“Um Lugar Bem Longe Daqui” e o passado da autora

“Um Lugar Bem Longe Daqui” e o passado da autora

Um Lugar Bem Longe Daqui (Where the Crawdads Sing), da escritora e zoologista estadunidense Delia Owens, foi bastante popularizado no Brasil durante a pandemia. Mas ainda em 2018, ano de seu lançamento, o livro foi o que mais vendeu cópias impressas, de acordo com o NPD Bookscan.

O sucesso da obra se deu em boa parte quando a atriz e produtora Reese Witherspoon incluiu o livro na lista de leituras de seu clube do livro e posteriormente comprou os direitos da obra para uma adaptação cinematográfica em 2018.

O filme estreia em julho deste ano e foi dirigido por Olivia Newman, produzido por Reese Witherspoon e protagonizado por Daisy Edgar-Jones, conhecida seu papel como Marianne na série Normal People. A adaptação contará também com uma música inédita de Taylor Swift em sua trilha sonora.

A narrativa da protagonista, Kya Clark, é marcada pelo abandono de sua família. Ela vê sua mãe, seus irmãos e seu pai irem embora um após o outro. Ainda criança, ela foi deixada sozinha e se vê obrigada a se cuidar por conta própria tendo apenas o pântano como sua companhia.

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Daisy Edgar-Jones em cena do filme "Um Lugar Bem Longe Daqui"
Daisy Edgar-Jones em cena do filme “Um Lugar Bem Longe Daqui” (reprodução)

Um Lugar Bem Longe Daqui

Apesar de ter sido a primeira obra ficcional escrita pela autora, que até então havia publicado apenas não ficção relacionado a suas pesquisas pela África, Delia Owens escreve com maturidade e se aprofunda de forma espetacular nos sentimentos e na mente de Kya.

No decorrer da história, Owens faz paralelos entre a narrativa da protagonista e sua vida pessoal. Ela retrata o isolamento e a forma como o preconceito das demais pessoas afetaram Kya durante toda a sua vida. E compara com si própria, pois de acordo com entrevistas, Owens viveu isolada da sociedade e próxima aos animais selvagens por boa parte de sua vida, entre os anos de 1970 e 1990.

Delia Owens e Mark Owens
Delia Owens e Mark Owens. Fotografia: William Campbell

Não foi somente nisso que a experiência de Owens a ajudou na construção da história. Seus conhecimentos sobre biologia contribuíram para que ela pudesse criar um ambiente tão rico em detalhes. É possível se imaginar com facilidade no pântano ao lado de Kya. Aliás, um dos fatos que torna o livro tão cativante e único: o pântano é um personagem.

O pântano é o único companheiro de Kya no decorrer da história. Ele envolve e tece a história ao redor de si próprio. É pacífico ou ameaçador quando necessário. Além de promover encontros e desencontros conforme a história avança, moldando o tom sombrio de mistério na obra.

Mas ainda que não falte elogios sobre a obra de Delia Owens, a história de seu ex-marido é ainda mais sombria, confusa e manchada por suspeitas de crimes.

O passado: 1970

Nos anos de 1970, Delia e Mark Owens venderam todos os seus bens e partiram para a África para acampar e estudar a vida selvagem. Eles se instalaram em Deception Valley, no deserto de Kalahari, Botsuana.

Como retratado no livro Cry of the Kalahari, publicado em 1984, eles viveram por um tempo nesse local sob condições precárias enquanto conduziam pesquisas sobre a vida selvagem do local. Porém, o casal se deparou com o avanço da criação de gado pelo país e com a caça em massa de gnus e outros animais selvagens.

Delia Owens
Fotografia: Mark Owens

Sem o apoio do governo local para preservar os animais e inibir o avanço de tal depredação da fauna, o casal levou seus relatos para a mídia internacional, na intenção de obter apoio internacional para sua causa. Contudo, o governo de Botsuana os expulsou do país por suas ações irem contra as determinações do governo.

1980

Em 1986, o casal se mudou para o norte da Zâmbia, e o Parque Nacional de North Luangwa era seu novo lar. Embora Mark Owens descreva como um local inabitável e inóspito, aquela região havia sido habitada por povos nativos que foram expulsos por ex-governantes britânicos nos anos 1900.

