Como grande admiradora dos cinemas de terror e horror, parece-me impressionante e interessantíssimo o modo como as grandes obras do gênero mexem com os brios do espectador de uma forma tão intensa, imediata e, no entanto, duradoura (o famoso efeito “não consigo dormir”, quando a cozinha da sua casa se transforma num ambiente hostil naquelas horas pós-rever O bebê de Rosemary, nas quais você questiona também qualquer mínimo barulho proveniente do apartamento ao lado − afinal, quem confia nos vizinhos?). Para mim, o efeito coletivo de uma obra de terror é ainda mais digno de nota: na sala escura, em meio a um ou outro grito mais ou menos contido, é notável ver como as ferramentas narrativas e plásticas do filme são capazes de direcionar − isso quando dá certo − o público, mantendo um mecanismo de tensão e relaxamento necessário para que a trama funcione e possa causar comoção.
Quando todas as engrenagens estão bem lubrificadas, e isso é o mais fascinante, o terror faz com que temamos não o que vemos na tela, mas o que imaginamos que se revelará em seguida, o que pressentimos, o que enxergamos tão somente nas nossas projeções mentais, que quando não convertidas em imagens precisas são tanto mais assustadoras, mas nem por isso menos reais (como explicar que tantos espectadores descrevam os olhos do bebê que Polanski nunca mostrou? Ou se recordem da bruxa que os jovens de Blair nunca captaram?).
Quando funciona, o cinema de terror apela para o inconsciente e traz à tona medos não verbalizados, ou faz alusão aos temores coletivos mais arraigados da vida em sociedade. Não é à toa que alguns dos cineastas mais compromissados com o mapeamento psicanalítico dos seus personagens, como David Lynch ou Bergman, tenham também flertado com os elementos do gênero.
Pois foi justamente para buscar essa sensação, para mim inteiramente deliciosa, de ser levada à expectativa da revelação abrupta e violenta do desconhecido, que eu me dirigi logo na estreia à sessão de A Bruxa, do para mim desconhecido Robert Eggers, tendo lido quase nada sobre o longa − apenas as propagandas incessantes sobre seu caráter particularmente assustador e os conselhos do meu irmão, um fã maior das artes narrativas do medo (da literatura detetivesca ao slasher cinematográfico).
Curiosamente, A Bruxa não se revelou particularmente assustador − o imensamente inferior Annabelle, com seus sustos meticulosamente coreografados, fez meu coração pular muito mais vezes, por exemplo. A obra de Eggers, no entanto, não prima pelo sobressalto, ainda que o uso de ruídos e música siga o be-a-bá do filão. Na verdade, o filme pareceu decepcionar alguns dos espectadores presentes, claramente movidos pela propaganda em torno da estreia, e desapontados por não terem derramado seus refrigerantes involuntariamente − insatisfação essa que se mostrará a reação previsível de qualquer purista que venha aqui buscar o terror tradicional e se depare com os longos diálogos em inglês arcaico, em que os personagens confessam timidamente seus sonhos e anseios frustrados.
Não é à toa que o realizador tenha definido seu trabalho como um “drama de terror”. Ao narrar as agruras de uma família de colonos ingleses na América do séc. XVII que, uma vez expatriados da vila em que moravam, precisam lidar com as selvagens forças (naturais e sobrenaturais) da região inclemente em que se fixam, cujo epicentro é a floresta invernal próxima (o símbolo eterno do perigo desconhecido no cinema do gênero), o filme constrói uma ambientação em que o demoníaco é apenas a revelação externa de uma paisagem mental de permanente carestia. Nesse sentido caminham a fotografia e a direção de arte, que inventariam o inóspito, abrindo espaço para que o contraste entre o vermelho de uma capa e o verde profundo de uma floresta sob um céu sempre cinzento possa parecer tão violento quanto um assassinato.
A narrativa, impulsionada por uma incrível reconstituição/reinvenção de época, triunfa ao precipitar o espectador abrupta e fatalmente no universo de insegurança, medo, desconfiança e paranoia em que vivem os personagens, no qual o fervor religioso cego é a única tradição a ser compartilhada. Nesse contexto, o satânico se coloca como o externalizar da repressão e vigilância constantes − o filme começa com um ritual de expatriamento, e segue com a penitência da protagonista, em contrição por pecados que ela não sabe e não tem condições de definir ou expurgar. De fato, seria possível tomar todos os elementos sobrenaturais da narrativa como simbolismo puro e encararmos a obra como um drama de formação centrado na personagem de Thomasin.
A PARTIR DAQUI, PEQUENOS SPOILERS DE A BRUXA. LEIA POR SUA CONTA E RISCO!
Se é verdade que todos os filmes sobre bruxas admitem uma leitura feminista, já que essa figura está profundamente ligada à opressão histórica contra a liberdade e a independência (e a sexualidade, em especial) da mulher, A Bruxa mergulha sem amarras nessa discussão.
Mostrando uma Thomasin (Anya Taylor-Joy, brilhante como todo o elenco) que comete crimes seguidos sem ao menos se dar conta das acusações que lhe serão imputadas, o filme delineia a trajetória trágica da mulher sem quaisquer escolhas. Culpada por atingir a puberdade e ser incapaz de conter o próprio corpo ou traçar sozinha seu destino, sua simples presença de mulher se tornando adulta faz ruir o cotidiano monótono da família. É ela quem descuida do bebê da família e o entrega aos braços das forças do oculto (e reinteradas vezes tenta timidamente rejeitar o papel maternal que lhe imputa a mãe com relação aos irmãos menores).
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Se o amadurecer do seu corpo desperta o interesse do irmão Caleb, ou se admira a taça de prata da família, é a sua mera existência num mundo não mais preparado para apagar sua individualidade que faz ruir a ordem até então estabelecida. Thomasin é tratada ora como uma serviçal, ora como um peso do qual os pais planejam livrar-se logo, mandando-a para “servir” a outra família. Ela comete o crime (fatal e indesculpável) de ousar manter algum traço de independência num contexto em que nem aos homens isso é facultado: ela deseja adentrar a floresta com o irmão, sonha com a antiga casa e seus vitrais, sente saudades de comer maçãs (o símbolo maior do pecado trazido por mãos femininas).
No fim das contas, a única escolha (se é que podemos usar essa palavra aqui) para Thomasin é se tornar A Bruxa que ela já era aos olhos alheios. E assim reivindicar seu caráter de mulher não inteiramente submissa nesse ambiente ainda sem qualquer possibilidade de iluminação. E acesas as luzes da razão, em 2017, mulheres ainda são julgadas e condenadas (e assassinadas, como prova o caso das jovens argentinas que ousaram viajar sem a companhia de um homem) pela força de uma independência que desafia a ordem dos homens. Tornar-se uma mulher livre é, ainda, tornar-se bruxa.