Fresh: canibalismo e mercantilização do corpo feminino à mesa

Fresh: canibalismo e mercantilização do corpo feminino à mesa

Fresh (2022 – disponível na Star Plus) é o filme de estreia de Mimi Cave, que até então só tinha assumido a direção de curtas e videoclipes. O longa, que teve sua estreia no Festival de Cinema de Sundance em janeiro desse ano, chamou a atenção de forma mais específica por dois motivos: expor as dificuldades que envolvem o chamado “namoro moderno” e por tratar de canibalismo (Hannibal Lecter feelings).

A obra dedica seus primeiros trinta minutos para nos apresentar a vida de Noa (Daisy Edgar-Jones – rostinho conhecido entre os apreciadores de Normal People), para assim nos familiarizarmos com sua rotina. Nossa protagonista vem passando por uma sucessão de dates ruins e está cansada de ter que lidar com o processo do namoro moderno. Ela está exausta de suas opções parecerem estar limitadas à ação de deslizar para a direita em aplicativos de relacionamento e aguardar que alguém interessante apareça. Afinal, ela sabe que a vida vai muito além disso.

Assim, Fresh começa nos mostrando um dos encontros malsucedidos de Noa. Seu date além de irritante, é o tipo de cara escroto que acha que as mulheres deveriam se portar da forma que lhe agrada. Por exemplo, ele diz que as garotas já não são mais tão femininas, porque usam roupas grandes e confortáveis (que inclusive, é o tipo de vestimenta que Noa está usando). É impossível não revirar os olhos nesse momento. Ele fica entediando a protagonista com um monólogo a respeito da sua vida, é xenófobo com a atendente do restaurante chinês, e por fim, ofende Noa verbalmente quando ganha um fora.

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Noa (Daisy Edgar-Jones) e seu "date" ruim.
Noa (Daisy Edgar-Jones) e seu “date” ruim. Imagem | Reprodução.

A garota até tenta dar mais uma chance para os aplicativos de relacionamentos, mas basicamente só encontra homens com conversas desprezíveis, que gostam de enviar fotos não solicitadas de seus pênis.

Dessa forma, o longa vai mostrando as frustrações da protagonista, mas não de uma forma banal. A garota continua buscando problematizar e desconstruir o ideal de relacionamento que a sociedade nos impõe. Por mais que ela queira se envolver com alguém, seja para algo casual ou um namoro sério, ela procura antes de mais nada a autoestima dentro de si própria, não em possíveis relacionamentos. É por estar bem consigo mesma, que ela se motiva mais a querer se envolver com outras pessoas. Mas acima de tudo, preza por relações saudáveis.

A prova disso é a conversa que ela tem com sua amiga Mollie (Jojo T. Gibbs), enquanto ambas estão treinando boxe. Noa fala, um pouco triste, que sempre termina sozinha, mas que está ok com isso. Molly, anima a amiga falando que ela não precisa de homem ou de qualquer outra pessoa. Elas culpam a Disney por nos iludir com suas narrativas ditas românticas. E ainda fazem uma crítica à Ariel que abandona o oceano para ir atrás de um cara que ela só conhecia de vista.

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Mollie (Jojo T. Gibbs) no longa "Fresh"
Mollie (Jojo T. Gibbs) dando força para a amiga. Imagem | Reprodução.

Alerta: o texto abaixo contém alguns spoilers da obra e pode provocar gatilhos relacionados à violência psicológica, sexual e física

Até que, seguindo a linha de inúmeras comédias românticas, em uma despretensiosa ida ao mercado, Noa conhece um cara sem ser através de telas. Steve (Sebastian Stan) é charmoso, demonstra interesse por ela e não parece ser um completo idiota. Além disso, de um jeito bobo e agradável ele pede o número de telefone dela e através de mensagens combinam seu primeiro encontro.

