Da Magia à Sedução (Practical Magic, 2001) era um filme que passava constantemente na TV aberta, e um dos meus favoritos sobre bruxas quando era criança. Baseado no romance da autora Alice Hoffman e dirigido pelo diretor Griffin Dunne, o filme me chamava atenção principalmente nos elementos mágicos presentes da trama; todo aquele ar de mistério, aquele medo que a vizinhança tinha das irmãs Owens, que eram bruxas que viviam numa cidadezinha pequena e ainda guardavam segredo de um feitiço que ninguém conseguia confirmar a veracidade.
Quando assisti Da Magia à Sedução na infância, notava que as irmãs eram “diferentes” de todas aquelas mulheres “normais”, suas vizinhas que viviam cercadas por uma rotina entediante, onde eram donas de casa, dedicadas unicamente ao lar e às rotinas escolares dos filhos. Pensava que esse é um dos motivos para essas mulheres odiarem a dupla de irmãs bruxas, onde sempre ofendiam com xingamentos e insultos. Elas tinham inveja porque queriam ser como elas, possuir a mesma magia e anormalidade em suas vidas.
Eu não queria ser como suas vizinhas, queria ser uma bruxa também. Quando resolvi rever o filme já adulta, passei a analisar a obra com olhares completamente diferentes: o filme utiliza a magia e a bruxaria das irmãs para contar uma história sobre relacionamento abusivo, que além disso, quebra a ideia da rivalidade entre mulheres e mostra o poder da amizade feminina. Portanto, passei a gostar ainda mais após assisti-lo recentemente. Se você também viu quando era criança, recomendo que veja novamente. Já adianto uma observação: A trilha sonora é ótima, contendo canções de Joni Mitchell e Stevie Nicks, que combinam perfeitamente com a trama do filme.
Analogia da origem do feitiço com o enfrentamento das mulheres que buscam liberdade
Da Magia à Sedução começa explicando a origem do feitiço que acompanha toda a linhagem das mulheres da família Owens, que começa com a personagem da Tia Maria há mais de 200 anos.
Maria foi a primeira bruxa. Tentaram enforcá-la, mas descobriram sua magia a partir do momento que ela salta e desfaz a corda. A utilização do elemento mágico na trama para a apresentação da personagem nos faz lembrar de quem eram as tais bruxas que foram queimadas e enforcadas antigamente.
Eram mulheres que ousavam pensar por si só, buscavam autonomia, liberdade e que não seguiam os costumes religiosos ou da sociedade em sua época. Foram executadas e enforcadas ao comando da igreja quando notavam que não conseguiam mais controlar suas vidas e seus corpos. Podemos ver que não mudou muita coisa até hoje, né? Não somos queimadas ou enforcadas, mas somos privadas da nossa autonomia sobre nossos corpos, tendo os nossos direitos violados ou sofrendo retrocessos até hoje.
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Maria é apresentada no começo da história como uma dessas mulheres que ousam desafiar os costumes da sua época. Ela se apaixonou por um homem fora de um casamento tradicional, engravidou e foi abandonada por ele após esperá-lo na ilha em que vivia, pensando que seriam felizes para sempre.
Quando a partir de sua mágoa descobre que sua liberdade era limitada, que não poderia confiar nos homens e em suas palavras de “amor”, ela lança um feitiço que estará presente na vida de todas as mulheres da família Owens. Todos os homens que se apaixonarem por uma mulher da linhagem serão mortos, e não há como impedir esse acontecimento. A origem do feitiço Maria é uma espécie de recado para ser passado por gerações: não confiem nos homens, pois um dia eles irão te decepcionar profundamente.
Maria era uma mulher livre que desafiou os costumes e escolheu um companheiro por quem se apaixonou, mas foi abandonada com um filho no ventre, como milhares de histórias semelhantes acontecem até hoje. Podemos pensar no abandono da paternidade, que é comum até hoje. Os homens seguem com seus sonhos e projetos normalmente, porém a mulher precisa prosseguir com a responsabilidade de criar um filho sozinha, tendo que desistir dos seus sonhos e projetos. A liberdade das mulheres é limitada desde quando o mundo é mundo. Você pode se apaixonar por quem quiser, mesmo que não seguindo um casamento tradicional atualmente, mas não pode confiar inteiramente nos homens.
