Em 2007, o agente imobiliário John Maloof deu um lance de sorte em um leilão. Procurando por material fotográfico para a montagem de um livro, ele adquiriu, por 380 dólares, 30 mil negativos e 1.600 rolos de filmes não revelados que pertenciam àquela que viria a ser a um dos maiores nomes da fotografia de rua norte-americana: Vivian Maier, que, em seus 40 anos trabalhando como babá, acumulou uma vastíssima obra de mais 150.000 negativos, rolos de filme e gravações em áudio.
Maloof não foi o primeiro colecionador a encontrar o trabalho de Vivian. Parte de seu imenso corpo de trabalho fora adquirida na mesma época pelos colecionadores Ron Slattery e Randy Prow. Slattery chegou a publicar algumas das imagens online, mas a obra de Maier não se tornaria conhecida pelo público até Maloof, em 2009, decidir postar algumas fotografias dela no site de hospedagem de imagens Flickr.
A recepção positiva o incentivou a pesquisar mais sobre a mulher que havia tirado aquelas fotos. Em 2007, ao pesquisar o nome de Maier no Google, Maloof não encontrara resultado algum; mas, em 2009, encontrou um pequeno obituário que dizia que Vivian havia morrido alguns dias antes, aos 83 anos. Começava aí uma busca fascinante pela história de uma das artistas mais curiosas e enigmáticas dos Estados Unidos.
Vivian Maier: a vida de uma “espiã”
Maloof logo perceberia que a dificuldade de encontrar informações sobre Vivian não era acidental. Descrita por todos que a conheciam como uma pessoa intensamente fechada, Vivian mantinha sua arte longe dos olhos alheios e raramente compartilhava qualquer detalhe sobre a sua vida pessoal.
A maioria de seus conhecidos acreditava que ela era francesa, por seu sotaque. Porém, a pesquisa de Maloof revelou que na verdade ela nascera em Nova York, em 1926. Sua mãe era francesa, no entanto, e, em sua infância, Maier passou muito tempo em Saint-Julien-en-Champsaur, um pequeno povoado no sul da França. Anos depois, ela o retrataria em diversas fotografias.
O restante de sua vida pessoal é envolto em mistério. Acumuladora compulsiva, Maier tinha caixas e caixas de todo tipo de tralha, guardando desde recibos e negativos de fotos até pilhas de jornais. Tinha um fascínio especial por manchetes de crimes violentos, que usava como argumentos para sustentar uma visão cínica e pessimista do mundo. Não tinha contato com qualquer parente ou amizades íntimas. Mesmo muito reservada, era direta e firme em suas opiniões, externando uma visão de mundo socialista e feminista.
A atenção póstuma que sua obra recebeu talvez não a agradasse. Embora tenha, em um determinado ponto de sua vida, tentado imprimir suas fotos, Maier claramente prezava seu anonimato. Muitas vezes, apresentava-se aos outros com nomes claramente falsos, como “Smith”. Ao fazer compras em lojas, assinava seu sobrenome com grafias diferentes, identificando-se como “Meyers”, “Maiers” e muitos outros. Certa vez, ao receber uma pergunta sobre o que fazia da vida, ela respondeu: “Sou uma espécie de espiã”.
A babá que não gostava de crianças
Apesar de sua paixão pela fotografia, Vivian passou a maior parte de sua vida trabalhando como babá. No documentário “A Fotografia Oculta de Vivian Maier” (2013), amigos e conhecidos estipulam que sua escolha de profissão se devia às possibilidades que a função lhe oferecia, permitindo-lhe caminhar pelas ruas e dedicar tempo ao seu hobbie. Após trabalhar aos 25 anos em uma fábrica, a liberdade de poder passar os dias circulando pela cidade pareceu-lhe a escolha ideal.
Mas isso não era acompanhado por um talento natural ou mesmo gosto por crianças. Embora o olhar observador e atento de Maier, sem dúvida, possa tê-la ajudado na hora de exercer a ocupação, os depoimentos das pessoas de quem ela tomou conta pintam um retrato cheio de contradições, de uma mulher que parecia se importar pouco e muito com as crianças das quais cuidava ao mesmo tempo.
