Dietland: a crítica à indústria da beleza toma forma de uma mensagem verdadeiramente feminista

Dietland: a crítica à indústria da beleza toma forma de uma mensagem verdadeiramente feminista

“Uma mulher não nasce: ela é criada. E em sua construção, sua humanidade é destruída. Ela se torna um símbolo disso, um símbolo daquilo: a mãe da terra, a puta do universo; mas ela nunca se torna ela mesma, pois isso é proibido.” ―

Andrea Dworkin

Mulheres estudaram, criticaram, teorizaram, combateram e resistiram à indústria da beleza desde as épocas mais cruéis. É em grande parte graças ao trabalho incansável de várias feministas que hoje podemos aproveitar de todo um corpus teórico sobre essa crítica, que consiste em pesquisas empíricas, grupos focais, coleta e análise de dados, e muito trabalho de campo. Em contraste com todo o trabalho político de mulheres investidas na luta para abolir a opressão sistêmica, a contemporaneidade iluminou a indústria da beleza com um foco diferente: ela passou a ser celebrada como uma escolha pessoal.

A narrativa atual é ao mesmo tempo a que diz que nós devemos nos orgulhar e amar nossos próprios corpos e a que a insiste que mudanças para conformar nossa aparência ao padrão vigente não são um problema tão grande assim. A mensagem que fica é paradoxal: devemos aceitar nossos corpos mas ao mesmo tempo também aceitar e consumir o padrão. O que isso pode nos dizer sobre nossa cultura?

Navegando por esses temas polêmicos, com uma abordagem extremamente crítica, a série Dietland é adaptação de um livro homônimo de Sarai Waters, e conta a história de Plum (Joy Nash), apelido de Alicia Kettle, uma escritora que gasta seu talento respondendo cartas de leitoras da revista Daisy Chains, que buscam na editora da revista Kitty Montgomery (Julianna Margulies) conselhos amorosos, dicas de beleza e confidência para assuntos pessoais. Juntamente com seu trabalho na revista, Plum faz bolos para a cafeteria de seu amigo Steven e responde às cartas das leitoras de Kitty. Kitty é a cara e Plum são as palavras.

A revista Daisy Chains, que antigamente tinha como objetivo transformar jovens garotas em jovens esposas, atualmente aposta em uma pegada mais “feminista”, usando termos como “empoderamento”, “escolha” e “positividade corporal”. Em comparação ao que é publicado na revista, as leitoras, na verdade, compartilham histórias de violência, auto-ódio, mutilação, abuso e disforias, sendo que a última moda entre as garotas parece ser o hábito de se cortar.

O fato de auxiliar garotas a lidar com os problemas de auto-imagem é uma questão forte à Plum, no sentido de que ela mesma sofre com as imposições de aparência: na fila para a cirurgia de redução de estômago, Plum se debate contra a ideia de que uma vez magra, sua vida mudaria. Ainda que ela seja adepta dessa ideia – ela costuma a se referir a “Alicia” como sendo seu novo eu, o verdadeiro eu, no peso adequado – Plum percebe com um pouco de resistência como essa indústria vende uma ideia de sonho baseado em aparências. 

Plum (Joy Nash)

AVISO: Contém spoilers da série a seguir

Participante ativa de grupos como vigilantes do peso, Plum convive nesse ambiente que reforça constantemente que você não é adequada caso não esteja no peso ideal, ao mesmo tempo que enfrenta a oposição de sua mãe e de seu melhor amigo Steven à cirurgia bariátrica. Nas cenas que retratam Plum em suas consultas com médicos e psicólogos, podemos perceber como o valor de uma pessoa é proporcionalmente variável de acordo com a percepção que ela causa em outros. Resumindo: uma mulher é valiosa apenas se ela agrada ao olhar masculino. Esses conceitos são expostos nos diálogos afiados entre as personagens e nos retratos verossímeis desses encontros.