Eles contam sobre sua jornada contra a caça na Zâmbia em The Eye of the Elephant, publicado em 1992. E de fato, entre 1980 e 1990, a África enfrentava um aumento na matança de elefantes pelo alto valor do marfim na Ásia. O que fez com que alguns países africanos instituíssem políticas que permitiam com que caçadores fossem assassinados se pegos caçando.

A Zâmbia não fez parte dessa política e a patrulha local não tinha poder suficiente para proteger os animais. Mark, então, levantou fundos de patrocinadores europeus e estadunidenses para “melhor equipar” os patrulheiros do parque que ele e Delia cuidavam.

Delia e Mark Owens
Delia e Mark. Fotografia: William Campbell/Corbis
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Delia conta em The Eye of the Elephant que eles ajudaram as aldeias economicamente para que eles não precisassem recorrer aos caçadores para ter dinheiro, além de desenvolverem programas de educação para crianças. No entanto, descobriram que apesar de trabalharem oficialmente para o parque, alguns moradores ainda trabalhavam ilegalmente para os caçadores.

De acordo com pesquisas do jornalista Jeffrey Goldberg, em matéria pra o The New Yoker, após este ocorrido, Mark se tornou o comandante dessas patrulhas e o casal foi nomeado como “patrulheiros honorários” pelo governo, o que lhes deu autoridade sob os patrulheiros e batedores do parque.

Há relatos de que Mark possuía um helicóptero munido de uma metralhadora para ameaçar os caçadores. Ele também criou uma espécie de programa de recompensas, onde o grupo de batedores que capturassem certa quantidade de caçadores ganhavam bônus salarial.

O casal, no entanto, sempre negou todas as denúncias, alegando que eram conspirações e mentiras.

1990

No início dos anos 1990 o parque começou a se recuperar, mas ainda haviam caçadores na região. Mark estava tão obcecado que saía para procurá-los a noite de avião, o que abalou o casamento dos dois. No livro, Delia conta que se opunha a algumas decisões do marido e descreve que durante esta época eles se separaram, montando outro acampamento para si por não concordar com suas atitudes. O casal eventualmente se reconciliou.

E em 1994, um documentário sobre a caça de elefantes começou a ser produzido no parque dos Owens. Turning Point, do canal ABC, documentou o dia a dia do casal e as dificuldades que enfrentavam contra os caçadores.

Mark sempre aparecia com uma pistola na cintura e Delia frisava que aquela era a África selvagem, intocada pelo homem. Na época, Christopher Owens, filho de Mark passava férias de verão no parque junto com o pai, mas ele não tem muita participação no documentário.

Delia relatou que assassinos teriam sido enviados pelos caçadores para tentar matar o casal. Neste ponto, aparentemente os conflitos ficaram mais intensos. No documentário, Mark é mostrado orientando e supervisionando os batedores do parque a atirar para matar os caçadores, se os caçadores estiverem com armas de fogo, apesar de explicar a repórter que não estava confortável fazendo aquilo.

Delia Owens e Mark
Delia Owens e Mark. Foto: reprodução
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E em certo ponto a equipe de filmagens acompanha uma patrulha pelo parque, após concordar em não identificar os batedores. Mas enquanto filmavam, um homem que eles consideraram suspeito é assassinado e o fato, apesar de ter sido documentado, nunca mais é mencionado.

O documentário foi lançado em 1996 e foi bem recebido pela mídia, apesar de conter cenas que faziam até mesmo os repórteres questionarem se tamanho preço era realmente necessário para a conservação dos elefantes.

Mark disse, posteriormente, que aquela política não era adotada pelos seus patrulheiros e era usada somente para autodefesa. Além disso, a diretora da Owens Foundation escreveu em uma carta aos seus apoiadores que a ABC estava fazendo sensacionalismo e que eles não sabiam que o assassinato havia sido gravado.

Mas como denunciado por Jeffrey Goldberg na matéria “The Hunted: Os conservacionistas americanos na África foram longe demais?“, publicada edição de março de 2010 da New Yorker, não há indícios de que o homem sequer estava armado ou de que era um caçador. O casal alegava que várias falas de Mark haviam sido mal interpretadas. Mas Golberg apurou em entrevista com um antigo amigo de Mark que o casal sequer sofria tantas ameaças, como Delia escreveu em seus livros.