A memória de seu cuidado com dois irmãos os levou a sustentá-la em sua velhice, por exemplo. Outros testemunhos, entretanto, trazem relatos de negligência e explosões que às vezes resultavam em violência. Para Vivian, cuidar de crianças era muito mais um meio do que um fim.
Um espelho das ruas
O mistério em torno da figura de Vivian Maier e sua vida dupla como babá e artista é tão fascinante que, às vezes, o debate sobre o que a levou a esconder sua obra do mundo ofusca discussões sobre a obra em si. Seria um erro, no entanto, deixar o enigma de uma biografia se sobrepor a um trabalho tão potente e minucioso. Vivian tinha um talento especial para a captura do momento e para os detalhes que compõem um quadro rico e intenso. O resultado são imagens do cotidiano urbano que demonstram o quão cuidadoso era seu olhar sobre aquelas ruas e as pessoas que as frequentavam.
Maier teve muitas câmeras ao longo da vida, mas a mais marcante para a sua obra foi a Rolleiflex, que lhe permitia fotografar sem ser percebida. Por conta disso, muitas de suas imagens retratam emoções momentâneas, capturando, por exemplo, a desaprovação da testa franzida de uma mulher ou o choro de uma criança.
O uso da Rolleiflex também permitia que Vivian engrandecesse suas imagens com o uso dos ângulos. Como a câmera fotografava de um ângulo baixo, o sujeito retratado ganhava uma posição superior. Assim, momentos do cotidiano de pessoas de classes populares adquiriam poder e dignidade.
Suas fotografias em cores diferem um pouco do seu trabalho em preto e branco. O uso de filme 35mm permitia fotografias mais dinâmicas, às vezes beirando o abstrato. Em contraste com as imagens em preto e branco, em que o acontecimento ou sujeito retratados dominavam a cena, o foco dessas imagens parecia muitas vezes ser a cor em si.
Vivian Maier e a natureza do artista
Talvez a maior questão que mantenha vivo o fascínio em torno da vida e obra de Vivian Maier é a questão fundamental do que leva alguém a criar arte. Por que, nos perguntamos, acumular tão compulsivamente uma obra imensa sem nunca tentar compartilhá-la? E mesmo ao debruçar-nos sobre suas fotos, pulsa a dúvida: Será que Maier apreciaria o seu sucesso, ou se ofenderia ao ver o talento que escondeu tanto em vida à mostra para qualquer um ver?
É impossível encontrar respostas precisas para essas questões. Mas uma coisa é certa: Quando se fala em artistas que alcançam sucesso póstumo, a narrativa típica inevitavelmente cai em uma certa melancolia, um lamento pela valorização que a pessoa não obteve enquanto viva. Caímos nisso, porque pensamos pela perspectiva de quem consome e aprecia a arte, e por uma lógica que coloca a fama e o reconhecimento como objetivos incontestáveis de qualquer artista. E, no caso específico de Maier, caímos também na frustração de nos depararmos com a figura de uma mulher que, apesar de muito esforço para o contrário, resiste, mesmo no túmulo, a rótulos e generalizações simplistas.
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Será que Maier apreciaria o seu sucesso, ou se ofenderia ao ver o talento que escondeu tanto em vida à mostra para qualquer um ver? Perto do fim de “A Fotografia Oculta de Vivian Maier”, uma das mulheres que a teve como babá na infância reafirma as excentricidades de Vivian, bem como sua classe social e sua falta de interesse em status. “Ela fez o que queria,” diz. “Foi isso que ela me ensinou: que ela teve a vida que quis”.
Como qualquer outro testemunho, essa fala não é absoluta e incontestável. Contudo, ela sugere que, se há uma narrativa a ser formada a respeito de Vivian Maier, talvez esta não seja uma tragédia. Talvez seja um triunfo – o sucesso de uma mulher que, por toda a sua vida, buscou estar tão fora de alcance como continua sendo até hoje. Sua verdadeira essência jamais poderá ser impressa e pendurada em um quadro de uma exposição. E talvez esta tenha sido a sua maior vitória.
Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.