Usuária de anti-depressivos há quase uma década, Plum carece de relações afetivas, tendo enfrentado o bullying, a rejeição e isolamento durante a juventude, ela reconhece sua virgindade como falta de interesse dela em relações sexuais e do mundo em relação a ela como algo que talvez seja consertado caso ela consiga finalmente adequar sua aparência ao desejos do mundo. Mas a série não deixa que esses clichês prevaleçam: a visão idealizada de Plum em relação ao corpo perfeito é constantemente posta à prova, questionado pelas personagens ao seu redor, criticada enquanto objetificante; essa abordagem apenas ganha força ao longo dos episódios, em um crescente radical.

A narrativa de Dietland parece também querer satisfazer a feminista que mora em nós. Paralelamente à história de Plum, uma nova onda terrorista assola os EUA: um grupo chamado Jennifer assumiu a autoria do assassinato de 12 homens anteriormente acusados de estupro e violência sexual. Grandes empresários, homens poderosos, exploradores e consumidores de sexo, da mídia e de outras corporações estão agora na mira de Jennifer, que tem o apoio tímido das mulheres das mais variadas classes e idades.

Estupradores começam a chover do céu: jogados de pontes em rodovias, de avião no centro da cidade, arremessados de edifícios. Jeniffer é a vingança das vítimas, e a atenção da mídia para os movimentos do grupo cresce a cada novo ataque. Um vazamento de informações do conglomerado midiático Austen Mídia – donos da revista Daisy Chains entre outras – faz Kitty e outros acionistas se preocuparem com um possível envolvimento do grupo Jennifer.

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Enquanto isso, Plum começa a ser seguida por uma garota estranha. Meio gótica, meio hipster, Leeta (Erin Darke) interpela Plum no café de Steven e escreve em seu braço “dietland”, que curiosamente é o nome de um livro escrito pela herdeira da fortuna do método de dietas Baptist. No livro, Verena Baptist desmistifica o modelo de dieta e conta a história verdadeira de sua mãe, que mesmo enclausurada e neurótica com o modelo de dieta, ainda teve que recorrer à cirurgia bariátrica e a remédios para atingir “a boa forma”.

A presença intrigante de Leeta acaba levando Plum a ter contato com o grupo secreto que atua dentro do prédio da Austen Media. Plum conhece Julia, trabalhadora do almoxarifado de maquiagens, que a convence a entregar a identidade das 50 mil garotas que entraram em contato com a revista por meio das cartas para a editora Kitty. Julia conversa com Plum sobre a necessidade de um resistência feminina frente aos avanços da misoginia na cultura e na sociedade e pretende entrar em contato com as garotas que denunciarem abusos e violências em seus relatos. É um pedido arriscado, mas a urgência de contra-atacar um sistema criado para disseminar desamor e auto-ódio está presente irrupções sociais e no ego de Plum: como vítima, ela exige reparação.

Kitty Montgomery (Julianna Margulies)

A rede de mulheres é eficaz, e por meio do contato com Leeta e Julia, Plum conhece Verena, a autora e herdeira do método de dietas Baptist. Verena possui um grupo de apoio à mulheres violentadas, e busca ajudá-las a recuperar parte da auto-estima e a focar no crescimento próprio. Verena tem uma proposta para Plum: ela a convida a fazer um “treinamento feminista” junto com o grupo de apoio, e no final do processo, Plum receberia 20 mil dólares: o suficiente para bancar sua cirurgia bariátrica. Mas o plano de Verena é que Plum desista da cirurgia e use o dinheiro para si mesma – seu treinamento é justamente para fazer Plum ser orgulhosa do próprio corpo. Durante o treinamento, várias ideias são debatidas e questões sobre a indústria da beleza, os padrões opressivos de comportamento, e a misoginia cultural da sociedade americana são levantadas pelas mulheres do grupo de apoio, assim como pela própria Plum.