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Conforme o fato chegou ao conhecimento do governo da Zâmbia, foi aberta uma investigação de homicídio. Rapidamente, os Owens viajaram de volta para os Estados Unidos, no que chamaram de uma visita, assim que as investigações começaram. Mas não retornaram, aconselhados pela embaixada americana no país.

O seu projeto de conservação do parque de North Luangwa foi tomado pelas autoridades locais e o caso aos poucos foi esquecido. O casal, então, se mudou para Boundary County, Idaho. Mark escreveu em Secrets of the Savanna que se tratava de uma nova terra, enfeitiçada por seus pântanos, alces, musgos, cogumelos e luas. Onde também foram protagonistas de algumas controvérsias.

No parque, um casal sul africano foi designado por gerenciar o antigo projeto dos Owens. E desde então, com a ajuda da Sociedade Zoológica de Frankfurt.

2010

Durante sua pesquisa, Jeffrey Goldberg viajou pela Zâmbia em busca de informações sobre os Owens. Descobriu que os batedores do parque invadiam as casas dos moradores das vilas, torturavam e espancavam homens suspeitos de serem caçadores.

Em contrapartida, em e-mails para o jornalista, Mark relatou que seus métodos duros eram apenas um personagem usado para o documentário da ABC para que os caçadores pensassem que ele era perigoso e que era apenas um rumor espalhado por ele que os patrulheiros usavam munições reais.

Goldberg também fez descobertas sobre uma figura que até então não havia sido mencionada em nenhum momento desta história.

Christopher Owens

De volta a 1994, enquanto o documentário era filmado, o assassinato presenciado pela equipe da ABC aconteceu em três conjuntos de tiros. O primeiro tiro aconteceu antes de a câmera ser ligada; o segundo veio de um patrulheiro em um uniforme verde; e o terceiro jamais foi identificado.

Mas entre várias justificativas diferentes dadas pelos Owens, Goldberg chegou a Chris Everson, o cinegrafista que presenciou e documentou o assassinato.

Everson falou sobre o fato pela primeira vez desde aquela época e revelou ao jornalista que foi Christopher Owens, filho de Mark, quem teria disparado o primeiro e o último conjunto de tiros. Disse também que não havia outra pessoa além de Christopher e o batedor, que provavelmente deu o segundo tiro.

O corpo, como já foi comentado, nunca foi encontrado. Mas de acordo com investigação feita pela polícia local, o corpo foi movido por um helicóptero pilotado por Mark Owens e jogado dentro de uma lagoa.

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Além disso, o nome de Christopher nunca foi mencionado até a investigação de Goldberg. Ele também descobriu que o filho de Mark era um especialista em artes marciais e batia nos homens do parque durante os treinamentos que ele lhes dava. Chris era visto como um homem mau pelos batedores.

Após a saída da Zâmbia, Christopher foi preso em 2001 e condenado por agressão por atacar um homem em um bar.

Em 2003, ele estava caçando na floresta quando atirou em dois cachorros de uma vizinha, matando um deles. Christopher foi condenado em 2005 por crueldade contra animais.

Delia Owens

Delia nunca foi mencionada na acusação de assassinato, tão pouco nas de agressão. Em vários momentos, ela relata que não concordava com as opiniões e atitudes do ex-marido. Mas ainda assim, ela sequer se pronuncia sobre o assunto, mesmo depois de ela e Mark terem se divorciado.

Em entrevistas e nos livros escritos sobre aquela época, ela defende Mark e Christopher e nega todos os fatos aqui mencionados. Não há provas de que Delia teve algum envolvimento nas ações do marido e do enteado. Mas não há como negar de que ela ao menos sabia o que estava acontecendo e se beneficiava da imagem de salvadores brancos que Mark tentava impor.

Delia Owens na África. Foto: reprodução

De fato, Um Lugar Bem Longe Daqui é um livro excepcional em uma primeira vista, mas se olhar mais de perto, nas palavras de Goldberg, “é estranho e desconfortável ler a história de uma sulista solitária, um nobre naturalista que se safa do que é descrito como um assassinato motivado por justiça em uma selva remota”.

E a partir daqui, para contextualizar a problematização do livro, o texto terá spoilers.

Entrelinhas de Um Lugar Bem Longe Daqui

Em algum momento do livro, Kya é acusada de assassinar Chase Andrews, seu ex-namorado. E além de todo o preconceito que ela sofreu ao longo da vida, agora ela tem que lidar com o ódio de uma cidade inteira, na quase impossível tentativa de provar sua inocência.

