambito da Rainha.


 

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Jacu metropolitana com mente abstrata, salva da realidade pelas ficções. Formada em comunicação social, publicitária em atividade e estudante de Filosofia. Mais de trinta anos sem nunca deixar comida no prato.
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