A mulher é uma degenerada: a atualidade na obra de Maria Lacerda de Moura

A mulher é uma degenerada: a atualidade na obra de Maria Lacerda de Moura

Nascida em maio de 1887, Maria Lacerda de Moura foi a precursora do anarcofeminismo no Brasil. Pacifista, fazia de seus escritos manifestos a favor da vida, principalmente da vida das mulheres e dos pobres e trabalhadores. Denunciava a desigualdade social, o fascismo e o cientificismo que inferiorizava as mulheres.

Foi fundadora e editora da “Renascença”, uma revista de arte e reflexões feita em colaboração com anarquistas, feministas e comunistas. Lacerda de Moura publicou mais de 20 livros, com várias reedições em português e espanhol. Alguns dos mais conhecidos são: “Renovação” (1919), “A mulher e a maçonaria” (1922), “A fraternidade na escola” (1922), “A mulher é uma degenerada” (1924), “Han Ryner e o amor plural” (1928), “Religião do amor e da beleza” (1926), “Serviço Militar para mulheres: recuso-me e outros escritos” (1931), “Amai e… não vos multipliqueis” (1932), “Clero e fascismo: horda de embrutecedores” (1933), “Fascismo: filho dileto da igreja e do capital” (1934).

Maria Lacerda de Moura
Maria Lacerda de Moura (Foto: Reprodução)

Dentro da imensidão de suas obras, faremos aqui um recorte sobre “A mulher é uma degenerada”, livro originalmente publicado em 1924, com reedições em 1925, 1932 e 2018. Um escrito curto e ao mesmo tempo denso, em que Maria percorre um caminho desaforado e ácido, indo desde as teorias da medicina que dizem que a mulher é mais fraca que o homem à exposição da desigualdade social brasileira. No link abaixo é possível ter acesso ao áudio livro, lido e interpretado por Aline Nunes em um projeto do Centro de Formação em Artes da UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia).

Maria Lacerda de Moura foi a primeira anarcofeminista do Brasil

Casada aos 17 anos, Maria trabalhava como professora e adotou dois filhos enquanto vivia em Barbacena e iniciava sua carreira de escritora, publicando o primeiro livro em 1918, “Em torno da educação”. Anticlerical e incomodada com a repressão religiosa e exclusão nas escolas da cidade, mudou-se para São Paulo em 1921, onde conheceu desertores espanhóis, franceses e italianos da Primeira Guerra Mundial e juntos formam uma comunidade autogestionária em Guararema, interior de São Paulo, fundada no pensamento anarquista individualista. É nesse contexto então que escreve “A mulher é uma degenerada” e cria a revista “Renascença”, citada acima.

Uma das críticas que Lacerda de Moura fazia era acerca do pensamento sufragista, considerando-o limitado por não atingir todas as mulheres, principalmente as mulheres proletárias. O movimento sufragista é um movimento burguês em que o entendimento da emancipação feminina passava pelo direito ao voto e à ocupação de cargos públicos, diferente do pensamento das feministas anarquistas, que lutavam pelo fim da opressão da instituição familiar burguesa, por amor livre e pelo direito de escolha à maternidade e ao parceiro ideal, além do divórcio. Maria defendia, portanto, a maternidade consciente, chamada por ela também de maternidade espiritual, indo contra a maternidade compulsória.

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Maria Lacerda de Moura, pioneira no antifascismo e anarcofeminismo no Brasil
Pioneira no antifascismo e anarcofeminismo no Brasil (Foto: Reprodução)

Lacerda de Moura também criticava muito o governo de Vargas e o sistema educacional. Por conta das repressões do Estado na época, a comunidade em Guararema acaba sendo invadida e Maria é uma das que consegue fugir, voltando à Barbacena. Quando volta à cidade em que cresceu, a recepção acaba a decepcionando e ela se muda para o Rio de Janeiro.

Cientificismo e educação feminina

“A mulher é uma degenerada” foi escrito em 1921 e a primeira edição foi publicada em 1924 pela Tipografia Paulista. A segunda edição foi feita logo no ano seguinte e a terceira publicada em 1932. A quarta edição, comentada aqui, foi organizada e editada por Fernanda Grigolin e traz também a publicação. No site da Tenda de Livros é possível encontrar a versão digital do livro, que na modalidade física esgotou já no ano da publicação.