Uma clara semelhança com a acusação de assassinato em 1995.

Delia sempre se descreveu como alguém que viveu a maior parte de sua vida em meio a vida selvagem, longe de civilização. Tal como Kya viveu isolada e rechaçada pela cidade durante toda a sua vida.

Como apontado por Laura Miller em The Dark History Behind the Year’s Best Selling Debut Novel, publicado pela revista Slate, Kya é retratada como uma personagem ingênua. Ela acredita nas falsas promessas de Chase, mas não é capaz de dar uma segunda chance a seu primeiro amor, Tate. Mas contradizendo a aparente personalidade, em dado momento ela pondera que “seus antigos genes para a sobrevivência ainda persistem em algumas formas indesejáveis entre as reviravoltas do código genético do homem”.

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E novamente em 1995, Mark chamou o assassinato registrado em câmera de “endurecimento do espírito humano”. E em vários momentos, ele fala como se tivesse sido obrigado a agir daquela forma por conta do desespero da situação.

Poucos dias antes de sua morte, Chase e Kya se encontram pela primeira vez desde seu término e desde Chase ter se casado com uma mulher da cidade e após uma discussão, ele tenta estuprar Kya e a ameaça.

O argumento de seu advogado que convence o júri da inocência de Kya é justamente o quanto a sociedade a ignorou e a odiou durante aqueles anos, além de ser a frase mais chocante de todo o livro e que resume de forma precisa toda a narrativa até ali.

 “Nós a rotulamos e a rejeitamos porque achávamos que ela era diferente, mas senhoras e senhores, excluímos a senhorita Clark porque ela era diferente ou ela era diferente porque a excluímos?”.

O peso dessa frase ecoa pelo passado dos Owens, de Kya, de todos daquela cidade e de quem está lendo. Coloca sob Kya o peso do abandono de seus pais, de seus irmãos, de Tate, das mentiras de Chase e toda a sua vida. A sua virtude principal é ter de certa forma superado tudo isso e ter se erguido junto ao pântano em sua própria forma de viver.

Ela é descrita como uma mulher pura, com seus próprios princípios e amante e conservadora do pântano acima de qualquer coisa. E ela ter sido acusada de assassinar Chase é simplesmente fruto do preconceito enraizado da sociedade em odiar aquilo que não compreende, correto?

Sim. Exceto que Kya assassinou Chase. E foi absolvida sobre o argumento mencionado acima. Apesar disso, o fato nunca é comentado no livro, sequer passa pelos pensamentos de Kya. O leitor apenas descobre anos depois, após a morte da personagem. A narrativa também a mantém como inocente, como vítima de um julgamento injusto.

É um enorme impasse moral julgar o livro sob a perspectiva de Kya. Mas quando colocado em jogo as referências e comparações a vida da autora é complexo demais para ser ignorado. Claro, os Owens nunca foram oficialmente culpados de nada, mas nunca retornaram a Zâmbia para depor, nunca sequer comentaram sobre o caso. Tentar se colocar na mente de um autor e tentar entender os porquês das narrativas é uma tarefa impossível. Mas autores inserem suas experiências pessoais em suas obras de forma inconsciente, dando sua própria interpretação ou reinterpretação dos fatos.

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Fato é que a matéria citada de Jeffrey Goldberg foi publicada em 2010, oito anos antes da publicação do livro. Em 2019, o New York Times também fez uma publicação sobre o caso, além do texto de Laura Miller.

Não é uma história tão desconhecida assim. Como visto várias vezes em diferentes situações, o contexto da obra ou até mesmo a vida pessoal do autor não determina muito sobre seu futuro. Reese Witherspoon, Taylor Swift e até mesmo os atores do filme foram fortemente criticados quando se juntaram à adaptação.

De alguma forma, Delia Owens segue se desviando de seu próprio passado, enquanto Mark se isolou completamente da mídia. As investigações na Zâmbia nunca foram concluídas e o Parque Nacional de North Luangwa é conhecido como um dos maiores santuários da vida selvagem do mundo.

Um Lugar Bem Longe Daqui estreia em julho deste ano.

Escrito por:

Escritora que nunca terminou seu livro, estudo narrativa e sou apaixonada por distopias. Também adoro animes, cultura japonesa e joguinhos indies... também sou arquiteta e urbanista quando sobra tempo.
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