Steve se mostra ainda mais atraente e divertido no encontro. Ele é médico com especialidade em cirurgia plástica e demonstra ser um bom profissional. Mas é do tipo que não tem redes sociais, o que para Mollie soa como algo suspeito. Mas ele é tão fofo que quer viajar com Noa para um lugar misterioso, para terem um final de semana romântico. Agora sim, alerta vermelho gigante. Contudo a química do casal é tão perceptível (é muito divertido, por exemplo, ver os dois dançando no apartamento de Noa), que a protagonista decide correr o risco de ir para um lugar desconhecido com um cara que ela mal conhece. Afinal, talvez tudo fique bem. Porém, não é o que acontece.

Há ainda, um detalhe que é válido ressaltar, voltando ao momento no qual os dois se conhecem. Enquanto eles conversam na seção de hortifruti, a garota é colocada em uma posição, que faz com que a câmera exiba uma placa na qual está escrito Fresh Meats (Carnes Frescas). Assim, observamos, um enquadramento que estrategicamente faz com que vejamos Noa logo abaixo da placa. Direção de arte nos indicando que Steve encontrou sua próxima vítima.

Noa (Daisy Edgar-Jones) abaixo da placa "Fresh Meats"
Noa abaixo da placa “Fresh Meats”. Imagem | Reprodução.

Exploração do corpo feminino

Com uma desculpa qualquer, o médico leva Noa para sua casa antes de irem para a tal viagem. Durante o caminho, o celular da garota (obviamente) perde o sinal. A personagem de Daisy Edgar- Jones é drogada e perde a consciência. E é apenas a partir desse momento que os créditos iniciais são exibidos, eles funcionam como uma espécie de divisor de circunstâncias. Até então, o roteiro de Fresh, de autoria de Lauryn Kahn, que flertava com elementos da comédia romântica, agora rompe com o lado delicado e amável e se entrega a uma ótica de cunho macabro. Mas o filme ainda mantém um certo tom de humor.

O diretor de fotografia é Pawel Pogorzelski, e ele talvez seja um nome familiar para apreciadores do cinema de horror. Afinal de contas foi o responsável pela fotografia e criou perspectivas morbidamente atraentes em obras como Hereditário (2018) e Midsommar – O mal não espera a noite (2019), ambos dirigidos por Ari Aster. Já em Fresh ele consegue captar o chamado íntimo de uma comédia romântica e a solidão e desespero de um thriller sobre sequestro e canibalismo.

Steve (Sebastian Stan) fazendo uso do humor para se aproximar de Noa em "Fresh"
Steve (Sebastian Stan) fazendo uso do humor para se aproximar de Noa. Gif | Reprodução.

Contudo, o longa possui sequências previsíveis, afinal o roteiro não é lá muito inventivo. No entanto, a surpresa não está no enredo em si, mas sim na forma como nos é apresentado. Nós não só descobrimos que o personagem de Sebastian Stan gosta de se alimentar de carne humana feminina, mas que ele também vende a carne de várias partes do corpo das mulheres que sequestra para outros clientes.

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Noa descobre isso através do próprio Steve. Assim que ela acorda acorrentada em um quarto, ele a informa que não vai matá-la imediatamente, pois quanto mais fresca a carne melhor. Ou seja, ele vai mutilando suas vítimas aos poucos e por ser cirurgião plástico consegue cuidar da “mercadoria” da melhor forma para manter a qualidade. Elas só têm o seu valor vivas, enquanto podem servir aos homens, e ainda assim de forma temporária.

Exploração do corpo feminino em "Fresh"
Noa acorda acorrentada após ser drogada por Steve. Imagem | Reprodução.

Essa situação funciona como uma crítica feita ao fato de as mulheres terem seus corpos mercantilizados e devorados por homens. Claro, que não de forma literal, como acontece no filme, mas no formato de exploração. Na nossa cultura, o corpo feminino é vendido como um produto que serve para alimentar os desejos masculinos. Filmes de horror costumam trabalhar em excesso com a pornografia da dor feminina, pois o sofrimento da mulher é algo prazeroso para muitos homens. Não à toa que os assassinatos de mulheres no cinema de horror costumam ser muito mais apelativos e abusivos que os dos homens.

Fresh e seus personagens intrigantes

Apesar de trabalhar com a natureza horrível de um psicopata, o longa sabe como manusear sua estética visual de maneira competente. A violência contra o corpo feminino não é exposta através de uma fotografia em tons vivos e alegres, pelo contrário. No momento em que vemos Steve na sala de cirurgia com Noa, temos uma iluminação mais acinzentada.