A sororidade das irmãs Owens em “Da Magia à Sedução”
A união das irmãs Sally Owens (Sandra Bullock) e Gillian Owens (Nicole Kidman) é fator mais importante que conduzirá toda a história. As duas vão morar com suas duas tias quando ainda são crianças e constroem uma relação de cumplicidade mútua. Como as crianças da vizinhança não gostam delas, pois sabem que são bruxas, sempre atacam as irmãs com hostilidade e menosprezo. As duas passam então a compartilhar entre si todos os sonhos e desejos.
Sally é uma garota que tem medo de se apaixonar um dia, por saber sobre o feitiço na família, então resolve imaginar e criar em sua mente um homem que seria impossível de existir. Já sua irmã Gillian sonha com o dia que crescerá e poderá se apaixonar por alguém.
Quando as irmãs já estão adultas, Gillian sai de casa para viver com o homem por quem se apaixonou e Sally – que possui magias mais fortes que a da sua irmã – passa a desejar ter uma vida normal. Ela não quer praticar magias ou feitiços, e sim viver normalmente.
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Com o passar dos anos, Gillian entra em contato desesperada com a irmã e Sally vai ao encontro dela para socorrê-la. É quando ela descobre que Gillian sofreu violência doméstica decorrente de um relacionamento abusivo. Em nenhum momento sua irmã a questiona, apenas faz o que precisa para ajudá-la a sair dessa relação, que muitas vezes é decorrente de uma manifestação de poder e controle sobre a esposa ou namorada, e tantas mulheres vivenciam.
As duas saem da cidade em que Gillian se encontra, mas seu namorado acaba descobrindo e ela passa a sofrer uma nova ameaça de violência. Mas as duas não são transformadas em donzelas indefesas à espera de um homem para salvá-las na trama, e as duas juntas acabam conseguindo se livrar desse perigo.
A união feminina para salvar outra mulher
Em um momento da história, Sally e suas tias precisam da ajuda das vizinhas, reunindo um maior número possível de mulheres para tentar retirar as sequelas que o ex-namorado deixou na irmã. Trata-se de uma cena forte, que claramente faz uma analogia aos traumas psicológicos, ataques de pânico ou quaisquer tipos de sequelas que um relacionamento abusivo pode causar numa mulher que enfrenta esse tipo de violência, mudando drasticamente sua vida.
A partir de então, notamos que todo aquele estereótipo da rivalidade entre as mulheres que é manifestado pelas vizinhas é subvertido na trama. As vizinhas que pareciam entediantes, invejosas e hostis se unem para ajudar Gillian. Nesse momento podemos pensar na dificuldade de mulheres que não conseguem sair de um relacionamento abusivo, seja decorrente da dependência psicológica, dos pedidos de desculpas que esses homens violentos geralmente fazem após as agressões, prometendo que nunca faram novamente ou justificando que fizeram porque estavam irritados, tentando culpabilizar à vítima.
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Toda mulher conhece uma mulher que já vivenciou alguma espécie de abuso e agressão de homens. Gillian era uma mulher que sonhava em sair pelo mundo afora, se apaixonar e ser feliz, e acabou encontrando um homem abusivo. Ela própria que já conhecia todo o feitiço da família e o recado claro que Maria deixou nas próximas gerações: não deixe nenhum homem se apaixonar por você. Contudo ela acabou enfrentando essa violência. Outra analogia que podemos fazer com a realidade, onde mulheres vítimas de homens violentos são julgadas e culpabilizadas pelas agressões que sofrem.
A sociedade acaba cobrando uma justificativa do motivo de uma mulher estar em uma relação abusiva do qual não consegue sair sozinha, quando normalmente a preocupação no enfrentamento de homens violentos em relações com mulheres ainda não é algo devidamente discutido na sociedade em que vivemos. Nos noticiários vemos infelizmente a normalidade de casos de feminicídios e agressões que aumentaram com o passar dos anos, e pouca preocupação em discutir o cerne da questão e combater. Todas as mulheres estão à mercê de relações abusivas, mas o recorte racial e de classe nos mostra ainda que as mulheres negras e periféricas são as que mais se encontram vulneráveis e expostas aos diversos tipos abusos e agressões.
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Rever Da Magia à Sedução com o olhar de mulher adulta me proporcionou retirar várias lições feministas a partir de um dos mais famosos sobre bruxas dos anos 2000, e tenho orgulho de afirmar que continua sendo um dos meus favoritos. Afinal, somos todas descentes das bruxas que não conseguiram matar mesmo.
Da Magia à Sedução está disponível atualmente no streaming HBO Max.