"A mulher é uma degenerada", Maria Lacerda de Moura. Edição de 2018 lançada pela editora Tenda de Livros
“A mulher é uma degenerada”, Maria Lacerda de Moura. Edição de 2018 lançada pela editora Tenda de Livros (Foto: Divulgação)

A circulação e publicação de obras escritas pelos militantes faz parte do cerne dos ideais anarquistas como modo de divulgar e disseminar as ideias do movimento. Coletivos anarquistas já republicavam Maria Lacerda desde os anos 1990 e sua obra está sendo revisitada por diversas pesquisadoras. Manter a quarta edição como um fac-símile da terceira é importante porque Maria Lacerda tinha o hábito de revisar seus livros, acrescentando algo a mais em cada reedição. Além disso é interessante mostrar como ela verdadeiramente escrevia e se relacionava com a escrita. O trabalho foi feito a partir de scams do livro da época, limpados cuidadosa e virtualmente por Laura Daviña, responsável pelo projeto gráfico.

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No início de “A mulher é uma degenerada”, a anarcofeminista expõe teorias tidas como científicas que vigoravam em sua época e afirmavam a inferioridade das mulheres acerca dos homens, como a diferença entre os pesos dos cérebros, questões de fertilidade e ciclo menstrual. É claro que Maria fez questão de refutar todos os absurdos ditos por doutores e cientistas cujo conhecimento – tido empírico e positivista – ia apenas na direção de afirmar que o dever e o único papel das mulheres é a maternidade e o cuidado da casa.

E falando sobre maternidade, a autora é amplamente contra a ideia de que a felicidade da mulher só será alcançada ao ter um filho. Ela mesma foi casada e não foi mãe, dando seu exemplo no decorrer do livro ao defender seu ponto de vista sobre a não necessidade da maternidade como objetivo final feminino.

Contudo, a afirmação que dá origem ao nome do livro é uma frase de autoria de Miguel Bombarda e o escrito é uma resposta ao psiquiatra que afirmava cientificamente que as mulheres eram inferiores. Maria manifestou seus questionamentos de forma debochada, expondo o ridículo desses homens e médicos tão equivocados:

Bombarda fala tanto em degenerecencia, mas, quem se degenéra ou quem mais degenera a descencia: a meia duzia de feministas modernissimas (isso é cousa de outro dia) o uos milhões de homens que usam e abusam do alcool, da morfina, da cocaina, do ópio, e de vicios inconfessaveis?” (p. 22)

Liberdade! Igualdade! Fraternidade!

Em adendo à suas defesas das mulheres e críticas ao cientificismo, a autora traz sua visão sobre a desigualdade social no Brasil, argumentando que o problema é sim a burguesia e o capitalismo, não os pobres desempregados, inclusive pontua que o problema é ter que lutar para sobreviver quando diz que “a luta pela vida impede o progresso dos trabalhadores” (p. 138).

“Escrava do salario, do jugo do trabalho domestico obrigatorio para o sexo feminino, protegida pelas leis e pelo homem que lhe exige trabalho incompativel com suas forças e lhe paga menos e compra ou vende-lhe o corpo dentro e fóra do casamento, tudo legalizado… Escrava, tutelada mental, sujeita aos diretores espirituaes através da deseducação milenar cujo objetivo é evitar-lhe o raciocinio, o livre exame, o desenvolvimento da mentalidade.

Que póde pensar da vida e da evolução social a criatura escravizada á força e aos preconceitos, tutelada ao ambiente social, amarrada na sua razão através dos séculos de gineceus e de harens?…

Essa é a Liberdade! Igualdade! Fraternidade! 

Essa é a “Ordem e Progresso” da nossa civilização de barbaros insaciaveis.” (p. 164-5)

Já na década de 1920, Lacerda de Moura estava expondo a influência do contexto econômico e social nas relações de poder e sobrevivência no Brasil. Ela disse que os verdadeiros ladrões são os engravatados, os pequenos furtos feitos pelos que passam fome são apenas um reflexo da luta pela sobrevivência.

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Em meio a um Brasil caótico e miserável, ler as verdades de Maria Lacerda de Moura pode ser desanimador, já que quase um século depois as situações de desigualdade não parecem ter tido muitas mudanças. No entanto, ao mesmo tempo que a autora nos alerta para tais questões, nos estende a mão em um gesto de esperança ao falar sobre rebeldia e que “é preciso demolir para reconstruir” (p. 175). Além disso, o fato de nos atentarmos às opressões e o modo como influenciam nossas vidas já é um grande passo para nos libertarmos e as demolirmos.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Psicóloga, mestranda e pesquisadora na área de gênero e representação feminina. Riot grrrl, amante de terror, sci-fi e quadrinhos, baterista e antifascista.
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