Não há beleza no que ele está fazendo, portanto não há necessidade de uma fotografia em tons mais vivos. Ainda que tal cena tenha bastante iluminação, a coloração é mais opaca. E em nenhum momento vemos Steve mutilando suas vítimas de forma direta, enquanto entendemos que ele está fazendo isso, a câmera foca em outros locais. Nos fazendo perceber que a obra rejeita determinadas formas de espetacularização visual relacionadas à violência ao corpo da mulher. Fresh, não é o tipo de filme que aposta no gore, como é comum acontecer com obras que trabalham com o tema canibalismo.

Em outros momentos o longa gosta bastante de usar cores mais quentes como o vermelho ou alaranjado, nos fazendo sentir desconfortáveis com a fotografia, já que acabamos associando tsid cores à carne/sangue, mesmo que de maneira inconsciente. Além do mais, o filme também utiliza com frequência planos detalhes e planos fechados que geram um certo incômodo, dando sensações claustrofóbicas.

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"Fresh" trabalha bastante com cores quentes.
“Fresh” trabalha bastante com cores quentes. Imagem | Reprodução.

Quanto as atuações, é válido dizer que estão ótimas, em especial Daisy e Sebastian. A dupla principal funciona muito bem e acertam plenamente quando precisam desenvolver transformações significativas em suas variantes emocionais. Ao analisar Noa, percebemos que ela não é simplesmente uma vítima que aguarda pelo momento de talvez ser salva, nem dessas que aceita fácil um destino trágico. Ela é inteligente, e faz uso de sua astúcia para ganhar alguma vantagem.

Enquanto isso, após sua amiga não mais dar sinal de vida, Mollie passa a investigar o seu desaparecimento. Aliás, Mollie é uma ótima personagem que poderia ter sido melhor aproveitada. Infelizmente ela acaba padecendo um tanto no tropo da “melhor amiga negra”. Ela é a amiga divertida, legal e engraçada que participa de cenas cômicas e é mostrada por pouco tempo em ações investigativas, mas praticamente não tem grande influência na obra.

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As mulheres são as grandes heroínas da história de "Fresh"
As mulheres são as grandes heroínas da história. Imagem | Reprodução.

Steve é arrogante e vaidoso, fortemente inspirando em Patrick Bateman (protagonista do filme Psicopata Americano). Noa tira proveito disso para ganhar mais tempo enquanto cria um plano para fugir dali. Ela suporta se aproximar dele e finge interesse pelo canibalismo, tudo para ter uma chance de sobreviver. Ela é o tipo de mulher que salva a si mesma e quando precisa de ajuda, ela conta com o apoio de outras mulheres.

E isso é algo interessante que a obra aborda, já que a ideia é mostrar o quanto os homens costumam ser tóxicos e estão sempre se aproveitando de mulheres. Seria contraditório usarem personagens masculinos para salvarem Noa e as outras vítimas de Steve e se tornarem os grandes heróis. As mulheres da história são suas próprias heroínas.

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Fresh, é um filme interessante e intrigante, tropeça em alguns momentos, mas consegue se manter relevante. Como já foi dito, falta um tanto de energia no roteiro, principalmente no quesito desenvolvimento das personagens coadjuvantes, que são pouco reconhecidas e exploradas. Mas no final de tudo, Fresh não apresenta estar preocupado em demonstrar uma obra com enredo profundo. O filme em si, busca não se levar muito a sério, mas ainda assim faz crítica a uma sociedade patriarcal, que assim como Steve e seus clientes, explora mulheres e as descarta quando lhes é conveniente.

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Denise é bacharela em cinema e tem amor incondicional por tal arte. Pesquisa e escreve sobre feminismo e a representação das mulheres na área do audiovisual. É colecionadora de DVDs, fã da Audrey Hepburn, apaixonada por Rock n' Roll e cultura pop. Adora os agitos dos shows de rock, mas tem nas salas de cinema seu local de refúgio e aconchego.
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