Durante seu treinamento, Plum desiste de seus anti-depressivos. Em 9 anos, desde que começou a usar os medicamentos pela primeira vez, ela entra em contato com seus sentimentos e seu desejo sexual. Acostumada com a falta de libido e com a estabilidade de sentimentos, Plum começa a ter alucinações e explosões de raiva por conta da abstinência, mas ao mesmo tempo, consegue entrar em contato com seus desejos e ambições mais honestos. Neste ponto, a crítica à medicalização de pessoas fora dos padrões, por meio da história de Plum, nos mostra o quanto somos levadas a nos esquivar de nossos sentimentos e encarar os problemas do mundo como problemas nossos, internalizando o auto-ódio que a sociedade propaga.

Dietland chega em seu ponto máximo de radicalidade quando Plum encontra uma sala secreta dentro do abrigo de Verena. A sala consiste em uma instalação tecnológica conectada com servidores que reproduzem em tempo real os vídeos mais acessados em plataformas de pornografia. As imagens são projetadas nas 4 paredes da sala, deixando a espectadora imersa nas imagens pornográficas, envolta pelos sons das gravações.

A violência intrínseca presente nas pornografia fica óbvia quando Plum finalmente adentra a sala secreta. As mulheres presentes nas imagens são as mulheres consideradas desejáveis: jovens, magras, bonitas, bem maquiadas. Elas são o que Plum imaginava que seria quando voltasse de sua cirurgia, são o padrão do que uma mulher deveria ser, e ainda assim, como a vida tem tratado essas mulheres?

São imagens de mulheres sendo enforcadas, espancadas, estupradas. Mulheres que choram, que engasgam, desmaiam e pedem por favor. São essas imagens de violência e abuso contra as mulheres que estão neste momento provocando orgasmos nos homens mais comuns. Ou seja, se conformar com esse padrão é apenas se tornar uma presa mais visada. A conclusão de Plum parece saída de um livro de Andrea Dworkin ou apresentação de Gail Dines sobre como a indústria pornográfica torna a violência algo instigante ou sedutor para os homens.

É impressionante que tantos conceitos radicais e não lugares-comuns sejam abordados na série de forma tão direta. A crítica é viva e pulsante, toda a trajetória de Plum é afetada pela tomada de consciência e isso não significa que sua vida tenha se resolvido, muito pelo contrário: agora em contato com a realidade e com os próprios sentimentos, ela está finalmente apta a engajar na luta verdadeira pela sua dignidade, sem se dobrar, sem aceitar menos que o máximo. Isso significa que todo o processo entra em outro patamar de complexidade e que a jornada agora não é nada além de desafiadora. Plum, consciente, agora tem uma missão dificílima, a jornada da heroína precisa alterar o mundo, não só uma condição pessoal para acontecer – a clássica jornada do herói aqui parece um conto infantil masculino, tão descolado ou alheio à realidade quantos os viciados em pornografia e fetichistas que Plum encontra em seu caminho.

Dietland em sua primeira temporada foi direto ao ponto: a revolução não acontece internamente. Não são sentimentos e auto-estima que mudam o mundo, não é por meio de conquistas individuais que vamos conseguir tirar as mulheres do status de oprimidas. Mulheres devem se organizar, tomar as rédeas de uma revolução que precisa acontecer, antes que sejamos exterminadas. Quem não está com raiva, não está prestando atenção. A guerra não será fácil, mas como citou Julianna Margulies em sua personagem Kitty: “Os homens preferem destruir o mundo inteiro a nos deixar governar.”. Não podemos deixar que isso aconteça.

“Para muitos de nós, a coisa mais importante de nossas vidas é a ideia de que uma coisa, uma pessoa ou um lugar vai nos consertar. Mas isso nunca acontece. Não mesmo. Todos nós temos que viver com nossas partes quebradas e encontrar um jeito de sermos felizes.”

– Dietland

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